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Lidar com meu velhinho não é moleza. Os dias são difíceis e tensos, porque a demência é coisa dura de lidar. Mudanças rápidas de humor, a ideia fixa de ir embora, o pega-pega de coisas, o ir e vir sem parar. Uma rotina que não dá folga, ainda mais agora na pandemia. Mas, tem também seus momentos engraçados e mostra o quanto a gente tem a capacidade de se reinventar, ou de descobrir habilidades jamais imaginadas. Uma delas é o radar do movimento. Durante a noite, deito na cama ao lado do pai e quando ele adormece, eu também durmo. Mas, ao menor movimento, mesmo que eu esteja em alfa, acordo. Ele levanta umas quatro vezes para ir ao banheiro e é sempre um salseiro. Mas, eu não falho.
A outra habilidade que descobri em mim é a do olfato apurado,praticamente felino. Como agora ele não se dá mais conta que está fazendo cocô, se desobriga a qualquer momento, sem ir ao banheiro. Nos primeiros dias era aquela confusão, cocô por todo o lado, uma sujeirada. Tentei as fraldas. Não deu. Resolvi colocar nele só calças de pernas bem largas, então, se ele se aliviava, a coisa caia pelas pernas e eu corria para limpar. Estava dando certo. Mas, agora, eu adquiri a capacidade de sentir quando o processo começa. Então eu sinto o cheirinho e já saio correndo com os lencinhos umedecidos para aparar na saída, sem que ele chegue a sujar as calças. É incrível. Estou infalível, como um gato. É uma aventura e tanto. E engraçado. Porque ele sempre faz aquela cara de surpresa intensa.
- Mas, o que é isso?
- Nada não, só um cocozinho.
- Mas que barbaridade.
E assim, seguimos...
Hoje é 29 de junho, dia dos Pedros do mar, dia dos pescadores. Nesse dia, aquático por natureza, nasceu o Pedro, meu amor. Esse canceriano diuturnamente grávido de ternura. Dele, não escapa uma palavra ruim, uma ofensa, um ai. Ele olha para a vida como se realmente tivesse entendido a promessa de que aqui seria um grande jardim, onde seríamos felizes. Pedro nunca saiu do paraíso. Ele o constrói, dia a dia, e generosamente o oferece aos que ama. Não que não sofra. Sim, ele sofre. Já sofreu perdas inomináveis. Mas, enfrenta com a certeza de que o que aqui se cumpriu foi bom e de que haverá o grande encontro. Então, volta a brincar no paraíso, com seu riso de menino, tornando tudo colorido.
Quando meu pai chegou, trazendo a demência e toda a mudança que gerou nas nossas vidas, ele tratou de ir tirando os entraves do caminho, abrindo os espaços para que o riso se mantivesse e a ternura fosse o fio condutor da nova existência. Ele já havia aberto espaços para dois desconhecidos vindos de Minas, que em pouco tempo já ocupavam seu coração, haveria de achar um canto para meu velho pai. E tem sido assim. Ele é o risonho pastor de gentes e bichos, mesmo dos gatos que diz não gostar. Sua presença ilumina a casa bem mais do que o gerador mais potente, bem mais do que o sol. Agora, avô duas vezes, de vera e emprestado, ele volta a abrir novos espaços nesse coração gigante, cornucópia de amor. Tudo é dádiva.
Com ele eu vivo desde há anos, quase sem rugosidades, e como Jesus apontando ao seu discípulo preferido eu também vaticino: Pedro, tu és pedra, e nela amarro meu barco, evitando que ele se perca no mar da demência e do imponderável. Ancorada no teu cais, eu me transformo em pandorga, e voo, para além do meio-dia, lá onde a dor não pode me alcançar. Porque tu és esse menino que não tem medo de soltar o fio, já que sabes que sempre encontrarei o caminho para tua morada.
Amo-te, broto. Amor meu. Feliz aniversário.