Nosso mercado público, transformado para sempre...
Quem esteve na votação do Plano Diretor, em dezembro de 2013, no apagar das luzes do ano, sabe o que viu. No espaço dos vereadores, uma turba inquieta. Diante das falas de Afrânio (PSOL), Lino (PT) e Pedrão (PP) exigindo
novas audiências públicas, uma vez que o projeto estava todo alterado pelo
IPUF, os demais vereadores esbravejavam, balançavam as cabeças e sapateavam.
Não houve acordo. O projeto haveria de ser votado. Não importava que o mesmo
tivesse sido alterado, não importava que ninguém soubesse sobre o quê tratavam
as quase 700 novas emendas, nem importava que não tivessem sido entregues os
mapas. A ordem era aprovar. E assim foi, apesar dos protestos nas galerias. Com
o voto contrário dos três citados vereadores, os demais votaram de olhos
fechados, contra a população.
A pergunta que fica é: se votaram contra a população, a qual
deveriam representar, estavam a favor de quem? A quem interessaria aprovar um
Plano Diretor que descaracteriza totalmente a cidade, levando-a para um caminho
sem volta, ao estilo Miami? A quem interessaria a possibilidade de construir
espigões e seguir especulando com a paisagem e com as belezas naturais?
Pois a operação da Polícia Federal conhecida como “Ave de
Rapina” aponta algumas respostas para essa nossa questão. Projetos de menor
envergadura e de interesses menos custosos foram votados com o tradicional
pagamento de propinas. Relações perigosas entre os vereadores e empresas, outra
vez indo contra os interesses da população. Pagamentos variando de 5 a 100 mil
reais para funcionários públicos e vereadores, fraudando contratos públicos e
mudando as leis, garantindo vantagens para as empresas “amigas”.
Dos 23 vereadores, um está preso, 12 já foram indicados pela
polícia e dois ainda estão sob investigação, o que mostra a “qualidade” da Câmara
Municipal.
É fato que sempre me surpreendeu a eleição de determinadas
pessoas, com número expressivo de votos. Figuras que nunca tiveram qualquer
atuação comunitária, que nunca foram vistas em qualquer situação em que
estivesse em jogo a vida da cidade. Ainda assim, lá estavam, eleitas para
representar os cidadãos de Florianópolis. No rastro de boa parte das campanhas,
o que conduzia eram as benesses, ou a simples compra de votos, para ser mais
clara. No Brasil patriarcal, um favor, uma caçamba de brita, uma camiseta podem
ser moeda de troca, sem maiores esforços.
- Por que votou no fulano?
- Ah, ele me deu tal coisa! – Ou: Ele é amigo do meu pai. Ou
ainda: É meu amigão!
Mas, afinal, o que faz alguém que vende seu voto para
vereador, ou que vota simplesmente por amizade? Pois bem, coloca na Câmara
Municipal alguém que vai definir o destino da cidade, o que, em última instância
decide os destinos de todos nós. Os vereadores, apesar do quem pensa a maioria,
não é eleito para resolver o “nosso” problema pessoal de falta de empregou, ou
o calçamento da “nossa” rua, ou a arrumação do “nosso” esgoto. Ele vai decidir
sobre como a cidade vai ser no seu conjunto, incidindo sobre a vida de todos.
Foi assim com o projeto Cidade Limpa. Pode parecer uma coisa
boba isso de tirar ou por um outdoor, ou a instalação de radares, que são os
objetos da investigação policial. Mas não é. O projeto Cidade Limpa tem a ver
com como a cidade se organiza, como enfrenta a criação de necessidades induzidas
pela propaganda, como se relaciona com a lógica do consumismo. Os radares dizem
respeito à segurança das pessoas no trânsito, podem significar a diferença
entre a vida e a morte. São coisas sérias e importantes. E olha como foram tratadas?
Como uma moeda de troca de favores. Um voto por dinheiro. Ou seja, muitos
desses vereadores reproduzem neles mesmo a idêntica fórmula que usam para
ganhar os votos. Tudo se resume a um lucrativo mercado no qual só eles saem
ganhando.
Um ou outro realiza seus compromissos rituais, aprova um
calçamento aqui, uma obra ali, para ficar bem com seus eleitores. Mas o que
fazem por trás deles – e agora vimos que com lucro pessoal - é o que realmente
influi na vida de cada um.
