quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Cotidiano


- Vai queimar algum hoje? – a guria perguntou, enquanto eu estava na parada do ônibus. Pensei com os botões: Ué! Como assim? Santa Maria?

- Ônibus, guria? – ela, repetiu, vendo que eu estava confusa. Sorri! Não estava sabendo. O dia fora cheio. Assembleia, problemas de trabalho, mais problemas de trabalho e um pouco mais problemas de trabalho. A cabeça ardia.

- Não vi nada. Gritei. Alguém no ponto tratou de avisar. Não vai ter aula. Os ônibus param as sete de novo. As pessoas se entreolharam, tranquilas. Algumas gurias riam alto, comemorando o fato de não precisarem ficar na faculdade. O clima era de tranquilidade.

Ainda assim, há quatro dias queimam os ônibus na capital. Dizem que foi um salve geral dado desde dentro dos presídios, por conta de torturas, maus tratos, má-alimentação. O mesmo da outra vez. Pânico entre os trabalhadores que precisam se arrastar até suas casas pela noite afora.

Mas, para alguns, a coisa parece que banalizou. E ninguém liga os pontinhos. Incrivelmente o atual governador, que concorre à reeleição, pode até se eleger no primeiro turno, dizem as pesquisas. Minha cabeça roda. Como é possível? O cara descumpre a lei, não paga o piso dos professores, entrega os hospitais públicos para as Organizações Sociais, demite professores que lutam por uma educação melhor, censura, aprofunda o terror do sistema prisional, enfim, faz o que bem quer. E vai se reeleger? Oi?

No final da tarde, já morta pelo transporte desintegrado da capital, chego ao meu bairro. Um caminhão  do tipo trio elétrico circula pelas ruas com ninguém menos que Dário Berger (o ex-prefeito), Tiago Silva (vereador) e um candidato do PC do B. Mistura estranha. Cena difícil de encarar. E o que é pior, junto com eles, um grande número de pessoas com bandeiras e santinhos, na maior tietagem. Bá, tietar o Dário? Coisa mais triste para quem enfrentou no seu governo o longo processo do Plano Diretor, pisoteado e arruinado. Nosso sonho de cidade no chão.

Enfim, tanta dor, tanta raiva, tanta tristeza presa no corpo pequeno, tinha de se expressar. Assim, enquanto o caminhão se afastava pela rua de asfalto, no caminho de areia que leva à minha rua, gritei. Gritei alto e forte como um bicho ferido. Dia 5 vai chegar e nada vai mudar...  

Que longo caminho temos pela frente. As vezes penso que não vou mais conseguir andar...



quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Transporte coletivo: quem precisa de memória?






Hoje, dia primeiro de outubro, deveriam entrar em vigor todas as promessas contidas no edital de licitação que definiu a empresa operadora do transporte coletivo urbano na cidade de Florianópolis. Alguém ainda se lembra de tudo o que aconteceu? E como foi que se definiu o edital? Ah, a memória... Quem precisa dela? Melhor é esquecer para viver em paz.

Mas, pessoas há que não esquecem. Foi assim. Depois de anos e anos de luta popular para que houvesse, enfim, uma licitação a definir as empresas que operam o transporte, finalmente um prefeito se dispôs a isso. O prefeito em questão é o atual: César Souza Junior. Mas, como não poderia deixar de ser, o processo que construiu a proposta de licitação se fez sem participação daqueles que tanto batalharam para que ela viesse.

O edital foi apresentado numa segunda-feira, às oito horas da manhã, sem divulgação massiva. Poucos usuários puderam participar porque não tinham tido preparação prévia. Foi uma farsa. Naquele dia, o representante da prefeitura, Domingos Bonin, falou por mais de uma hora sobre como seria o novo sistema de transporte pensado pela nova gestão. Segundo ele, Florianópolis teria um sistema moderno, totalmente informatizado, com informações "on line" para usuários, trabalhadores do sistema e operadores. Seria criado um Centro Integrado de Gestão que comandaria todo o sistema, inclusive com os novos modais que se agregariam com o tempo. Todas as informações estariam disponibilizadas via internet e os usuários poderiam acompanhar o ônibus através de aplicativos nos tablets e smartfones. Rotas, horários, tempo de chegadas, atrasos, enfim, tudo estaria disponível "on line". Ainda no reino encantado do novo sistema, o centro de comando poderia se comunicar em tempo real com os motoristas, informando sobre situação do trânsito e outros casos de emergência.

