terça-feira, 1 de agosto de 2017

Dos tantos Rafaéis



Hoje no Brasil existem quase 800 mil pessoas encarceradas, 150 mil cumprem prisão domiciliar e existem mais de 300 mil mandatos de prisão que não são cumpridos por falta de vagas no sistema penitenciário. O que ultrapassa o número de um milhão de almas. O Brasil tem a quarta maior população carcerária no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, Rússia e China.  Mais de 250 mil pessoas estão presas de maneira provisória, com seus processos ainda não julgados. Menos de 1% dos encarcerados respondem por crime de corrupção, esse mote que levou milhares às ruas com suas camisas amarelas. 

46% dos apenados foram presos por crime contra o patrimônio, 28% estão encarcerados por envolvimento com drogas, apenas 13 % são crimes contra a pessoa e os negros são a maioria nos presídios: 61%. Esses números são do Ministério da Justiça e dizem respeito ao ano de 2014, portanto já devem ter aumentado bem mais. 

Isso leva a seguinte reflexão: a impunidade, de que tanto falam, não existe. Pelo menos não para os pobres e negros, a maioria nos presídios, no geral pagando por pequenos furtos ou o tráfico de drogas de pouca monta. Porque os figurões, os que são donos da droga, os que são os donos dos helicópteros e dos aeroportos, esses não vão parar na cadeia nunca. Eles estão nos salões e nas telas de TV curtindo a vida ou destruindo países. 

Rafael Braga, pobre e negro, preso em 2013 por portar um vidro de Pinho Sol durante uma manifestação está na prisão, mofando. Com ele, outros tantos, possivelmente mais de 90% da população carcerária. E olhem que levar Pinho Sol na mochila não configura crime algum. Já os ricos e bem nascidos que matam pessoas, por estarem embriagados ou que traficam drogas, não são tocados e saem da cadeia pelos braços de mães e pais bem posicionados.  A impunidade, portanto, tem um perfil de classe. As leis são feitas pela classe dominante, logo, servem a ela.

De minha parte, sou contra o encarceramento, a não ser em casos ultra/extremos. E esses são mínimos. A justiça deveria ser pedagógica.

Uma boa olhada nos crimes de uma sociedade nos leva a ver que muitos desses crimes se devem ao modo como a sociedade se organiza. Por que há tanta gente pobre envolvida com o tráfico de drogas? Por que as pessoas roubam? Essas são perguntas importantes.

Sendo assim, não se trata de defender cadeia para os ricos que cometem crimes. Não. Há que acabar com os ricos que gestam uma sociedade dividida, de maioria oprimida. Há que acabar com a divisão de classes e o domínio de uma sobre a outra. Construir uma sociedade sem classes, como no comunismo. Nesse modo de produção, não haverá ricos, nem pobres, todos terão o que precisarem na justa medida. E, vejam, o comunismo é apresentado como se fosse o diabo, enquanto o capitalismo – que é o diabo – é apresentado como o melhor dos mundos. Pois é mundo que está aí e que espelha esses tristes dados. 

Há que inverter a lógica, construir outra forma de organizar a vida. Ainda não chegamos a isso, e talvez demore muito para alcançarmos o comunismo (comum viver). E mesmo quando chegarmos ainda haverá crimes, pois o humano precisa de tempo para transcender. De qualquer forma, acredito que 90% ou mais desse trágico sistema prisional desaparece. Eu aposto nisso, e para isso caminho!

Sam


Tenho profunda predileção por figuras e personagens marginais. Essas pessoas que não aparecem, não por medo, mas porque não julgam necessário embandeirar seus feitos. E, são, muitas vezes, fundamentais para o desenrolar da história humana. Na arte, são os que me encantam e mais puxam meu olhar.
Na saga “O Senhor dos Anéis”, ainda que Frodo seja o herói, meu coração se aquece com a trajetória de Sam, o amigo que o acompanha e que, ao fim, é quem torna possível que a missão se complete. Ah, como ele é especial, e amigo, e leal, e companheiro, e terno. Depois, ao voltarem para casa, tudo o que quer é casar com seu amor e viver feliz. Tendo sido mais herói que o herói. Morro de ternura por ele.
Agora, na saga do Jogo dos Tronos, outro Sam rouba meu olhar. Desde sua aparição na patrulha da noite, com aquela pureza peculiar aos que são bons. Personagem marginal, mas capaz dos atos mais lindos. Ah, como ele é especial, e amigo, e leal, e companheiro, e terno. Absolutamente incrível seu gesto de salvar um completo desconhecido. Absolutamente adorável sua sede de saber. Mais herói que os heróis.
Gosto dessas gentes quietas, que olham com doçura, que sabem sem pompa, que amam sem reservas e que se enfurecem contra os vilões do amor.
John Bradley West, esse ator inglês que faz Sam, é perfeito... ! Pura doçura!!!


domingo, 30 de julho de 2017

Ainda é 1500



A cena é tocante. Na beira do asfalto, um grupo de indígenas olha, entre estupefato e triste, outro grupo de gente, branca, postado em cima da passarela. Os brancos estendem faixas, denunciando uma “invasão” dos indígenas e dizendo que a demarcação das terras ameaça o seus lares. São moradores da comunidade Enseada de Brito, que fica próxima à terra Guarani, no Morro dos Cavalos. Vê-se que são “bem-nascidos” e poderiam estar no rol das chamadas “pessoas de bem”. Um deles ostenta a camisa amarela da CBF, de triste papel no Brasil atual.  Na verdade, um pequeno grupo organizado por políticos da região ligados ao DEM. De longe, eles se olham. Os Guarani, como sempre, no silêncio circunspecto. Esperam, tranquilos, mas não mansos.