Outro dia vimos nas redes sociais a indignação de muitos
moradores de Florianópolis com o novo Mercado Público, que agora, depois da
licitação levada a cabo pelo prefeito César Souza Junior , está completamente
descaracterizado. Empresas do tipo Bobs, ou de sorvete italiano, ocupam as
portas que antes vendiam panelas, comidas típicas ou artesanato, coisas possíveis de serem
desfrutadas por qualquer cidadão. A cara típica da cidade não existe mais
naquele lindo prédio amarelo, agora um pastiche da cultura local, exposto
apenas para os turistas que podem pagar até seis reais por uma bola de sorvete.
Pois todo esse processo deveria ter passado pela Câmara de Vereadores. Não
passou. E entre os “nobres” poucos levantaram a voz contra a forma atabalhoada como foi conduzida o processo. Omissão da maioria, calada pelos interesses.
Agora, feito o estrago, e expulsos os comerciantes que já
eram patrimônio imaterial da cidade, as pessoas se dão conta do que perderam.
Pois naqueles dias em que os movimentos sociais denunciavam o absurdo do
processo, que não levou em consideração os aspectos culturais, a maioria apontava
em acusação os que não queriam o “progresso” da cidade. E o progresso veio,
pela omissão daqueles que deveriam ser os guardiões dos interesses da
comunidade. O que fazer? Tudo foi destruído!
O mesmo se deu no processo do Plano Diretor, que haveria de
ser investigado também. Os vereadores Lino, Afrânio e Pedrão eram apontados
como os que queriam igualmente barrar o progresso da cidade, travando a
aprovação do plano desconhecido, ou quem sabe muito conhecido pela maioria que
o aprovou. O fato é que a vida da cidade toma outro rumo com esse plano.
Bairros como o Estreito e o Saco dos Limões terão suas populações adensadas de
maneira brutal, mudando radicalmente o cotidiano, com implicações na mobilidade
e na cultura. E todas essas mudanças são provocadas pela ação dos vereadores
que sustentam a irracionalidade que vem do executivo.
Agora a investigação sobre os componentes da Câmara está a
todo vapor. Um ou outro acabará preso, outros se safarão, e a vida seguirá seu
curso. Resta saber se a população de Florianópolis também vai seguir sua vida
como se nada tivesse passado, como se não importasse muito um vereador cair na
malha da corrupção. Tudo pode ser facilmente esquecido com algum novo escândalo.
Mas pode ser que esse caso sirva como uma pedagogia, a
construção de um caminho. Pode acontecer de as pessoas começarem a entender que
o voto num vereador é coisa que tem reflexos duradouros na vida de todos. Que o
voto não pode ser comprado por um simples churrasco, ou uma carrada de areia. O
vereador precisa ter o compromisso não com a rua ou o bairro, mas com a cidade
inteira. Ele vai definir coisas que fazem parte da grande política, que colam
no cotidiano da gente, que modificam as paisagens, que mudam uma cultura, um
modo de vida. Imaginem se os vereadores alteram o zoneamento de um lugar de
residencial para comercial. Muda tudo! A coisa é muito séria. É claro que o
voto num vereador não define a vida, mas nesse regime representativo no qual vivemos têm a sua importância. Daí o cuidado.
Não tenho muitas ilusões quanto às punições aos envolvidos
na operação Ave de Rapina. Como o que aconteceu na famosa “moeda verde”, quando
empresários conhecidos foram envolvidos e nada aconteceu, com eles aí,
circulando nas colunas sociais, como pessoas nobres e boas. Mas tenho a ilusão
de que as pessoas possam pensar sobre as coisas e começar a perceber quem de
fato representa os desejos da cidade na Câmara de Vereadores. E quando os hoje
vereadores Lino e Afrânio, os quais têm minha confiança, defenderem isso ou
aquilo, possam ser ouvidos como aqueles que estão discutindo a favor da cidade,
da maioria da população. E não como uns moleques que querem “atrasar” o
progresso de Floripa.
Uma cidade desenvolvida não é aquela que tem os prédios mais
altos, o trânsito caótico, muitas indústrias e outros empreendimentos
monumentais para uso quase exclusivo dos ricos.
Uma cidade desenvolvida é aquela que é boa para se viver, que mantém
viva a cultura, que respeita o outro, que garante uma movimentação fácil e uma
existência segura.
Sigo acreditando que essa vida da gente é um largo
aprendizado e que, um dia, haveremos de ficar livres da rapinagem, seja dos
políticos ou dos poderosos. Mas, para isso, é claro, precisaremos bem mais do
que aprender sobre o predador voo da ave.