sábado, 7 de junho de 2014

Qual a “culpa” do PT?
















Não sou petista e tenho fortes críticas aos governos Lula e Dilma. Tendo votado no PT em 2002 e esperando que o governo avançasse em, pelo menos, algumas questões estruturais, acabei sendo uma das lideranças sindicais de esquerda ( à época estava na coordenação do SINTUFSC), que, logo em seguida da posse – três meses depois – já denunciava o grande golpe dado nos trabalhadores públicos com a contra-reforma da Previdência. Assim, deixando claro aos provocadores de plantão, tenho, desde então, observado com olhar crítico a ação governamental petista, e não posso deixar de dizer que muito me incomoda essa enxurrada de bobagens – obviamente eleitoreiras - que tem sido ditas nas redes sociais sobres os males do nosso país.

As pessoas estão morrendo nos hospitais. Não é “culpa” do PT. Também, mas não só. Desde sempre, nos sucessivos governos da República, e antes, do Império, que a saúde das populações empobrecidas está entregue às moscas. Os hospitais sempre estiveram lotados e sem condições de atendimento, porque os municípios – governados pelos mais diferentes partidos  - administram mal a política de saúde, com postos sem médico e precariamente equipados. A educação vai mal. É verdade! Mas, quando não foi? Desde quando que os pequeninos das comunidades rurais, ou das áreas urbanas empobrecidas tiveram condições reais de estudar? Em qual governo isso se deu?

As grandes cidades se enchem com as chuvas? Obviamente. Desde o início do processo de desenvolvimento urbano que a organização das cidades não respeita o leito dos rios, córregos e ribeirões. Mas, quantos foram os governo que sucessivamente passaram, apostando nessa lógica insana do crescimento a qualquer preço, sem levar em consideração a realidade da natureza? 

O PT tem a sua cota de responsabilidade, é claro. Esperava-se que por vir de raízes populares tivesse outra forma de lidar com os problemas. Mas, não aconteceu. Apesar de ao longo dos governos de Lula e Dilma terem crescido as políticas sociais voltadas aos empobrecidos, o governo petista não tocou nos grandes nós estruturais.  Muita gente saiu da miséria absoluta, e isso é coisa louvável. As políticas de distribuição de renda, ainda que ínfimas, em alguns lugares e para algumas famílias significam a linha entre a vida e a morte. Mas, ainda são políticas compensatórias que raramente emancipam. 

Milhares de jovens no interior desse país agora podem cursar a universidade. É um fato. Os governos petistas criaram universidades em lugares inauditos, inimagináveis. E propiciaram que outras tantas faculdades privadas surgissem nas cidades mais longínquas. Como negar a importância disso? O ensino não tem muita qualidade, os empresários da educação enchem seus bolsos, mas alguns jovens que jamais teriam oportunidade de cursar o terceiro grau, o estão fazendo. Precariamente, é certo, mas há os que se superam e vão adiante. Sempre fiz a crítica às políticas de engordamento do bolso privado e sigo fazendo. Mas, já me emocionei com famílias amigas que foram ver a formatura de seus filhos, coisa impensável até alguns anos atrás em uma cidade como Cristalina, interior de Goiás, ou João Pinheiro, interior de Minas.  Também é importante a consolidação da política de cotas, que trouxe os negros e os índios para dentro dos muros das universidades, obrigando uma das instituições mais fechadas do país a se confrontar com a cara real das gentes brasileiras. 

Só que as coisas boas – poucas, porque permeadas de complexidades  - que se podem apontar no governo petista não são suficientes se realmente queremos um mundo diferente. Precisamos de um estado que enfrente o modo de vida capitalista. Precisamos de governantes que balancem as estruturas, que sejam capazes de mudar as coisas, na sua raiz. Então, se alguma “culpa” o PT tem é a de não ter pego o bonde da história, aquele que produziria a mudança, coisa que poderia ter feito, tamanha a popularidade de Lula no primeiro mandato. Em vez disso, o governo se manteve nos limites da “governabilidade”, adoçando os lábios da pobreza, enquanto segue alimentando com manjares a voracidade dos capitalistas, dos grandes empresários, dos donos de terra. Comporta-se como os demais, embora permita uma certa distribuição de renda via políticas públicas.  