Lá no alto, os brancos ostentam o preconceito e a ignorância. Pouco sabem sobre o mundo indígena. Em nem querem conhecer. Tal como no longínquo 1500, chegam com suas bandeiras e verdades, vendo o outro, diferente, como inimigo. E não são.

Já os Guarani observam com aquele mesmo olhar afiado com o qual miraram as caravelas naqueles tempos distantes. Viram os homens chegarem e acolheram com risos e oferendas. Mas, ao longo desses mais de 500 anos, eles já sabem que a hospitalidade nunca valeu de nada diante da cobiça. Carregam bem fundo na alma e no corpo e memória da violência, do massacre, do assassínio, do terror.

Hoje, nesse domingo de sol, eles se olharam outra vez. Distantes. O diálogo mais uma vez impossível.

A terra da área do Morro dos Cavalos é uma terra que já foi demarcada, portanto, legalmente terra indígena. Ali vivem as famílias que conformam a comunidade Guarani. E, como é do seu costume, as famílias se movimentam dentro da área. Assim, ora estão aqui, ora ali. É a sua maneira de viver.
Incansáveis na perseguição aos indígenas, alguns políticos da região, liderados pelo vereador Pitanta (DEM), continuam provocando a discórdia na tentativa de jogar a comunidade de Enseada contra os Guarani. Já foi assim durante o processo de demarcação, foi assim durante a desintrusão, foi assim nas conversas sobre a obra na BR 101. Acostumados a mandar no pedaço, eles não reconhecem a forma de viver dos indígenas, não aceitam o fato de que a terra está demarcada e buscam atrapalhar a vida dos Guarani ao máximo, esperando talvez que eles desistam e vão embora.

É a história “patas arriba”. Chamam de invasores aos donos originários de toda aquela terra. Uma terra que os Guarani nem reivindicam, e poderiam. Afinal, tudo era deles. Mas, em vez disso, se contentam com o espaço conquistado, que nem é o ideal. Agora, tudo o querem é viver em paz, do jeito deles.

É uma vida de sobressaltos. Quando não têm de viver esses momentos patéticos, precisam se defender de jagunços, de jornalistas mal intencionados, de políticos oportunistas, da justiça, da polícia, de tudo. O tempo todo na defensiva, como se fossem bandidos. Não são.

A farsa da “manifestação” armada pelo vereador é só mais um ataque dos tantos, cotidianos e sistemáticos. Porque a intenção é colocar medo, fazer com que se movam, saiam da terra, abandonem tudo. Afinal, quem pode viver assim, o tempo todo ameaçado, acossado?

O dia acabou e os manifestantes foram para casa. Jantarão felizes, por certo, comentando a ação contra os índios, os quais odeiam sem conhecer. Na aldeia, os Guarani discutem e se preparam. Sabem que não acaba aí. A terra é ouro para o branco.

Estamos no século XXI e no Brasil os colonizadores conseguiram exterminar grande parte dos povos originários. As pessoas brancas acham bonito vê-los no museu ou nas apresentações do dia do índio. Mas, não suportam saber que eles estão por perto, que se movem, que lutam, que buscam garantir seus direitos. Índio bom é índio quieto e distante. Mas o fato é que eles estão aqui e aqui ficarão.

Tenho dúvidas sobre se essas pessoas que são capazes de sair à rua, portando cartazes que chamam os indígenas de invasores, estão abertas ao diálogo. Tenho dúvidas. Mas, é preciso seguir tentando. Os povos originários, que chegaram a um número de 150 mil nos anos de 1960, praticamente a beira da extinção, agora já passam de um milhão. Levantam-se e assumem sua identidade. Querem viver em paz nos seus territórios. Para isso é preciso que o povo brasileiro os conheça, sem armaduras, de peito aberto, pronto para um encontro verdadeiro.

No velho Brasil colônia, dominado pela cobiça, isso não foi possível. Mas, hoje, muitos há que se solidarizam, que respeitam, que apoiam e que lutam junto. Essa é ainda uma longa caminhada. Mas, não há saída. Como dizem os chiapanecas, das montanhas mexicanas: “nunca mais o mundo sem nós”. E assim é. É preciso reconhecer o território originário, demarcá-lo e garantir que os povos vivam em paz. Mas, não nos iludamos. O que está por trás de ações como essa de hoje, na Enseada, é a velha luta de classes. Os indígenas, como os trabalhadores empobrecidos, estão no mesmo lado. O inimigo é o mesmo. E contra ele, vamos – como dizia o velho Quixote – travar uma longa e feroz batalha. 

Fotos e informações: Comunidade Guarani