Nenhum
vereador conhecia o conteúdo do projeto. Votação foi no escuro
30 de dezembro. Calor de 40 graus. Florianópolis.
Mais conhecida no jargão turístico como “ilha da magia”. De fato. Só a mágica
explica a votação do Plano Diretor no apagar das luzes de 2013, mergulhada num
festival de irregularidades e ilegalidades. Com 17 votos a favor, uma abstenção
e três votos contra, a Câmara de Vereadores aprovou, sem sequer conhecer, o
plano que deverá desenhar a cidade pelas próximas décadas. “Estamos votando em confiança”,
disse o presidente. Como assim? Confiança em quem? Pois é, venceu o cimento.
Perderam as gentes. Mas não sem luta!
A sessão da câmara começou as duas
horas da tarde. Sol a pino. Ainda assim, apesar do frisson nas ruas pela
chegada do ano novo e com as liquidações pós-natal, representantes das
comunidades, estudantes e população em geral compareceram às galerias para exigir
que a votação fosse adiada. É que os vereadores só receberam o documento com as
trezentas emendas aprovadas no primeiro turno de votação apenas na sexta-feira
à noite. Logo, não tiveram tempo hábil para estudar e ver como estava
conformado o projeto. “O documento que nos chegou não é oficial da Câmara, é um
rascunho do Ipuf”, denunciou o vereador Lino Peres (PT). Além disso, como o
documento foi todo alterado pelas emendas, diz o Estatuto da Cidade que são
necessárias novas audiências públicas para que a comunidade tome conhecimento das mudanças.
Nada disso foi levado em conta. Na primeira votação quase 700 emendas foram
apresentadas. A maioria sequer tomou conhecimento do conteúdo. Tudo passou de
roldão.
Nessa tarde do dia 30 não foi
diferente. Na fala de abertura, a qual cada partido tem direito, apenas os
representantes do PP, PT e PSOL fizeram uso da palavra para se colocar contra a
proposta de votação. Ninguém estava a fim de discutir nada. O vereador Pedrão
protestou contra a realização da sessão e denunciou a falta de participação da
comunidade no processo. “Faltou transparência”, afirmou. O vereador Lino denunciou que o texto oficial
não foi divulgado pela prefeitura, o que por si só já demandaria a necessidade
de mais tempo para os vereadores conhecerem o teor do Plano. O vereador Afrânio
falou do absurdo que foi a câmara chamar uma sessão para discutir o Plano
Diretor, no meio de outras tantas votações, e denunciou ainda que o projeto não
tem a cartografia, o que impede de saber as consequências das alterações,
algumas delas, inclusive, ferindo legislação federal. “Podemos cunhar esse dia
de hoje como o Dia da Maldade. Florianópolis não podia ser tratada assim”.
Pediu ainda a suspensão da votação.
Bastante incomodado com a presença e
a gritaria da população nas galerias, o presidente da casa sequer abriu discussão
sobre o pedido de Afrânio. Colocou imediatamente em votação. Os que fossem
contra a suspensão da votação que ficassem como estavam. E antes que alguém
pudesse respirar ele assinalou: recusado! Passou então, imediatamente à
discussão do Plano Diretor. De novo, nenhum outro vereador - a não ser os
mesmos três: Pedrão, Lino e Afrânio – fez uso da palavra. Os demais conversavam
entre si, davam risadinhas, olhavam a internet, sem a menor atenção aos
discursos que os colegas faziam na tribuna, apontando falhas e irregularidades
no processo. Tudo já estava arranjado. Assim, logo após a fala dos três
vereadores, de apenas cinco minutos, sem condições nenhuma de aprofundar nas
consequências do plano em tela, o presidente já encaminhava a votação. O
vereador Afrânio perguntou ao presidente se a Câmara tinha os documentos sobre
a cartografia, ou seja, o desenho da cidade, elemento fundamental para a
compreensão do plano. César Faria foi obrigado a dizer que não. Ninguém ali
naquela sala sabia o que estava votando e tampouco pareciam se importar.
O vidro que separa os vereadores do
público impedia que eles ouvissem a gritaria, as vaias, as palavras de ordem,
mas, mesmo que estivessem escutando, não faria diferença. As cartas estavam
marcadas. Vez em quando algum deles olhava para trás, como que para se
certificar que ali estavam as pessoas, mas era um olhar de indiferença, ou de
profundo desprezo. Os interesses que estavam a representar não era o da maioria
das gentes. Assim, não adiantou argumentar que o regimento estava sendo
quebrado, que leis federais estavam sendo burladas, que o processo era anti-democrático.