Por isso não acho justo atribuir ao PT a “culpa” pelos males do país. Esses problemas estruturais estão aí desde a colônia e temos de seguir fazendo frente a eles, com críticas e propostas. Por conta disso sinto-me muito confortável para criticar as políticas governamentais sem correr o risco de me assentar do lado direito da “assembleia”, que seria o lugar dos conservadores dos reacionários. Não o sou. Por outro lado, não consigo permanecer impávida diante da crítica daqueles que durante toda uma vida chuparam o sangue dos brasileiros e que agora querem fazer crer aos incautos e desinformados que todos os males  - que eles mesmos ajudaram a aprofundar – são de única responsabilidade do governo que aí está. Não reconheço essa crítica e não aceito. 

Essa semana, durante o Encontro Nacional de Economia Política (ENEP), uma economista, defendendo as políticas do governo petista, dizia: “prefiro apoiar esse governo, que consegue implementar pequenos avanços, porque nele posso ter mais chance de arrancar coisas melhores”.  Fiquei a pensar e cheguei a conclusão de que não concordo. Um governo do PSDB, do DEM, ou do PP não me servem, porque eles estão claramente comprometidos com a elite e não são capazes de fazer qualquer concessão à maioria. Mas o governo petista, bem como o de seus aliados, PMDB e PC do B, também está ajoelhado diante da elite, sem coragem de dar passos mais ousados. Teve a chance. Não o fez. Logo, não pode representar nada além disso que já está aí. E, como disse, até fez algumas coisas boas, mas absolutamente insuficientes no sentido de uma mudança real de paradigmas. 

Assim que ainda estamos diante do desafio de encontrar outro caminho, que, creio, certamente não passa pela via eleitoral. Como bem definiu o economista Marcelo Carcanholo, também no XIX ENEP, não podemos ter como horizonte administrar o estado capitalista dependente, porque ele seguirá exigindo o que o sistema determina. E, nesse espectro, o governante tem pouca margem de manobra. Passinhos de formiga. É o caso do governo atual. 

Então, nesses dias que antecedem a Copa e as jogadas eleitorais, é hora de refletir sobre o mundo que queremos, ancorados nas nossas utopias. É esse lá-na-frente, ainda não chegado,  mas possível, que precisa servir de bússola para nossa ação.  Mas, a crítica, necessária, deve ser, sobretudo, honesta. Nesse sentido, todo meu repúdio aos vilões do amor, que desde a chegada das caravelas estão se banqueteando com as riquezas  alheias. A eles, nenhuma concessão.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Simón Bolívar, jornalista



A cena está gravada na memória de quem conhece a saga do libertador Simón Bolívar. Depois da pesada derrota da primeira tentativa de libertação, como um soldado de Francisco de Miranda, Simón é desterrado da Venezuela e vai para a Jamaica. De lá, ele busca apoio da recém liberta nação haitiana, comandada pelo valente Petión. Nas conversas com o líder negro,  Simón pede armas e dinheiro para voltar à Venezuela e levar à cabo o processo de libertação da metrópole espanhola. Mas, além disso, insiste numa outra contribuição, que considera a mais importante de todas: uma prensa. Como um homem da ilustração, Bolívar acreditava que a batalha, para além do campo das armas, também tinha de ser travada no campo das ideias. E, para isso, o jornal deveria circular por todos os lugares na colônia.

Assim, quando os navios começam sua viagem de regresso para a Venezuela, ele insiste numa parada em uma das ilhas do Caribe. Seus assessores diretos pensam que o que ele quer é estar nos braços de uma anônima dama. Mas não. Quando volta para o navio traz nos braços aquela por quem realmente esperava com profunda ansiedade: a prensa. Com ela, grudada na garupa do cavalo, ele atravessaria as planícies e os Andes, nas suas campanhas de libertação. Dali, sairiam as palavras que incendiaram também todo o continente. "Notícias, Notícias... isso é o que interessa ao povo", dizia, inflamado.