A apresentação, naquela manhã, apontou as maravilhas das inovações tecnológicas do novos sistema, mas frustrou os usuários e representantes de movimentos sociais que estavam na audiência, uma vez que  as novidades não traziam qualquer mudança no que realmente interessa a quem usa o "sistema desintegrado", ou seja, aumento de horários, o traçado das linhas, o trajeto e, fundamentalmente, a lógica de integração, que hoje é totalmente inadequada, aumentando em mais de hora o tempo dos trajetos.

Por conta da omissão sobre os verdadeiros problemas do sistema foram feitas intervenções por parte do público cobrando propostas para esses nós do transporte, que tem causado tantos transtornos à população. Não bastava a apresentação de um incrível sistema informativo que muito mais serve ao empresariado do que aos usuários. Afinal, que interessa saber se o ônibus está aqui ou ali, parado no trânsito? O que se precisa é de mais ônibus circulando e uma integração efetivamente racional.  Também houve a reivindicação de que se avançasse na construção da tarifa zero, uma demanda antiga dos movimentos populares. Mas, a reunião com os tecnocratas da prefeitura ficou nisso. E, sem que nada do que fora dito fosse levado em conta, saiu o edital, bem assim. Sem qualquer alteração nos pontos que são importantes para a população.

O edital foi lançado, e o resultado todos conhecem. As empresas que dominam as rotas em Florianópolis desde há anos formaram um consórcio e foi esse consórcio o único a se apresentar. Logo, os vencedores do edital foram as mesmas empresas que têm tornado a vida das pessoas o inferno que é.

Vencida a estranha licitação de um candidato só, na verdade a medusa das cinco cabeças - Transol, Canasvieiras, Emflotur, Insular e Estrela - o transporte coletivo de Florianópolis seguiu sendo o que sempre foi: um tormento. Em alguns bairros até piorou, como no caso do sul da ilha em que vários horários foram suprimidos sem que ninguém soubesse por quê. Questionada a empresa Insular sobre os motivos, a funcionária mandou falar com a Prefeitura e na Prefeitura mandavam falar com a Insular. "Melhor encaminhar à ouvidoria". Ou seja. Nada acontece e a população fica sem ter a quem recorrer. Hoje, os ônibus que seguem para o Jardim Castanheiras estão cada vez mais lotados e com menos horários.

A única mudança visível no "admirável" sistema é a da cor dos ônibus. Ao que parece todos eles serão pintados de branco e azul. Frota nova? Nem pensar. Apenas 13% dos ônibus foram renovados, dentro da média de atualização. Já o super-mega-power Centro de Comando ainda tem até o ano que vem para ser constituído e, até lá, muita água vai rolar. Então, fica-se assim. Nada de informatização, nem de horários nos tablets, nem frota nova, nem tarifa zero, nem linhas novas, nem aumento de horários, nem integração de verdade.

Tá bom?

Ah, tá, não dá para dizer que não houve nenhuma vantagem para os usuários. A tarifa baixou 0,10 centavos.


O tempo dos Jogos Vorazes


Não é de hoje que o mundo vive um aprofundamento do individualismo. Nietzsche já apontava em sua devastadora crítica aos valores modernos o domínio do que chamou de "o último homem", aquele que vive sob o império da sua vontade, hedonista e egoísta. Pois eis aí, no cotidiano, essa aberração.  Dane-se o  coletivo, danem-se os demais. O que é que tem pra mim? Esse é o mantra.

