Desde o dia em que o Senado aprovou o afastamento da
presidenta Dilma Roussef, sem contar com qualquer comprovação de ilegalidade ou
corrupção, que uma boa parte das forças vivas da política popular, sindical e
comunitária não sai das ruas. Em todos os cantos do país, nas cidades grandes,
nas pequeninas, nos cantões mais retirados há alguma passeata, uma marcha, uma
manifestação. Muito dessa gente que tem saído para as ruas não apoiava o
governo petista, mas entende que o que acontece no país é um golpe, um
rompimento da Constituição e, no melhor estilo liberal, defende que a carta
magna seja respeitada.
É sabido que no mundo ocidental, moderno, o que mantém um
pouco de coesão social é a lei. Normas e regras – decididas pela classe dominante,
é claro – que aparentemente tornam todas as pessoas iguais. No imaginário
popular esse é um mito que ainda funciona, embora o cotidiano nos mostre que
não é bem assim. De qualquer forma, se um povo é levado a crer que deve
respeitar sua Constituição, esse mesmo povo obviamente vai se levantar se a
carta for rasgada. E esse é um pouco do sentimento que acompanha muitos dos que
marcham pelo “Fora Temer”. Para eles, o presidente interino está ilegítimo, é
fruto de um golpe, de uma traição. E claro, os demais marcham porque apoiam e
acreditam no governo petista como uma opção melhor para o país.
De toda forma há que matizar o debate sobre a lei. A tão incensada
Constituição de 1988, que tem lá os seus avanços, já foi retalhada inúmeras
vezes pelo Congresso Nacional, com a votação de inúmeras emendas que
retrocederam direitos. Uma boa olhada na Carta Magna e veríamos que já está
mais do que na hora de uma Constituinte, capaz de espelhar novas lutas e novas
demandas.
No caso do Judiciário – que é o poder parceiro do
legislativo na lógica do golpe – as coisas ficam ainda mais confusas. As gentes
comuns, o povo empobrecido, sabe muito bem que a lei não lhe serve. Ao
contrário: o positivismo que existe na conformação do Direito torna o mundo uma
coisa imóvel, aparentemente igualitária, só que não. Na prática todo mundo sabe
que quem rouba uma manteiga no supermercado pode ir presa por anos, mas quem
lesa milhares de famílias com a venda de um prédio inacabado segue vivendo nas
altas rodas sem sofrer qualquer penalidade. Bons advogados fazem malabarismos
com a lei. E bons advogados custam caro. Logo, os empobrecidos não tem qualquer
chance.
No golpe em curso a lei se mostrou implacável com a
presidenta da nação. E, de repente, na tela da TV, a população que sofre as
penas da lei no dia-a-dia se deu conta de que o judiciário não é mesmo neutro.
Que ele pode tender para um lado ou outro, mesmo dentro do seu próprio grupo de
poder. Assim, aquilo que parecia ser um destino apenas dos pobres – o braço
firme e injusto da lei – caiu sobre os poderosos. Mas não qualquer poderoso.
Era um grupo até então identificado com os trabalhadores que, por vias de
acordos e conciliações, havia chegado ao governo do país.
Para boa parte das pessoas que assistem a vida passar pela
televisão, as coisas apareciam bem claras. Aos trabalhadores, não basta estar
em altos cargos. Se estiverem aliados com o poder real, os grandes, os graúdos,
e se a esses não interessar mais a aliança, aquilo que é uma prática corrente
na vida deles pode acontecer. Ou seja, serão derrubados, presos, achincalhados
e tudo mais.
O governo petista prova um remédio amargo. Aliou-se aos
grandes, rendeu-se aos graúdos, esqueceu boa parte de seu programa original.
Não bastasse isso, muitos de seus integrantes foram tocados pela mosca azul,
pela ganância, pela vertigem do poder. Pagam por isso agora. Haveria muito mais
que falar das retiradas de direitos, das alianças com o agronegócio, da surdez
às demandas indígenas e tantas coisas mais. A boa e velha crítica que estivemos
fazendo desde o terceiro mês do governo Lula, quando ele iniciou a reforma da
Previdência.
Mas, o momento é de golpe. E isso tem de ser combatido. Há
quem diga que dizer “Fora Temer” é aliar-se ao “Volta, Querida!” e sim, isso é
verdade. Mas, o “volta, querida!” pressupõe justamente esse sentimento de
retomada do rumo constitucional, essa “legalidade” por vezes confusa e
contraditória do mundo liberal. Uma certa esperança – ingênua, talvez - de que
a volta possa trazer um governo disposto a fazer uma mudança de rumo. Afinal, o
governo de Dilma apontava ajustes neoliberais cada vez mais profundos. Estaria disposta
a presidenta a girar o leme?
Numa entrevista concedida ao jornalista Luís Nassif, Dilma Roussef apontou um caminho. Caso seja
reconduzida ao governo, sabe que não será fácil consertar o tanto de destruição
que vem sendo promovido pelo governo interino. Por isso diz que chamará um
plebiscito para que a população decida se quer uma nova eleição e outro pacto. Desafortunadamente
a presidenta não disse qual seria sua proposta de trabalho numa possível volta.
Seguiria fazendo o que vinha fazendo? A população, ao escolher se quer uma nova
eleição ou não, saberá qual é o rumo proposto pelo governo petista, caso decida
mantê-la? Isso não ficou claro.
São tempos tumultuados e cheios de vida. A rua – governista ou
não – está cheia de gente disposta a apresentar suas pautas e isso já é
revigorante. Para um país que viveu um longo tempo de adormecimento das grandes
mobilizações sociais, o que se vê nesses dias que correm é bonito e pedagógico.
Nunca se sabe o que pode surgir e, por isso, a necessidade de seguir
fortalecendo os grupos organizados para que estejam preparados para o devir.
Mulheres, velhos, crianças, jovens, petistas, não petistas,
gente de todas as cores acorrem às ruas contra o golpe, escrevendo mais uma
página na difícil política brasileira. Oxalá o país saia melhor de tudo isso.