quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O Saci e a luta anti-colonial

Até os anos 60 a vida da gente era completamente imbricada com a natureza. As grandes cidades ficavam muito distantes e as crianças vivenciavam toda a beleza de conhecer e compartilhar as figuras míticas, moradoras das florestas e dos cantos escuros do lugar. Desde pequenos, os meninos e meninas aprendiam que no meio da noite vagava um negrinho, pastoreando uma boiada, e que se alguma coisa se perdesse dentro de casa era só acender uma vela, e o negrinho ajudava a encontrar. O negrinho do pastoreio era visto nas noites de chuva, quando os relâmpagos riscavam o céu, imponente, no seu baio, cavalgando no rumo das estrelas.

Nas tarde de inverno, quando os redemoinhos varriam as ruas, a gurizada saia como foguete, com suas garrafas de bocas abertas, buscando aprisionar os sacis pererês. Porque afinal, desde sempre aprendiam que o negrinho de uma perna só costumava estar sempre no meio do redemoinho e só aí, quando estava distraído, girando no vento, é que se podia pegá-lo. De resto era sempre um tal de fazer estripulias, batendo janelas, quebrando as louças, levantando as saias das moças. O Saci é guri frajola, serelepe, cheio de alegria e de liberdade.

E se vinha a noite fechada, as crianças entravam em casa, porque sabiam que lá fora, na mata, haveria de andar o boitatá, a cobra de fogo que come os olhos dos bichos, ou ainda o lobisomem, buscando sangue fresco, e o curupira, arrastando os pés virados, procurando pela mula-sem-cabeça. Esse era um universo conhecido e reproduzido nas escolas, na família, nas rodas de conversa ao pé do fogo.

Mas, com a consolidação do modo capitalista de produção no Brasil, que começou a apertar os laços no final dos anos 50, outra dominação foi tomando conta da vida das gentes: a dominação cultural. Já não bastava mais importar o jeito de produzir, a maneira de fazer as coisas, mas era necessário também copiar a cultura daqueles que os poderosos julgavam ser dignos de confiança. Foi assim que se introduziu a moda, com a calça jeans, a minissaia, ou a música, com a introdução da guitarra elétrica e o rock, abafando de vez a marchinha, o xaxado, o baião e a vaneira. No cinema, dava-se adeus aos musicais inocentes e aos filmes do caipira Mazzaropi, recheados da vida nacional. Era chegada a hora de Hollywood e seus enlatados repletos de ideologia, colonizando as mentes. Os faroestes estadunidenses endeusavam os cowboys e demonizavam os índios. Os filmes de ação apresentavam os soldados estadunidenses como heróis, salvando o mundo dos horrores das guerras, dos comunistas, e os dramas consolidavam a certeza de que bom mesmo era viver em apartamentos com carpete, fumar Malboro e encontrar o homem dos sonhos, que seria branco, alto e de olhos claros.

A partir daí foram-se ocupando os territórios mentais. As cidades cresceram, se modernizaram, e as gentes se faziam cada vez mais parecidas com aqueles que, de certa forma, já dominavam no terreno da economia e da política. Bom mesmo era cantar em inglês e não foram poucos os jovens cantores brasileiros que iniciaram suas carreiras cantando na língua estrangeira. Um bom exemplo foi Morris Albert, que fez sucesso no mundo todo com a música “Feelings”. Cantar em português era coisa de brega. Nas festinhas a juventude enrolava um inglês que sequer se entendia. Papagaios.

O conceito de colonização diz que essa situação se faz real quando se conquista um território e se estabelecem novos moradores de acordo com o desejo dos que dominam. Pois foi exatamente isso que aconteceu com a gente. Nas cabeças das crianças, desde a mais tenra idade, foram sendo plantados novos conceitos, totalmente alienígenas. E esse tipo de controle chegou também no campo dos mitos. De repente, já ninguém mais falava em Saci, Curupira, Boitatá, Mula-sem-cabeça. Pela via do cinema cresceu a figura do vampiro e das festas estadunidenses. Uma delas é o Dia das Bruxas.

Até uns 20 anos atrás o tal do “Raloim” era celebrado apenas nas escolas de inglês, o que até tinha certo sentido, uma vez que quando se aprende uma língua há que se aprender algo da cultura do povo. Mas, depois, de mansinho, a festa foi se imiscuindo na vida cotidiana dos jardins de infância das escolas públicas e particulares, espaço de terra virgem, onde a colonização mental tem uma força tremenda. Sem que as famílias percebessem, os elementos mais enraizados da cultura estadunidense começaram a fazer morada na vida da criançada brasileira. Abóboras, a lenda do Jack, enfim, todos os elementos da belíssima lenda de origem celta que foi trazida aos Estados Unidos pelos colonos ingleses. Coloniza-se a cultura e movimenta-se a máquina do capital.