É certo que essa forma de viver no mundo é diuturnamente bombardeada pelos meios de comunicação de massa. Não é sem razão que os programas do tipo "reality-show", os shows de realidade, tenham se tornado uma febre em quase todos os países. Ver, desde o conforto dos lares, um pequeno grupo de pessoas usar de todas as armas para eliminar o outro. Esse é o esquema. Assim, na vida real, fica mais fácil usar os mesmos artifícios para enfrentar os dramas pessoais.

Um filme que ficou bastante famoso nos últimos tempos retrata com maestria esse novo "way of life" (modo de ser). É o "Jogos Vorazes". Nele, mostra-se uma sociedade que vive a paz dos cemitérios. Tudo está quieto. Os pobres trabalham sem reclamar e os ricos vivem na abundância, sem perturbação. Toda a vida dessa gente está focada num evento anual que mantém a sociedade em equilíbrio. Nesse evento, é escolhido um jovem de cada estado da federação, assim, por sorteio. E esses jovens lutarão entre si numa competição que termina com a morte de todos, menos de um. Esse um que vence, leva a prosperidade para o estado naquele ano. Então, toda a nação senta-se em frente aos telões para ver o massacre de seus filhos. E o que é pior, torce para que um, o do seu estado, vença. Ainda que vencer signifique matar.

O filme não fez sucesso por acaso. Ele é perfeito. As coisas são assim. Milhares de pessoas seguem sentadas diante dos telões assistindo algum "maluco" que luta a contra a ordem ser massacrado. E ainda discursam sobre ele, incitando os verdugos a ferir, sangrar, matar.

Hoje, na nossa universidade, a Federal de Santa Catarina, vivenciamos os "jogos vorazes". Logo, eles estão bem mais próximos de nós do que podemos supor. Alguns trabalhadores lutam pela melhoria do atendimento e pelos turnos de seis horas, enquanto uma boa parcela dos colegas assiste no telão, acompanhando cada passo da batalha, vibrando com os golpes. Não importa que os amigos caiam na disputa. Tudo vale pela emoção. Quem vencerá? Quem trará os benefícios?

Instaurou-se uma surda guerra interclasse. Professores - colegas cotidianos - bramem o chicote com o riso no rosto. Observam a democracia ir para o ralo sem esboçar reação. No Conselho Universitário, os técnico-administrativos levantam a mão para falar e os corpos se mexem em desconforto. Quem tem o poder de comandar o espetáculo, usa o microfone quando quer, fala quanto tempo quer, sem que os demais ensaiem um protesto. Todos espectadores dos "jogos vorazes", devorando com os olhos as carnes tenras que se colocam para o abate.

Na greve que os trabalhadores vivem desde 5 de agosto, foi preciso muita luta para conseguir uma mesa de diálogo. Mas, quando acontecem os encontros, o que não há é diálogo. Nenhum desejo de negociar, apenas o de impor uma vontade. A ordem é essa, cumpram-na! Caso contrário vem a punição. 

Aí estão os jogos vorazes da UFSC. No filme, a "heroína" articula uma aliança com outro companheiro de desdita e eles terminam vivos os dois. Na universidade vivemos esse momento. Queremos a aliança com os demais colegas. É hora de fortalecer a greve, lutar de maneira conjunta. Nenhum acordo pessoal vai se sustentar. A vitória só vem com todos os trabalhadores unidos. Essa é a única forma de avançar e todos sabem disso muito bem.

Os dados estão lançados e a escolha é de cada um.    

A luta pelo HU

Estudantes, sindicalistas, populares, Fórum Catarinense em defesa do SUS, gente de todo o tipo que defende o Hospital Universitário totalmente público se reuniram, nesse dia 30 de setembro, na reitoria da UFSC, para acompanhar a sessão do Conselho que iria debater o tema. O assunto HU foi tirado da pauta, mas a luta se fez. Veja como foi.


terça-feira, 30 de setembro de 2014

Eleições na Bolívia




Assim como o Brasil vive suas eleições presidenciais agora em outubro, a Bolívia também deve eleger seu novo presidente, bem como a Assembleia Legislativa Plurinacional, que conta com 130 membros na Câmara de Deputados, mais 36 integrantes do Senado. A votação será no dia 12 de outubro e será a segunda dentro dos novos marcos constitucionais do estado Plurinacional.