Não é sem razão que quando instala o Conselho de Estado, em 1817, ele afirma: " a primeira força para a criação de um Estado é a opinião pública. A consideração popular, que saberá inspirar o Conselho de Estado, será o mais firme escudo do governo". Ele via como absolutamente necessário cuidar do espírito público e entendia que sem o seu auxílio, a força física apenas produziria um efeito precário. É que naqueles dias, os veículos de imprensa estavam todos nas mãos dos realistas. Por isso, os jornais que criaria se levantariam contra o monopólio e o despotismo.

O primeiro jornal criado por Bolívar é o Correio do Orinoco, instalado na solidão de uma região esquecida, e  que,  segundo ele, seria o aríete da empresa libertadora. Simón tinha clareza de que era preciso firmar a opinião pública. Sempre citava as palavras de Napoleão: "Quatro jornais hostis fazem mais danos do que 100 mil homens na batalha". Assim, numa Venezuela tomada pelos realistas, o jornal serviria para abrir uma cunha na cabeça do povo. Apesar do alto nível de analfabetismo, os jornais, naqueles dias, tinham uma aura quase mágica, sempre funcionando como um argumento de autoridade. Se estava no jornal, devia ser verdade. Bolívar usaria isso a favor da causa da integração.

No primeiro número do jornal, lançado em 27 de junho de 1818, um dos decretos de Bolívar, publicados com destaque diz: "Determinar que se instruam três jovens na arte da prensa. Será dada preferência aos que sabem ler e escrever corretamente. Esses jovens serão mantidos pelo Estado e, assim que tiverem instruídos, serão colocados convenientemente".  No editorial, Bolívar anunciava o que considerava as primeiras necessidades da revolução: moral e luzes. "A escravidão é filha das trevas. Um povo ignorante é instrumento cego de sua própria destruição". Lembrava ainda que estavam num país que não tinha visto mais livros do que os que trouxeram os espanhóis "para dar ao povo lições de barbárie", e era preciso que houvesse outros pontos de vista para que a nação pudesse pensar por si mesma.

A partir daí  Bolívar passou a ser um semeador de jornais, não na Venezuela, mas nas demais repúblicas que iam sendo criadas. Tinha, inclusive, um, que era volante, o "Sentinela em Campanha", o qual ia imprimindo na sua prensa móvel por todo o território onde andava peleando. Nas folhas, ele contada das batalhas, fazendo a crônica dos acontecimentos e também publicava seus proclamas.

Toda a proposta de mundo que a revolução trazia era impressa nos jornais. Ali, Bolívar defendia a soberania do povo, explicava como seria a divisão dos poderes, a liberdade civil, pregava o fim da escravidão e a liberdade de pensar e escrever. "Conjuro a todos para que não fiquem em silêncio, que escrevam, que difundam as luzes e instruam seus compatriotas". Bolívar acredita que a imprensa livre era uma espécie de tribunal espontâneo, um órgão capaz de disseminar os pensamentos alheios, livre de preconceitos e coação. "Ao dizer a verdade, a imprensa é fiscal da moral pública e freio das paixões".

E foi assim que os jornais começaram a nascer em todos os lugares, sempre promovendo a integração entre as repúblicas novas. Era política editorial de Bolívar jamais inflamar república contra república. O projeto visava basicamente promover a unidade, contra os perigos exteriores e contra as oligarquias locais. Por isso são muitas as cartas que ele escrevia para os partidários da libertação no Peru, pois os jornais de lá falavam mal de Bolívar e contra as leis, criadas por ele, que distribuíam terra aos indígenas. E, além das cartas indignadas, escrevia também artigos em resposta, exigindo que fossem publicados. "Não posso deixar que importante fato tenha uma só versão".  Era já o começo da oposição que levaria à derrocada do projeto  da Grande Colômbia.

Mas, enquanto estava no comando, Bolívar definia a política de comunicação. E era reconhecido pelos inimigos nessa sua obsessão pela disputa da opinião pública. Tanto que a Gazeta de Caracas, jornal realista, dizia: "A imprensa é a primeira arma de Bolívar, dela sai o incêndio que devora a América e é por ela que ele se comunica com o exterior". Essa era a mais pura verdade. O Correio do Orinoco, como primeiro e principal veículo da libertação, buscava noticiar os principais fatos que aconteciam em toda a América e era levado, de navio, para a Europa, para que pudesse circular nos mais importantes centros de pensamento. Com o discurso sempre focado na unidade latino-americana, o jornal trazia também textos de publicações estrangeiras que falavam das lutas de outros povos. Os resumos e traduções eram feitos pelo próprio Bolívar, que usava essas informações a favor da independência. Ao mostrar a luta dos demais povos ele incentivava seu povo a unir-se na luta local.