O presidente César Faria bocejava, enfadado, sem sequer prestar atenção.
Então, depois da fala dos três
vereadores que se colocavam contra o plano tal como está e pediam o adiamento
da sessão, Faria colocou imediatamente em votação. Foi nominal, mas muito
rápida. Um a um os vereadores, ainda que desconhecendo completamente o conteúdo
do Plano foram votando pela aprovação. O vereador Tiago, do PDT, que esteve no
ato público contra o Plano no sábado e até tirou foto dizendo: eu luto por
Florianópolis, decidiu se abster, recebendo uma vaia gigantesca. Pedrão, Lino e
Afrânio votaram contra. Em poucos minutos, estava alterado o destino da cidade.
Para pior.
Nessa hora, os ânimos de quem estava
no plenário se acirraram. Os vereadores comemoravam entre abraços e, alguns,
ainda riam, olhando debochadamente para as pessoas atrás do vidro. Um grupo
começou a bater no vidro e a guarda municipal apareceu para proteger o
patrimônio. “Vendidos, vendidos, vendidos”. “Mercenários, mercenários” eram as
palavras de ordem. “Que nojo, que nojo”, bradava uma mocinha, em lágrimas. Entre
os jovens, a revolta. Entre os mais velhos, também uma ponta de desesperança.
Foram anos de luta para desenhar um plano que tornasse a cidade melhor, e o que
passava ali era um plano totalmente alterado, sem a aprovação da comunidade.
Prédios altíssimos em bairros como o Estreito e o Saco dos Limões, ocupação do
Morro do Lampião, permissão para a construção em cima da restinga, construções
em cima de área de preservação, enfim, o circo dos horrores.
As pessoas saíram e ficaram na porta
esperando pela saída dos vereadores. Com medo, eles não arredaram pé de dentro
da Câmara. Os manifestantes ocuparam a rua em frente e trancaram a garagem do
prédio com uma corrente. Era uma queda de braço. O vereador Badeco deu uma de
valente e saiu. Ao o reconhecerem, os manifestantes saíram correndo atrás dele. Badeco conseguiu entrar num carro,
mas o mesmo teve o vidro traseiro quebrado. Ele escapuliu. Em pouco tempo a
polícia chegou pedindo a desobstrução da rua. E foi todo aquele clima de
tensão. Gritos, palavras de ordem, cantorias. “Vem pra luta, vem, contra o
cimento!” No outro lado da rua, pessoas se postavam, assistindo, enquanto um
pequeno grupo ainda insistia em, pelo menos, jogar um ovo na cara dos
vereadores que votaram contra os desejos da maioria das comunidades. Os sacos
de lixo da Câmara que descansavam sobre a calçada foram levados para a entrada
do plenário, onde estavam os vereadores: “estamos devolvendo o lixo para o lixo”. Ao final, todos – exceto Pedrão,
Afrânio e Lino - tiveram de sair
escoltados pela polícia.
Agora, com o plano aprovado, resta
ainda uma carta na manga: a Justiça. Como o processo todo está eivado de
irregularidades e ilegalidades, os movimentos sociais esperam que ao ser
julgado o mérito da ação movida pelo Ministério Público, a votação realizada
seja impugnada. Por outro lado, todos sabem que a justiça burguesa, no mais das
vezes, não se manifesta favoravelmente à maioria da população. Ela tem classe.
E defende os interesses da classe a qual pertence. Assim, as esperanças são mínimas.
De qualquer sorte, o movimento por
uma cidade que seja capaz de se sustentar na energia, na água, na mobilidade,
com ambiente equilibrado, não termina com essa votação. As pessoas que
construíram o plano diretor participativo – desfigurado pelos vereadores –
seguirão na luta diária. É certo que será mais difícil, mas todos sabem que é a
luta que faz a lei. O que causa revolta é saber que a destruição andará a
galope e, depois de consolidada, muito mais duro será voltar ao que era. Se uma
área de preservação for ocupada com prédios, como voltar atrás? Se a restinga
desaparecer, como recuperar? São questões que agora ficam a martelar, ainda sem
solução. A única coisa certa é mesmo a continuidade da batalha renhida contra aqueles
que cotidianamente entregam a cidade para a especulação e para o lucro de
alguns.
O ano acaba, mas a luta segue!