Disputam os cargos quatro partidos e uma coalizão. Na corrida presidencial o Movimento ao Socialismo (MAS), apresenta como candidatos os atuais presidente e vice, que disputam reeleição: Evo Morales e Álvaro García Linera. O Movimento Sem Medo tem a frente um ex aliado de Morales, que foi prefeito de La Paz, Juan del Granado. A Unidade Democrática é liderada pelo multimilionário Samuel Doria Medina. O Partido Democrata Cristão traz como candidato o ex-presidente, de expressão neoliberal, Jorge "Tuto" Quiroga, que sequer vive no país embora volte a cada quatro anos para disputar eleição. Por fim, o Partido Verde apresenta como candidato um representante das demandas indígenas, que teve atuação importante na luta do TIPNIS (Território Indígena Parque Nacional Isidoro Sécure),  Fernando Vargas Mosua.

Conforme análise de Alfredo Serrano Mancilla, no sítio da Agencia Latino-Americana de Notícias, é provável que Evo Morales vença as eleições bolivianas com uma ampla vantagem, talvez até superior a sua marca anterior, em 2009, que foi de 64,2%. Para Alfredo, praticamente nenhum dos demais candidatos parecem ser capazes de oferecer uma oposição real. A comunidade os reconhece como representantes de um passado que poucos querem ver de volta. "Para a maioria está em jogo um processo de mudança de época pós neoliberal. Não passaram nove anos de governo da Revolução Democrática e Cultural, e já se pode dizer que a Bolívia desfruta de uma década de ganhos, depois de várias décadas perdidas". O sentimento é de que a Bolívia não só avançou economicamente como conseguiu consolidar um sentido comum, não mais importado, mas completamente boliviano.

É importante lembrar que Evo Morales levou adiante a proposta de uma nova Constituição, enfrentou a direita golpista, garantiu mudanças sociais e estruturais importantes, reduziu a taxa de desemprego, tornou real o exercício da plurinacionalidade, garantiu o fortalecimentos das propostas de unidade latino-americana aproximando-se do Mercosul e participando ativamente da Alba, da Unasur e da Celac. 

É fato que também enfrentou duras batalhas com as comunidades indígenas, principalmente no que diz respeito a estrada que pretende cortar o parque nacional Isidoro Sécure, território dos povos originários. A proposta era passar por dentro do parque, quando os indígenas insistiam na intocabilidade do território, oferecendo outras opções, como a passagem ao largo. A queda de braço custou a Evo muitas manifestações e protestos. O caso ainda não se esgotou.

Parte da esquerda boliviana também tem severas críticas a Evo e Linera, acusando-os de entregarem as riquezas nacionais a empresas estrangeiras e de liderarem um processo que é neoextrativista e exportador, que força a migração de comunidades tradicionais, que desrespeita os direitos humanos, o que estaria em franca oposição ao conceito de Sumac Camaña (o bem-viver) deliberado na Constituição. Uma expressão dessa crítica aparece com o candidato Fernando Mosua, que vem da terra indígena em disputa. 

O fato é que a Bolívia é um pouco tudo isso. O governo de Evo Morales mudou muitas coisas para melhor, distribuiu renda, usou os recursos do gás, que sempre estiveram na mão da elite, para alavancar políticas públicas, garantiu uma nova Constituição, avançou no debate da plurinacionalidade, possibilitando mais poder aos povos indígenas. Mas, também é certo que ainda não conseguiu sair da lógica que parece ser a marca dos países latino-americanos: o desenvolvimento gerado à custa da exportação de matérias primas. Também no caso da estrada que se pretende passar por dentro do parque nacional indígena houve muita falta de habilidade para lidar com o problema e Evo chegou a amargar algumas derrotas por conta das atitudes autoritárias.