Outra diretiva importante dos veículos comandados por Bolívar era a crítica impiedosa que eles deveriam fazer à administração pública, denunciando qualquer desmando, mesmo nos momentos mais duros da guerra. Ele considerava a corrupção como o delito mais grave que alguém poderia cometer, porque ia contra a fé do povo. Assim, defendia que a imprensa deveria ser a "sentinela contra todo o excesso e omissão", mantendo a opinião pública sempre em alerta e fiscalizando o governo em cada passo.

Simón era um "escrevinhador" compulsivo e, se não escreveu livros, deixou, nas cartas e artigos de jornais, toda a sua visão de mundo, seus sonhos e seus ideais. No campo do jornalismo ele também fazia questão de fazer circular por toda a América liberta, as suas contribuições. Muitas vezes ficava indignado com a falta de bons jornalistas, porque entendia que o jornal devia informar bem, daí sua preocupação com a formação de jovens para a escrita. Também no campo da estética ele dava seus palpites. Exigia que o jornal fosse bem cuidado no desenho e na impressão. "A forma do jornal deve ser agradável, para encantar". Tinha uma dedicação especial aos títulos. Acreditava que era por ali que pegava o leitor. "Há que chamar a atenção e captar a admiração do leitor. Há que ganhar seu interesse com coisas úteis e um estilo simples, mas elegante, de grande dignidade".  Outra de suas invenções, lá pelo ano de 1823, foi a criação do gênero "variedades" nos jornais que comandava, bem como nas folhas volantes que distribuía por onde passava. Nessa seção  ele insistia que os textos deveriam ser leves, divertidos, picantes e brilhantes. Faziam sucesso.

Essa faceta de jornalista de Simón Bolívar vem se somar ao gigante que ele foi em todo o processo de libertação, seja como estrategista militar, guerreiro, político, articulador. Um homem capaz de empunhar a espada com a mesma energia com a qual empunhava a pluma. Fazia a guerra nas duas frentes e fazia bem. Não bastasse isso, ainda gastava suas noites, entre um artigo e outro que inflamaria as gentes para a libertação, com ardentes cartas à sua amada Manuela Saenz. Fez da palavra o seu aríete, com o qual enfrentava tudo na vida. Como homem de seus tempo, estava certo de que aquele era o tempo das luzes e que elas só viriam pelo esclarecimento da opinião pública.

Causou inveja e ódio aos inimigos que não suportavam sua política de unidade, integração, moralidade e intensa divulgação dos fatos. Como sempre, quem pensa em dominar não quer saber de opinião pública bem informada. Não era o caso de Bolívar. Tinha a firme convicção que só com as pessoas cientes dos fatos e dos problemas, seria possível construir um bom governo. Sua política de transparência, o desejo de informar e fiscalizar, foram alguns dos pontos que levaram a sua derrocada. Depois de ter incendiado a América com sua espada e com suas palavras, ele foi traído pela maioria dos seus generais, perseguido e finalmente morreu, abandonado e só.

Mas, como fez da palavra o centro do seu mundo, elas sobreviveram a ele e estão aí, até hoje, iluminando seu tempo e inspirando novas gerações. "Como fazem falta bons jornalistas", dizia, tão atual. "Notícias, notícias, textos úteis. É o que interessa", conclamava, mais atual ainda. Naqueles dias, como hoje, também há que se travar a luta, intensa, contra o monopólio e o despotismo. E assim, da larga noite da história, Bolívar desperta, chamando para a luta, também nesse campo: o do jornalismo.
 
* Texto escrito a partir do trabalho de pesquisa de Ignácio de La Cruz, consolidado no texto: Bolívar - su concepción de periodismo. Editado pelo Ministerio del Poder Poder Popular para la Comunicación y la Información; Julío, 2009. Venezuela.

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