Leopoldo Nogueira com as Pobres e Nojentas
Quando ele chega é como se uma luz dourada pairasse a sua volta. Tem a doçura da criança e a mansidão do velho. Está sempre a inventar brincadeiras como se a vida - dura na realidade - fosse mesmo um imenso jardim. Seu riso baila na sala como um ruído de cristal, limpo, quase divino, mesmo quando conta uma de suas muitas piadas sujas. Nunca se rende a dor, nem nos momentos mais difíceis. Chora, é verdade, e muito. Mas não se entrega ao sofrimento. Apenas sente, deixa que rolem as lágrimas e sobe, na busca do esperado meio-dia. Sabe que a tristeza dói no outro.
Leopoldo Nogueira é mineiro de Belo Horizonte. Tem a beleza das “geraes”, a terra de Marília e Dirceu, de Drummond, terra que abrigou Cruz e Souza em suas horas de morte. Nasceu no ano de 1960 e, na infância, pouco sentiu os terrores da ditadura militar. Menino, brincava na rua, ora soltando pipa, ora olhando para o céu e se encantando com a beleza da vida. Leitor contumaz, era rato da biblioteca do avô. Da mãe, artista plástica, ganhou o gosto pela arte e, na escola, era comum vê-lo nas peças teatrais. Tinha grande facilidade de articular os conteúdos e logo começou a se questionar sobre as coisas do mundo. Como ser? O que fazer? Que vereda seguir para ajudar os outros a serem felizes? Essas eram as preocupações do garotinho que ruminava as diferenças entre os seres, no caminho entre a leitura de um Tio Patinhas e um Schopenhauer.
Entre as leituras que fez, uma delas lhe tocou a alma: era sobre a vida de Francisco, o de Assis. Tamanha ternura lhe deu aquele homem que não teve dúvidas. Disse: vou ser franciscano. Então, toda a sua vida caminhou nessa direção. A idéia de ser padre não vingou, ficou para trás, mas o conceito de franciscanidade não. Seguindo essa senda foi parar em Alto Paraíso/Goiás, numa comunidade alternativa, onde trabalhou como professor e no apoio a crianças abandonadas. Dali seguiu para o interior de Minas onde queira fazer faculdade de Artes Plásticas. Mas, a universidade sempre lhe foi um peso. “Deviam oferecer disciplinas e a gente ir escolhendo. Assim como é, parece uma prisão”.
Bicho livre, não conseguiu ficar na rotina das cadeiras inúteis. Golpeado no corpo e na alma, desistiu da pequena cidade do triângulo e veio encher de magia o sul. Chegou a Florianópolis em 1998, direto para a Universidade Federal, onde foi trabalhar na Agência de Comunicação. Ativista dos Direitos Humanos foi logo inventando coisas para discutir uma vida de paz. Mas sua alma de menino-artista tampouco conseguiu sobreviver em meio à aridez acadêmica. Pediu demissão e foi viver sem vínculos. Hoje sobrevive com alguns trabalhos que faz como artista gráfico. Não têm sido fácil, muitas são as experiências “desencantantes”. “Eu fiz o caminho inverso do que fez Cruz e Souza, saí de Minas, e vim pra cá ficar sem terra, sem árvore, sem lar, nesta Ilha do Desterro, onde no mais das vezes a falta de arte e cultura, de abraços, jardins e flores acabam matando a gente aos poucos, enterrando na tristeza”. Só que como não se rende, Leo segue o caminho, teimoso, apesar de estar morando de favor na casa de um amigo. Franciscano na prática, ele não se importa em não ganhar dinheiro, e tampouco fica chateado em mendigar. Acredita que as pessoas devem repartir o que têm. Por isso, quanto tem, reparte. Agora, diz, vive seu tempo de receber. “Já fiz de tudo nessa vida e acredito na solidariedade. Quando eu tinha dinheiro, eu repartia. Acho que todos têm direito de ter acesso a tudo o que o conhecimento humano proporciona. O amor franciscano, aquele do Cristo primitivo, precisa ser uma coisa concreta.”
Leopoldo acredita muito que a grande beleza está lá, “em casa”, ou na outra vida. E, enquanto ela não chega, ele vai contando histórias, compartilhando sua alegria de menino-artista-velho-amoroso com aqueles que são capazes de entender. “Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça”, diz. Defende com unhas e dentes a espiritualidade histórica-dialética, ou seja, “essa com a qual o ser humano pode compreender e perceber as outras dimensões em que se manifesta, interligado e integrado à vida universal, e pela qual possa se manifestar no universo e nos pluriversos tantas vezes desconhecidos pelas vãs filosofias, religiões, até as ciências, inclusive as ‘ocultas’ ".
Assim, nesse mundo de dor/sorriso a esperança de Leo são as crianças. Acredita, como Nietzsche, que é nelas que está a possibilidade de um novo tempo. Por isso, agora que voltou à universidade, a pedagogia que estuda e professa é a da libertação. “Hay que escolarizar-se, pero sín perder la ternura jamás”, diz, parafraseando Che, com aquele seu risinho mineiro. Crítico da escola, busca no seu fazer cotidiano encontrar respostas para uma nova educação, que não formate, que não oprima, que não mate a criança interior. Por isso, inventou um (ante) manifesto, que está em construção. “Ele foi inspirado no Manifesto Comunista, de baixo pra cima. Eu entendo a importância que aquele manifesto teve naquele período histórico, mas penso que hoje devemos contemplar em nossos corações as indignações para o despertamento da Criança Interior, capaz de fazer a verdadeira revolução, talvez a única possível: a de nossos próprios corações, que se entenderão uns com os outros nas dimensões em que interagimos.