A Bolívia é ainda uma dos países mais pobres do continente, mas é também fato que conseguiu reduzir os índices de pobreza extrema nas áreas urbana e rural. Segundo dados do documento "Memórias da Economia Boliviana", de 2012, hoje, 10 de cada 100 bolivianos vivem com um dólar ao dia, enquanto em 2005 o índice era de 24 para cada 100. No campo, onde 65 de cada 100 viviam com um dólar ao dia em 2005, hoje são 41, o que significa uma queda de 22%. São dados significativos, mas ainda parece intolerável que alguém possa sobreviver nessas condições, e os que permanecem na pobreza extrema ainda são muitos. Por isso a necessidade de avançar na distribuição da renda, mas que fique além do benefício, que trate de emancipar de verdade as pessoas.  

O governo de Evo Morales criou mecanismos como o "Bono Juancito Pinto" - uma espécie de Bolsa Família  - que garantiu renda a um milhão e setecentas mil crianças, a "Renta Dignidad", que alcançou 956 mil famílias e o "Bono Juana Azurduy", distribuído a 64 mil mães e 101 mil crianças. Coisas jamais vistas na Bolívia, daí sua popularidade junto aos empobrecidos.

Por conta dessas mudanças, que ainda são poucas e não mexem na estrutura, Evo é o favorito nas pesquisas. O que não é muito difícil visto o perfil dos demais candidatos que, excetuando Fernando Mosua, são todos velhos conhecidos dos bolivianos, aliados aos regimes que colocaram a Bolívia no triste patamar de ser o país mais pobre da América do Sul. 

A disputa presidencial, pelas pesquisas divulgadas, parece estar consolidada, a menos que algum elemento conjuntural mude as coisas de última hora. A expectativa fica por conta das eleições legislativas, nas quais o voto - como no Brasil - segue preferências pessoais e não partidárias, podendo influenciar na correlação de forças dentro do parlamento.


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Os indígenas e as eleições




Mário Juruna  - primeiro deputado federal indígena

As eleições estão às portas e em todo o Brasil as forças de poder se movimentam para garantir espaços no executivo e legislativo. Como sempre acontece no sistema capitalista, o domínio do processo está no dinheiro. Quem tem mais grana consegue realizar a melhor propaganda, fazer os melhores vídeos e circular pelos espaços com mais rapidez e eficácia. Além disso, é também o dinheiro que compra o trabalho dos “militantes” que se espalham pelas ruas com bandeiras, distribuindo os santinhos. O dinheiro ainda circula na tradicional compra de votos, que se manifesta em uma série de pequenos benefícios, como cestas básicas, tijolos, cimentos e outras coisas do tipo.
No campo dos “grande poderes”, o dinheiro aparece como doações de campanha. Grandes empresas e grandes bancos, por exemplo, despendem vultosas somas para os candidatos. Na dúvida, os mais ricos investem em vários, um pouco mais ou menos, conforme a possibilidade de vitória, mostrando que a eles pouco importa o programa de governo ou o partido ao qual representam, o que vale é ficar bem com o eleito para depois cobrar o apoio em algum favor. É o dinheiro que move a máquina dita "democrática".

Correndo por fora, mas igualmente dentro do processo eleitoral, existem os grupos que tem interesses coletivos e que são minoritários no jogo de poder, tais como os camponeses sem terra, os trabalhadores informais, os indígenas. Esses também se organizam e tentam encontrar algumas brechas na institucionalidade para defender propostas que venham ao encontro de seus interesses. É certo que esses grupos, justamente por sua fragilidade econômica, têm muito menos eficácia e sucesso na abordagem eleitoral. Ainda assim, se movimentam e constituem fundos que garantem campanhas modestas, mas importantes no sentido de que oferecem outras possibilidades ao eleitorado.

No que diz respeito à defesa dos direitos e demandas indígenas, esse ano, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apresentaram-se 85 candidatos ao legislativo, incluindo aí o estadual como o federal. Um número bem pequeno a considerar a população indígena que já contabiliza quase 900 mil almas, mas, ainda assim, capaz de dar alguma visibilidade às demandas dos povos originários, uma vez que ocupam o espaço gratuito de televisão e podem repassar - em escala de massa - as suas reivindicações.