Ao contrário do significado cultural e místico que o Halloween tem nos Estados Unidos, aqui, ao ser transferido de forma artificial, o tal “dia das bruxas” nada mais é do que uma data a mais para vender coisas. Desafortunadamente, essa colonização mental não acontece unicamente no Brasil, ela toma conta também de quase todos os países latino-americanos, onde se pode ver a indefectível abóbora nos 31 de outubro de cada ano.

No Brasil, um grupo de ativistas da cultura do interior de São Paulo começou desde há anos um importante trabalho de conscientização sobre a história da cultura nacional. Grupos como a Sociedade dos Observadores do Saci, a Sosaci, tem dado contribuição importante nesse processo, produzindo vídeos e outros materiais educativos visando recuperar os antigos mitos e lendas da cultura indígena e negra. Levando esse debate por todo o país, os militantes da Sosaci querem que seja instituído o dia 31 de outubro como o Dia do Saci, fazendo com que nosso moleque, de raiz indígena e negra, vença de uma vez por todas a dominação cultural do “raloim”, como bem atesta o manifesto do grupo. “Nós, brasileiros, temos nossos próprios mitos, que não ficam nada a dever a esses importados, comerciais, que são usados para anestesiar a auto-estima do nosso povo. Respeitamos os mitos dos outros, mas não queremos que eles sejam usados pela indústria cultural como predadores dos nossos. Cada vez mais, muitos brasileiros começam a compreender isso. Uma prova foi o evento “O Grito do Saci”, realizado nos dias 5, 6 e 7 de setembro, em São Luiz do Paraitinga, Estado de São Paulo, que atraiu muita gente e foi uma catarse geral, uma lavação de alma. Outra prova é a onda de adesões que a Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci) vem recebendo de vários pontos do país. O Saci, a Iara, o Boitatá, o Curupira, o Mapinguari e muitos outros brasileiros legítimos estão aí para serem festejados, sem espírito comercial, como nossos legítimos representantes no mundo do imaginário popular e infantil”. E assim é.

A discussão que foi criada em torno da celebração do Dia do Saci em nada tem a ver com a xenofobia ou o desrespeito a outros povos. Momentos como o Dia dos Mortos no México, o Inti Raimi na América Andina e o Halloween nos Estados Unidos representam a essência cultural de cada um dos povos que os reverenciam. Pois a celebração dos mitos autóctones seria justamente a retomada do nosso território cultural que há tanto tempo vem sendo invadido e colonizado. Respeitar e dialogar com as demais culturas é rico e saudável, mas o preço disso não pode ser a destruição das nossas memórias ancestrais.

O campo da cultura é sempre um espaço muito mal cuidado pelos movimentos sociais e sindicatos de luta. Faz-se muita política, discute-se o capitalismo, mas muito pouco se discute o pilar de todas as mudanças que é o imaginário popular, a cultura. Desde aí se pode avançar com muito mais eficácia no processo de transformação da sociedade. Se desde bem pequenas as crianças tomarem contato com a beleza que vive no seu próprio espaço de vivência, muito mais fácil será trabalhar conceitos como soberania, liberdade, pensamento crítico, transformação.

A proposta que toma corpo sobre a instituição do Dia Nacional do Saci não é pueril, muito menos folclórica. É uma resposta inteligente e criativa a um longo processo de colonização mental que impera no nosso país desde a invasão européia. Destruíram muitas culturas originárias, impuseram determinadas crenças e hoje, buscam homogeneizar a cultura. Mas, por todos os cantos do Brasil se levantam os amantes do saci, do Curupira, do Boitatá, de Iara, Mãe d´água, Boto cor-de-rosa. Todos juntos prometem vencer o culto à abóbora, fazendo uma grande festa com carne seca, mandioca e viola. Porque nossa cultura autóctone tem beleza demais para se render aos interesses do capital.

Mas, para isso, é preciso que cada brasileiro faça sua parte. Pais e mães precisam retomar as velhas histórias, escolas devem ensinar os antigos mitos e toda a gente deve celebrar esse dia 31 de outubro como o dia do Saci e de todos os seus amigos. Para participar do abaixo assinado, entre na página da Sosaci e dê o clic: http://www.sosaci.org/abaixo-assinado.htm.

Enquanto isso preste muita atenção quando passar por um bambuzal. Ao ouvir os barulhinhos de “cloc, cloc, cloc”, atente-se. São os sacis nascendo. E estão vindo aos milhares, pulando em uma perna só, fazendo bagunça na proposta de destruição cultural que o império tenta nos impor. O Saci vive e está bem aí, do seu lado. Acredite!

Publicado originalmente na revista Novo Olhar.


Rádio Campeche lança CD de contos catarinenses


A Rádio Comunitária Campeche finalizou um importante processo de popularização da literatura catarinense, com a gravação de 17 rádio-contos, adaptados de escritores locais. Figuras importantes das letras catarinenses como Urda Klueger, Franklin Cascaes, Flávio Cardoso, Harry Laus, entre outros, emprestaram suas criações para uma dramatização que, além de tocar na rádio, agora está também disponível em CD.

