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Eu me lembro dessa menina. Era quieta e introspectiva. Gostava de ficar pelos cantos, escondida com algum livro na mão, viajando sem sair do lugar e descobrindo maravilhas: os etíopes, os astecas, os guarani, os mitos gregos, os árabes. Era fascinada com José de Alencar e Simões Lopes Neto. Amava Simbad, o marujo, e talvez venha daí seu eterno desejo de viajar. Tinha poucas bonecas e gostava de subir em árvores. Podia ficar uma manhã inteira observando algum bichinho do quintal. Também se distraia brincando na selva criada pelo seu irmão menor, cheia de bonequinhos do Tarzan e seus amigos. Acreditava piamente em seres de outro planeta (ainda crê) e, nas noites, os buscava no céu, entre apreensiva e esperançosa.
Amava passar as férias na casa do vô Dionísio, no interior de João Arreghi, e enchia os dias com ele, no silêncio da lavoura de arroz, entre taipas e chamichungas. Pouco falavam, só sentiam e compartilhavam, trocando sorrisos quando os quero-queros passavam em gritaria. E nas madrugadas, na beira do rio Ibicuí, pescavam, silentes e reverentes diante da grandiosidade da noite estrelada. Naqueles dias essa menina sonhava com nada, apenas vivia a imanência da vida, sempre de maneira profunda e comprometida.
Tinha por companheiro o irmão menor, parceiro de brincadeiras e de aventuras. Com ele aprendeu a arte da gargalhada e o segredo da cumplicidade. Sempre teve os olhos de lâmpada, admirada diante de cada pequeno detalhe da existência. E, por viver mais para dentro que para fora, entendeu a força da ternura e a capacidade que ela tem de quebrar as mais duras carapaças. Essa menina ainda vive em mim, para minha profunda alegria, e assoma nos dias tormenta, para me lembrar que por mais violenta que seja a tempestade, o dia volta, e com ele o sol.
Nesse dia da criança, que os erês (tudo o que existe de bem, puro e belo) dancem e nós com eles...
Os dias tem sido tristes, de muita amargura e solidão. Cuidando do pai, acabo entrando ainda mais para dentro de mim. A vida se move entre o trabalho e depois o cuidado com o pai e com tudo o mais: a casa, os cachorros, os gatos, as flores, a horta, a compostagem. Tudo tem de estar limpo e seguro pra que o pai possa transitar tranquilo. A carga de trabalho triplicou e depois da UFSC o tempo é todo pra ele. Cuidar de um velhinho exige não apenas o trabalho braçal, mas toda uma carga de esforço emocional que esgota. Por exemplo: não posso demonstrar tristeza. Porque se ele sente que estou triste, se preocupa e fica sem chão. Então, entrando no portão, o espírito precisa ficar leve. E como é duro encontrar leveza nesses dias tristes. Mas, seguimos em frente, tentando tornar, pelo menos a vida dele, feliz.
Ontem, surpreendentemente, cheguei a casa e ele já estava no banho. Bem alegre sob o chuveiro. Estranhei, já que o banho é sempre uma grande e penosa tarefa. Mas, tudo bem. Beleza. Segui a rotina, limpando banheiro, casa, comida para os animais, roupa no varal, pano no chão. Seis horas fui preparar a janta. Rotineiramente enquanto estou no fogão, dou a ele um copo de vinho, para “abrir o apetite”. Fiz como sempre. Ele estava vendo televisão.
Mexia nas panelas, bem concentrada, quando ouvi sua voz cantarolando: tan tan tan lalalala... Ora, que surpresa! Virei-me para acompanhar sua cantoria e pasmei: ele não apenas estava cantando como dançava, erguendo os pezinhos e mexendo os braços. Minha alma se abriu numa torrente de alegria e todo aquele peso que andava carregando desde o domingo sumiu. Larguei as panelas e fui abraçá-lo, apertando-o por longos instantes. Coração a coração. Talvez, lá no fundo, ele soubesse o quanto eu precisava daquela ternura. Depois, comecei a dançar e cantarolar com ele. Rimos muito.
A vida e sua imanência....