Dividimos com todos essas idéias, para que comunguem e retornem. O manifesto não está pronto. Precisa de ti! Da tua criança... Então? Avante!!! “Esse `manifestarmos` quem somos, apesar de tudo o que nos quer "apagar", é a fonte de inspiração desse Manifesto das Crianças: mãos em festa, em obra, escarafunchando a Terra, acariciando um rosto, enxugando uma lágrima, dando-se à outra mão/Criança para passear junto pelos campos”.
(ANTE)MANIFESTO DAS CRIANÇAS
Crianças de todo o mundo, uni-vos!
As crianças têm toda a infância a perder se não soltarem a imaginação e abrirem as caixas de brinquedos para libertar a Esperança como uma pandorga livre no ar. Têm um mundo a sonhar e realizar como seus.
Crianças, coloquem em primeiro lugar, como ponto fundamental, a questão de se apropriarem de todas as terras para plantar flores e grãos com suas pás, baldes e regadores. Finalmente, unam-se para que todos as entendam em todos os países.
Em resumo, sejam a favor de tudo aquilo que as coloque a caminho dos jardins que esperam a revolução das estações com suas alegrias, com o sol, a lua, as estrelas, a chuva, o vento, o tempo.
Borboletas, abelhas, minhocas, passarinhos, todos se aliam a favor de seus sonhos. Em lugar dos antigos blocos de cimento duro ou asfalto seco, associem-se a cada um para que todos possam correr livres pelos jardins e campos à espera de sua vida.
O seu poder, crianças, está para converter a secura das paisagens em florestas e bosques perfumados de doçura e sorrisos. Desapareçam, como que por encanto, todos os seus medos quando vocês se derem as mãos para isso. Sim, isso poderá se realizar em 10 passos como no jogo de amarelinha, pé-ante-pé, indo das tristezas das paisagens que lhes foram dadas até além, onde o céu se põe em espetáculo de cores. Vamos, se abracem. Pulem!
As crianças arrancarão de seus corações, pouco a pouco, todas as ervas daninhas que lhes foram plantadas pela tradição das escolas, como tem acontecido através dos séculos. Isso não acontecerá novamente neste maravilhoso jardim-de-infância.
Do mundo antigo há arvores que lhes foram mostradas lindas, como a da liberdade, a da justiça e tantas outras que jamais lhes foram dadas para brincar. Mas, em seu jardim, todas as novas árvores estarão verdes na primavera para vocês balançarem em seus galhos, e se deitarem às suas sombras nos dias de calor. Venham, tragam suas sementes para plantar de novo aquela Esperança.
Uma nova história começa a partir de sua semeadura. Que nos canteiros de flores sejam desmarcadas todas as fronteiras de sua meninice, para que seja conquistada a amizade entre todos, numa só pátria de solidariedade como flor desabrochada por seus anseios.
Meninas e meninos, tragam seus gracejos e sua vida! Venham com todos os seus brinquedos fazer casinhas nas árvores, reencontrar uma família de irmãs e irmãos que compartilhem a vontade de recriar os laços de ternura e afeto. Brinquem, que as árvores e o jardim são de todos.
Inventem suas novas formas de brincar, esqueçam-se das pilhas e dos manuais de instruções de cada jogo que lhes foi ensinado. No amor e companheirismo dedicados uns aos outros poderão ser descobertas outras maneiras de contar e fazer histórias. Sejam livres para fazer a sua linda história de amor e solidariedade.
Crianças, que seus corações estejam abertos para compartilhar a riqueza de idéias e ideais de cada um. Que o futuro seja construído a partir de seus sonhos de ventura. Repartam, de mãos cheias de alegria, os abraços e cuidados para com tudo e todos. Construam, assim, seu mundo novo.
As flores e os frutos deste jardim são abundantes. Juntem suas mãos para colher mil buquês, façam suas cestas para depois irem repartir estas alegrias plantadas e descobertas. Repartam este jardim aos outros, chamem mais crianças para brincar, que estes campos são para todos. Unam-se.
Deixem os bancos enfadonhos das escolas que transformam as crianças em peças de máquinas, e dispersem-se pelos canteiros em busca do que aprender com seus novos amigos. Ah, crianças, abram suas asas da imaginação para tocarem-se e repartirem o que têm aprendido. Subam às árvores, iniciem hoje este processo de compartilhamento destes sonhos.
Continentes inteiros esperam sua chegada, crianças, para que da terra brote as esperanças adormecidas. As cidades mortas, as casas vazias de ternuras, as estradas poeirentas, os campos aguardam sua vinda. Espalhem-se, recriem a natureza à imagem e semelhança de seus sonhos. Que a solidez das flores se desmanche no ar em bem-te-queros através dos seus perfumes.
Ah, crianças, que as manhãs de seus sonhos façam cair os véus das antigas e tristes noites de quando seus sonhos lhes foram retirados. Sejam corajosas, vivam seus ideais, despertem da sonolência que lhes foi imposta pelos contadores de uma história que lhes tirou a dignidade e os finais felizes. Em cinco pétalas e palavras: acordem, brinquem, vivam, realizem, sonhem.
Sorriam ao compartilharem suas flores, sentem-se à grama e recriem seus brinquedos. Inspirem as outras crianças adormecidas a brincarem também. Quando elas ouvirem suas gargalhadas saberão que podem se juntar à brincadeira e realizarem as vontades de sua imaginação.
Crianças, um mundo despedaçado em ruínas espera sua chegada para que novas formas de viver em alegria recrie a beleza para as futuras estações. Um tempo de pás, de baldes, de regadores, enxadas, foices e martelos para que sejam derrubadas todas as cercas, muros e portões que as separavam de seus sonhos.
Crianças do mundo inteiro, uni-vos!