A organização do trabalho foi feita por Aline Maciel e Débora Daniel e a adaptação dos contos escritos para roteiro de rádio-dramatização leva a assinatura das duas coordenadoras, mais Sigval Shaitel, Révero Ribeiro e Marcello Trigo. Um elenco de atores e colaboradores da Rádio Campeche dá vida às histórias que falam das coisas catarinas.

O CD, chamado de “Encantos em contos na Rádio – rádio-dramatização de contos catarinenses”, recebeu o Prêmio Roquette Pinto – Primeiro Concurso de Fomento a Produção de Programas Radiofônicos – e pode ser adquirido direto na Rádio Campeche. Os recursos arrecadados servirão para manter em funcionamento esse importante instrumento de luta e organização da comunidade do Campeche.

Quem conhece a história da Rádio Campeche, nascida em 1998, fruto das importantes lutas sociais travadas no bairro, sabe: é na disputa comunicacional que reside uma importante frente de batalha na guerra contra o modo de produção capitalista que tudo destrói em nome do lucro. Assim, aliando a disseminação da cultura com a soberania comunicacional, a comunidade vai avançando pelas ondas do rádio, mostrando que é possível se fazer uma comunicação que informa e forma, sendo também conhecimento.

Quem quiser colaborar com o projeto da rádio e de quebra levar para casa o CD com os contos, é só passar na rádio ou fazer contato com a gente. Não temos preço fixo e a pessoa colabora com o que pode. O importante é fazer a sua parte no fortalecimento da cultura e da comunicação comunitária.

eteia@gmx.net

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Ilha dos loucos

Belíssimo trabalho de Jorge Luis Correa, repórter cinematográfico e produtor, sobre a loucura, a poesia e o turbilhão humano. Destaque para a linguagem imagética, típica do excelente trabalho desse profissional. Um cara criativo, criador e muito competente.


terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Florianópolis não há mais

Por Glauco Marques

Floripa finalmente chegou onde o poder público, as grandes construtoras e a indústria do turismo local queriam: é a bola da vez. Isto significa, entre outras coisas, que entrou na rota da prostituição de alto padrão, com os playboys filhinhos de papai gastando até 10 mil reais por algumas horas nos paradores de Jurerê Internacional, cercados por piriguetes, doidas pra encontrar jogadores de futebol e atores da Globo.

Esta é uma das principais referências com a qual Floripa vai se consolidando como destino turístico em nível nacional. Parafraseando uma letra de música do Dazaranha que diz "este é o país da putaria", se poderia dizer "esta é a ilha da putaria". Nos últimos 20 anos ocorreram modificações em Florianópolis num ritmo vertiginoso. Os nativos já são minoria entre os habitantes do lugar. Mas a questão central é o fato de que a cidade está perdendo completamente sua identidade .

O modo de falar ilhéu, desde o pescador a galera do surf, vai mudando seu sotaque nas novas gerações. Falar com sotaque daqui é ridicularizado ou tolerado como algo apenas engraçado. O boi de mamão e outras manifestações culturais passam a ser "folklorizados". Ao circular em diversos locais da cidade, a sensação é de que não é Florianópolis. Ocorre uma pasteurização ou homogeinização cultural. As pessoas falam, se comportam e vão adquirindo hábitos que refletem o que a indústria do entretenimento veicula.

Um exemplo disto é uma novela na Globo ambientada no estado vizinho do RS com algumas referências a Florianópolis, onde o fato da trama se desenvolver em determinada cidade ou região serve apenas como paisagem, pois os atores falam e se movimentam como se estas cidades ou estados não tivessem peculiaridades culturais, modo de falar, hábitos, etc... A riqueza e diversidade cultural que caracteriza nosso país, com seus vários sotaques e hábitos, é descaracterizada intencionalmente e comemorada por autoridades e empresários de Florianópolis como símbolo de progresso e desenvolvimento.

A idéia de progresso que vai predominando é aquela que inventa coisas como o "Riozinho", um "point" a beira-mar e ao lado de um rio, rico em coliformes fecais, frequentado por "gente bonita e sarada", tendo como contrapartida a derrubada do Bar do Seu Chico, ponto de encontro dos moradores, de atividades festivas, políticas e culturais daqui. Pois agora.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Uma mulher valente

Conheci Justina na casa de uma amiga. Mulher como poucas. Faz o difícil trabalho de organizar as empregadas domésticas de Blumenau. Vale a pena ver o vídeo até o fim para ouvir da própria Justina toda a sua luta e a garra de defender os trabalhadores numa cidade bem conservadora. Sinto-me profundamente feliz de poder registrar os pensares de seres como a Justina. Gente que vale a pena.