quinta-feira, 15 de outubro de 2009

As lutas populares o financiamento


Eu lembro quando era bem menina e fazíamos campanha para os chamados anticandidatos do MDB. Era a ditadura militar e tudo se fazia escondido. Ainda assim, num mutirão de poucas pessoas recolhia-se dinheiro e faziam-se os panfletos que eram empurrados por baixo das portas durante a madrugada. Depois, no final dos anos 70, quando se começou a construção da CUT e do PT, os lutadores sociais faziam a mesma coisa. Era uma romaria com o chapéu para gente ir a encontros, reuniões, para organizar o povo. Todo o financiamento da luta era feito pelos próprios trabalhadores, pela gente em movimento. Ninguém media esforço. Era brechó, venda de disco, de livro velho, de tudo o que se podia imaginar, e na solidariedade de classe, íamos construindo o sonho da anistia, da democracia, da libertação.

Naqueles dias, as coisas também eram feitas por nossas próprias mãos. As faixas de papel, a cola de farinha, as tintas malucas para as pichações nos muros. Jamais se pensaria em pagar alguém para produzir um panfleto. Tudo era artesanalmente produzido, com os talentos que arrebanhávamos nas fileiras da luta. E, na azáfama de fazer acontecer, se dava a mística da solidariedade, da partilha, da cooperação.

Hoje os tempos mudaram, os velhos militantes apaixonados assumiram postos de mando nos sindicatos, nas centrais, nos partidos e tudo perdeu a sua aura. Agora, para não se perder tempo, os materiais de divulgação e propaganda são feitos por assessores, as faixas são terceirizadas e parece que todo mundo fica paralisado quando não há dinheiro para fazer as coisas.

Outro dia, durante uma discussão sobre a Conferência Nacional de Comunicação, a qual acredito que não servirá para nada, a não ser respaldar os desejos dos grandes empresários da comunicação, sugeri que fizéssemos uma conferência paralela, assim, com as nossas regras e não com as que foram impostas pelos empresários. Foi interessante observar a reação dos lutadores. A idéia soou como um completo absurdo. “Como vamos trazer as pessoas do interior?” “Como vamos alugar um lugar para o encontro? E onde as pessoas vão dormir? E todos os custos, quem vai bancar?” Perguntas tolas, diante da grandiosidade da liberdade...

Então eu lembrei a todos daqueles dias em que nós movíamos o mundo sem grana dos sindicatos, sem ajuda das fundações estadunidenses, sem grana do governo. Nós construímos partidos, centrais, mudanças importantes. Nós fizemos coisas demais com o financiamento dos próprios trabalhadores, com gente dormindo na nossa cama, comendo nossa comida, dividindo as parcas economias. Mas, naqueles dias, nós éramos movidos por uma paixão infinda, um desejo abissal de mudar o mundo e nossa pobreza jamais foi obstáculo para nada.

Hoje vejo alguns lutadores com ares de saciedade, descansando nos aparelhos, aceitando dinheiro das fundações estrangeiras, esperando migalhas do governo e, por conta disso, se rendendo às regras impostas pelos patrões.

Eu repilo isso. Tenho nojo e ódio. Quero de volta a luta renhida, feita por nós mesmos, financiada por nós mesmos, na solidariedade, no amor. Quando ninguém nos impunha pautas e ninguém nos infligia regras. Éramos livres! Pois quero outra vez essa liberdade... Ou nada!

domingo, 11 de outubro de 2009

Viva o dia da resistência originária!


É outubro na pequena ilha de Santa Catarina, um outubro friorento, nunca visto. Diferente, com certeza, daquele outubro de 1492, quando Cristóvão Colombo aportou em Santo Domingo, julgando ter chegado às Índias. Na manhã daquele dia 12 um pequeno grupo da etnia Taino observou a grande nau e preparou-se para o encontro. Na praia, eles esperaram, sem maldade. Pouco depois desciam os espanhóis e nunca mais a vida seria a mesma. Começava ali um processo de destruição que dura até hoje.

No rastro da invasão, povos inteiros foram dizimados, civilizações foram destruídas e milhões de almas aprisionadas. A conquista das terras novas, por espanhóis e portugueses, abriu caminho para a sangria das riquezas que, levadas para a Europa, propiciaram o florescimento do capitalismo, um jeito de organizar a vida tão predador quanto os tempos feudais.

As comunidades autóctones foram conquistadas por cavalos, canhões e homens de além mar. Mas, apesar da dominação, as gentes originárias nunca se renderam de verdade. Vencidas sim, mas não destruídas. Vez ou outra, ao longo destes 500 anos, levantaram-se os heróis da liberdade. Tupac Amaru, Tupac Catari, Sepé Tiarajú, Guaicaipuro, Daquilema Apu e tantos outros, abrindo caminhos que hoje seguem sendo trilhados.

Nestes primeiros anos do século XXI as culturas originárias estão vivendo um novo esplendor. Levantadas em luta elas buscam o reconhecimento de seus deuses, de seu jeito de viver. Querem ser reconhecidas como nacionalidades e recuperam seus verdadeiros nomes. Não mais índios, como se fossem uma coisa só. Não! São aymara, guarani, quíchua, shuar, bororo, caraíba, xavante, tamoio, uru, sioux, navajo, zapoteca, naso, embera, mapuche... e centenas de outros que voltam a dizer sua palavra viva.

Muito há para conquistar, muita luta por travar, mas a primeira delas é com os bem intencionados que dizem lutar pelos direitos dos originários, mas não lhes reconhecem o direito de ser quem são. É fato que grande parte das comunidades autóctones estão submetidas pela lógica do capital e, tal qual os empobrecidos de outras etnias são companheiros de classe: a dos oprimidos pelo sistema capitalista. Mas, de qualquer forma, para além desta condição de parceiros de classe, muitos dos originários que ainda vivem em comunidades estabelecidas por laços de parentesco tem sua especificidade étnica. Esquecer isso é não compreender que estes povos, mesmo tendo passado 500 anos, jamais se olvidaram de sua velha cultura, passada de pai para filho, no silêncio da resistência.

Não é sem razão que as comunidades autóctones tenham logrado conquistar o estado plurinacional na Bolívia e no Equador, garantindo assim a condição de seguir mantendo sua forma original de organizar a vida. Não como um retorno obtuso a um passado acrítico de tradições, mas dialeticamente uma volta acima, recuperando os conceitos que podem ser retomados e inventando novas formas de viver num mundo que já não é mais o mesmo de antes. Um jeito permeado de telúricas lembranças, sim, mas diferente.

Hoje, o movimento originário avança e não se submete mais a teorias alheias. Conquistou sua maturidade, construindo saberes próprios, desgarrados do eurocentrismo e da submissão. Lutam pelo seu território, pela sua cultura e seus deuses. Sabem que são parte de um sistema que depreda, que destrói, que esgota a natureza. Sabem ser também parte do mesmo exército de desvalidos que representam a periferia do capital. Mas, como nacionalidades, querem o direito de viver de acordo com suas próprias regras, atendendo ao chamado da terra-mãe.

É este novo movimento autóctone que dá o seu grito neste 12 de outubro. Não mais como um povo tutelado pelos estados-nação, mas como uma gente que conquistou a possibilidade de voltar a dizer seu nome e de gerir a própria existência. Hoje, neste 2009, nunca o dito de Tupac Catari foi tão verdadeiro. “Eu voltarei e serei milhões”. Pois assim é agora.

Viva a resistência dos povos de Abya Yala!
12 de outubro de 2009
Desde a terra dos Guarani - Meiembipe