Seu Getúlio, com Amaro Manoel em mais uma festa no rancho
O bairro do Campeche, em Florianópolis, é um lugar especial.
Aqui convivem histórias de belezas e de lutas. E nessas areias vicejam pessoas
especiais. Foi no Campeche que os aviões da Aeropostale pousaram num tempo
distante e foi aqui que os pés de Saint Exupery caminharam entre os pescadores.
Foi o Campeche o primeiro bairro da
cidade a construir um plano diretor, para si e para todos, e foi o Campeche que
abrigou o Bar do Chico, espaço de construção de tantas batalhas, morada das
lutas e das festas comunitárias.
Por isso, quando vim morar no Campeche, tinha certo temor:
como entrar nessa comunidade tão antiga e tão peculiar? Como, vinda desde fora,
ocupar espaço no coração e na casa de pessoas tão significativas para mim e
para a cidade. Já conhecia o Lázaro Daniel, o Hugo, a Débora, Janice, Fernando, parceiros de
lutas na cidade. Mas, a planície era grande, e os núcleos nativos são fechados.
Não seria coisa fácil.
Pois foi bem na beira do mar, aberto para a imensidão, que
encontrei o caminho. O rancho de canoa. Ali, um pescador, conhecido como filho
do seu Deca, iniciava um projeto de música com a juventude local. Pescador, músico
e aposentado da Aeronáutica, ele decidiu fazer do rancho um espaço de ensino,
buscando atrair os jovens para uma vivência comunitária mediada pela música.
Tinham acabado de chegar de Minas, dois meninos que vinham
viver comigo, atrás do sonhos do estudar, um sobrinho de sangue e outro do coração.
Estilo meio bicho-grilo, cabelo comprido, e aquele jeito quietinho e cismador. Falei
do projeto e lá foram eles procurar o pescador para se inscrever. Bateram na
casa dele. Pediram uma vaga. Ele olhou, desconfiado, aqueles guris estranhos.
Franziu a testa e disse: “as vagas já foram preenchidas”. Os guris amuaram,
carinha de tristes. Ele pigarreou, fez um suspense e finalizou: “mas vou dar
uma chance pra vocês, mineiros”.
No dia seguinte lá estavam os guris no histórico rancho de
pesca, começando, com seu Getúlio Inácio, esse projeto de música no rancho da
canoa, que sobrevive até hoje. Foi ali que o Rubens aprendeu a tocar clarinete
e o Renato, o sax. E foi ali que a vida do Campeche começou a se abrir também
para mim. Cada apresentação dos músicos, cada festa, cada ensaio ia aproximando
a gente – de fora – dos locais. Os pescadores que rodeavam o rancho, ajudando
no projeto, os moradores que chegavam para a missa de abertura da pesca, os
nativos históricos, todos e cada um abrindo espaço para que a gente também
pudesse vivenciar esse sentimento de pertencimento. O rancho do Getúlio foi o portal.
O trabalho do seu Getúlio com a gurizada e com a cultura
local foi crescendo a tal ponto de que hoje ele não é mais apenas o filho do
seu Deca, outro personagem histórico local. Ele é o Getúlio, tem luz própria,
palmilhou o próprio caminho construindo belezas, na terra e no mar. Vivencio
isso todos os dias quando vejo meu sobrinho saindo para aula, na Faculdade de
Música da UDESC, cria daquele rancho e do sonho do seu Getúlio.
Vejo Getúlio Inácio como mais um patrimônio do Campeche.
Dessas pessoas imprescindíveis que lutam sistematicamente pela manutenção da
nossa cultura, das nossas tradições mais bonitas. Um morador apaixonado que sempre teve esse
gesto generoso de acolhimento para com os diferentes. Um pescador que abre o
rancho para a vida, um músico que de maneira dadivosa entrega o que aprendeu,
um militar que conserva o gosto pela
disciplina e pela vida ordenada.
Seu Getúlio é o típico ilhéu. De pouca fala e
poucos gestos de afeto, mas ele é pródigo em gestos poéticos, simbólicos, cheios de
amor e generosidade. Como é comum no Campeche, existem as rixas e os
desacertos. Seu Getúlio faz parte de alguns. E, ainda que existam as tretas,
não dá para negar o papel que ele hoje representa na comunidade.
Sempre que o vejo passar, de passo lento, em direção ao
Rancho, meu coração transborda de alegria. Por um dia ter encontrado aberta a porta
do rancho e por ter achado o caminho do coração do Campeche.
Obrigada, seu Getúlio...