O espectro partidário onde se acomunam os indígenas varia bastante, do PSTU ao DEM. Os partidos que juntam mais candidatos indígenas são os da base governista, PT (16) e PC do B (11) – mas há um número expressivo no PSOL (12) e no PSTU (5), mais à esquerda. Os demais estão distribuídos entre os partidos menores e conservadores, apesar de serem esses partidos os que têm historicamente empreendido toda uma cultura de ódio e preconceito contra o indígena, bem como contra as demarcações de terras tradicionais. Também é digno de nota que os partidos que acumulam maior número de indígenas sejam os da base de governo - um governo que não tem sido muito receptivo com lutas dos povos tradicionais.

Os candidatos indígenas aparecem em praticamente todos os estados da federação, mas os que têm números mais expressivos são Amazonas (9), Bahia (9), São Paulo (7), Mato Grosso do Sul (7), Roraima (6) e Pará (6). Santa Catarina tem apenas um representante dos povos originários, é o cacique Hyral, da etnia Guarani, que está concorrendo a uma vaga no legislativo estadual pelo PV.
Dentre as demandas dos candidatos indígenas estão aquelas que são também comuns aos não-índios: melhoria na saúde, na educação, na estradas que levam às aldeias e a proteção do meio-ambiente. Mas, sem dúvidas, as que mais mobilizam são a batalha pela demarcação das terras, a afirmação de direitos, bem como a luta contra a proposta de lei que quer levar para o Congresso Nacional a decisão sobre as demarcações. Mesmo disputando vaga nesse congresso, os indígenas sabem que ali, são a minoria da minoria, e que contra a bancada ruralista - grande e rica - pouca chance terão naquele campo.
 
De qualquer forma aí estão as candidaturas que precisam ser acompanhadas e analisadas, caso algum venha a se concretizar. Até agora, em nível nacional, a única experiência de um parlamentar indígena foi a de Mário Juruna, um xavante de Mato Grosso. Ele acabou eleito deputado federal - com 30 mil votos  - pelo Partido Democrático Trabalhista (1983-1987), representando o estado do Rio de Janeiro, na época sob a liderança de Leonel Brizola.

A ação de Juruna foi muito importante para o povo indígena, ele foi o responsável pela criação da Comissão Permanente do Índio no Congresso Nacional, fato que levou a questão indígena ao reconhecimento formal por parte do governo brasileiro. Conhecido por sua desconfiança na palavra do homem branco ( gravava todas as conversas e reuniões que fazia) Juruna foi uma referência ética no congresso, chegando a denunciar publicamente o empresário Calim Eid, que tentou suborná-lo para que votasse em Paulo Maluf, candidato dos militares à presidência da república no colégio eleitoral. Juruna recusou o suborno, denunciou a trama e votou em Tancredo Neves, candidato da oposição democrática.

Apesar de toda a sua ação na defesa da causa indígena, Juruna não conseguiu se reeleger. Voltou para a aldeia onde morreu em 2002, por conta do diabetes. Na verdade, durante todo seu mandato a mídia brasileira buscou transformá-lo num elemento exótico, folclórico e bufão, tratando de ridicularizar sua estratégia de gravar tudo o que acontecia. Com isso, desviavam o foco do "problema" que era a figura e a ação de Juruna no Congresso Nacional, colocando a nu o abandono da causa indígena pelos poderes instituídos. Mas, quer queiram, quer não,   Juruna entrou para a história como aquele que colocou em pauta o tema da luta indígena no Congresso Nacional em pleno estertor da ditadura militar. Falando na tribuna, na língua Xavante, Juruna garantiu que a até então desconhecida voz indígena fosse respeitada, apesar de todas as tentativas de ridicularização e da, essa sim ridícula, tentativa de cassação do mandato por conta de ele não falar o "português" corretamente.