Um totem é um uma construção sagrada, feita pelas
comunidades, para designar sua relação com o transcendente. Pode ser a figura
de um animal, pode ser uma figura mítica, pode representar alguém. O
fundamental de sua existência é justamente estar ali, para lembrar que existe
algo profundo no humano, que se conecta com a beleza suprema do sagrado. Não é religião,
é abertura reverente para o não-sabido. São
comuns nas comunidades originárias, que nunca caíram na armadilha do monoteísmo.
Ou seja, gente que não é a escolhida de um deus, mas que é capaz de
compartilhar o mundo com várias entidades consagradas.
No mundo moderno também vamos construindo nossos totens,
sejam eles reais ou simbólicos. Troncos fincados no chão que existem para nos
chamar, nos interpelar, nos carregar de volta para nosso lugar sagrado. Algumas
pessoas reconhecem como totens, os xópins, por exemplo. São seus lugares de devoção.
Outros elegem determinadas igrejas, onde descansam seus corpos na dura batalha
da vida. Há os que constroem totens com dinheiro, acreditando que ali está a
redenção para todas as dores. E há ainda aqueles que erguem totens a partir de
pessoas e ideias.
Desde bem pequena escolhi o meu, construído ao longo da vida,
com desenhos e rostos. Imagens de vida boa, gente sorrindo, Minha mãe, Che, Camilo,
Farabundo Martí, Sandino, José Martí, Zumbi, João Cândido, Chiquinha Gonzaga, Fidel,
Carlos Fonseca, Juana Azurduy, Bartolina Siza, Anita Garibaldi, Dandara.
Pessoas que, de um jeito ou de outro deram sua vida por um mundo melhor.
Ontem, quando Fidel encantou, fui acarinhar seu rosto no
desenho do meu totem, esse que fica à entrada de mim, sempre me lembrando de
que a vida só tem sentido se for para todos viverem em abundância. Chorei. Não
por ele, que teve vida tão plena e se foi como quis, sem nunca se dobrar.
Chorei pelos que não entenderam até hoje o que foi e o que é a revolução
cubana. A obra de um povo, não de um homem.
Realizei minhas rezas e cerimônias, imaginando o gigante chegando ao
paraíso, encontrando com todos os que, com ele, realizaram essa obra de amor. Sim,
eu creio no paraíso, esse lugar onde as almas descansam.
A revolução não é um jogo de contas de vidro. É a explosão
violenta de um povo oprimido também por violência. É campo de morte, de dor, de
decisões duras. Mas, é construção de caminhos que levam ao bem-viver. Crianças nas
escolas, comida na mesa, saúde de qualidade, arte. Cometem-se erros. Mas,
claro, as revoluções são feitas por homens e mulheres. Não por santos. O que
vale é reconhecer, fazer autocrítica e
seguir.
As figuras que compõem meu totem são criaturas humanas, com
seus claros e escuros. Não são heróis, são caminhos. Veredas abertas chamando
para o grande meio-dia. Não os reverencio por santos, mas por sua dolorosa e
pungente realidade. Não peço licença por isso. É o meu totem. É a minha entrada
da alma.
Nesses tempos obscuros do novo século, diante da inexorável
perda física de Fidel, começo a esculpir novas caras no meu tronco sagrado. Três
deles ainda vivos. Mais na frente, com certeza, serão lembrados como os que
mudaram o mundo. Snowden, Assenge e Bradley Manning. Cada um deles, a sua
maneira, e com objetivos diferentes, colocaram à nu o império. Snowden e
Assenge, exilados de suas pátrias, vivendo como fugitivos. Bradley encarcerado
numa solitária, nu, quase enlouquecido, dentro do país que tanto ama, e pelo
qual decidiu revelar ao mundo as atrocidades cometidas pelos exércitos de
ocupação. Ele pensava, na sua ingenuidade, que se o governo dos EUA soubesse o
que acontecia no Iraque, iria por um fim
em tudo aquilo. Não, deram fim foi nele.
Nenhum desses três é comunista sanguinário. Não. São pessoas
que querem viver na verdade. Que também sonham com um mundo livre, de pessoas
soberanas.
Tampouco eu sou sanguinária, ainda que comunista.
Preencho-me de ternuras e amores, de sonhos de vida boa e sigo, acendendo meus
incensos, dizendo minhas orações, reverenciando meu totem sagrado. É esse
tronco esculpido de gentes, desejos, lágrimas e risos que pontifica à porta de
mim. Ali estão todos os mortos que nunca morrem, os que guiam meus passos e
enchem os meus cântaros da água mais pura: essa que verte do desejo mais doce
da “eko porã”, a vida bonita, como dizem os Guarani.