domingo, 3 de novembro de 2024

O passarinho de uma perna só



Minha casa tem muitas árvores e a passarinhada é grande. É bem comum então que os passarinhos acabem se achegando, catando comidinha no pátio, ou tentando roubar a comida dos gatos que fica em cima da mesa. Não é raro ver enormes bem-te-vis bicando o pratinho, mui faceiros. Também têm muitos canarinhos da telha e outros tantos tipos que vem se banhar nos buraquinhos de areia. No começo, os gatos ficavam à espreita, querendo caçar, mas com o tempo acho que foram se acostumando e agora os passarinhos ficam bem à vontade no pátio, enquanto os gatos e os cachorros dormitam ao sol. 

Pois há uns três anos meu sobrinho notou que um dos passarinhos que nos visitava não tinha uma pata. Pulava certinho, mas dava pra notar que lhe faltava a perninha. Então, passamos a vigiá-lo. Como a gente sempre estava com o pai no quintal, tomando sol, ele era sempre o primeiro a ver quando o passarinho sem perna chegava. Ele apontava e já mandava a gente cuidar os gatos para que o passarinho não fosse caçado. O pai morreu em março desse ano e os dias no quintal rarearam. 

Mas, na semana passada, eu comia uma laranja sentada no alpendre, bem ao fim da tarde calorenta, quando avistei o passarinho. Apurei o olhar. Não era possível que ainda estivesse vivo, tanto tempo sem a perninha. Pois era ele mesmo, creio. Afinal, qual a chance de aparecer outro passarinho sem perna por aqui? Ficou por ali, tomou banho na areia, bicou várias comidinhas no chão e depois voou para o muro, no rumo do pratinho dos gatos. Eu paralisada, sem me mexer, para que ele não se fosse. E assim foi. Voou do muro para a mesa, bicou os restinhos da ração, vou para o telhado, voltou para o quintal. Eu e os gatos de olho nele, reconhecendo o velho amigo. Cheguei a ouvir o riso do pai. Veio uma lágrima. E ficamos ali, eu, os gatos, os cachorros e o passarinho sem perna na quietude do entardecer. 

O pequenininho é danado. Com tantos predadores por aí, segue vivin... Horas assim são de epifania.