sábado, 21 de setembro de 2013

Na rotação da luta pela terra




“Parafuso” aperta laços fraternos no plantio de um tempo novo

Por Elaine Tavares

Ele aparece vez em quando. Baixinho, óculos de grau e riso largo. Passo rápido, camisa bem passada e a indefectível maleta preta. Dentro dela, o sonho da terra repartida. Livros, papéis, panfletos e toda a sorte de escritos que tratam da Reforma Agrária. O nome, estranho, ninguém conhece. Dizer Agnor não provoca reação. Mas, o apelido, é sempre seguido de um riso doce, de reconhecimento seguro. Parafuso! O homem do MST.

Agnor Bicalho Vieira, 68 anos, nasceu no interior do Espírito Santo, na pequena e rural Muniz Freire. De pai português e mãe cabocla, é o oitavo filho dos 13 que vieram ao mundo. Cedo conheceu o trabalho. Desde os seis anos já estava na lida, roçando terra arrendada. Queria estudar, mas nunca passou da terceira série, pois os pais migravam muito, na busca de serviço. Aprendeu a ler sozinho, na marra, tendo como cartilha as escrituras sagradas. “Naqueles dias eu era oprimido pelo credo do ‘Jesus salva’. Tinha que ajoelhar no milho, era obrigado a crer. Sabia de cor a doutrina do catecismo”.

O menino Agnor, oprimido na fé, acabou sendo um fervoroso pregador. “Eu reproduzia a opressão. Era uma coisa louca”. E foi nesse mundo da igreja que conheceu aquela que viria ser o amor de sua vida, Maria Helena. Numa das andanças pelas fazendas do interior do Paraná, apaixonou-se pela bela catequista. Unidos na fé e no amor, casaram. Queriam andar pelo mundo salvando almas. Era o ano de 1969, a ditadura comia solta, mas eles ainda estavam cegos.

O casamento tirou Agnor do campo. Como o pai da noiva não queria a união, eles migraram para São Paulo. Lá, a vida foi dura demais. Vieram os filhos e também a miséria. Agnor trabalhou na construção civil. Morava nos alojamentos insalubres enquanto a mulher ficava na cidade, num cômodo alugado. Então veio o desemprego, o despejo, a dor. Os filhos tinham fome. “Foi um tempo difícil, mas de muito aprendizado. Eu era peão, vivendo no meio do povo e isso me ajudou a entender melhor a vida do meu país”.

Em 1973 veio para Santa Catarina, onde já viviam alguns de seus irmãos. Desde então, a vida mudaria para sempre. Morava em Araquari quando conheceu um desses “padres vermelhos”, que falavam de um outro Jesus e organizavam as Comunidades Eclesiais de Base. Pequenos encontros nas capelinhas que diziam de um deus amigo, irmão, que incitava ao povo a construir aqui, na terra, o paraíso, de terra repartida e vida plena. Foi ali, também, que ganhou o apelido, Parafuso, que o acompanha até hoje. “Meu irmão era conhecido como Prego, eu era menor que ele, então fiquei Parafuso”. Naqueles dias, ele ainda não fazia a ligação entre a teologia da libertação e a política. Mas, meio sem saber, de pregador ortodoxo da palavra de deus, passou a organizador de gentes, um trabalho político coletivo que desembocaria na criação dos mais importantes movimentos populares do país. 

Em Caçador, no ano de 76, é criada a Comissão Pastoral da Terra e lá está o Parafuso, na coordenação. Depois, em 78, em João Pessoa, num encontro nacional, ele, pela primeira vez, ouve falar de Karl Marx. “Tivemos uma conversa com o Leonardo Boff e o que ele disse me levou a outras leituras. Vi que a classe dominante usa a bíblia para oprimir, mas que, lida e comparada com os escritos de Marx, a palavra de deus pode ser revolucionária. Isso iluminou a minha fé, me deu outro rumo. Devo isso ao Boff”.

É na CPT que Parafuso aprende que, luta mesmo, só no meio do povo. Não é à-toa que, nas reuniões e assembléias ele insistia em discutir a organização dos trabalhadores. “Eu lembro que a gente participava da luta contra Tucuruí e Itaipu e outras questões ligadas a terra. E foi numa tarde de discussão, embaixo de uma mangueira, que nasceu a idéia do MST. Com a construção das barragens, mais de 30 mil pessoas poderiam perder suas terras, outras tantas morreriam. A gente queria que a igreja interferisse, denunciasse ao país. Deu um bafafá, os bispos não queriam fazer a denúncia. Chamei todos de covardes, pois só Dom Pedro Casaldáliga e Dom José Gomes aprovavam a idéia. Quase apanhei”.

Naquela noite de confronto com a cúpula da CPT, em 1981, um grupo de 40 pessoas decidiu ficar até altas horas discutindo como articular uma luta poderosa pela terra. Entre eles estavam Josimo Tavares e João Pedro Stédile. Fizeram listas de endereços, pensaram estratégias e poucos dias depois iniciavam a caminhada para a formação de um movimento. Na volta para casa, Parafuso, junto com José Fritsch, já tinha como missão articular os cinco estados do sul. Um trabalho de organização que durou dois anos.

Parafuso conheceu a luta dos despejados de Nonoai, dos acampados da fazenda Burro Branco e dos camponeses da Encruzilhada Natalino. Todas eram experiências de luta do povo sem-terra. Foi a partir daí que se pensou na estratégia de montar acampamentos com as famílias que não tinham terra. E então, em 1984, no mês de janeiro, em Cascavel, numa reunião que juntou perto de 80 pessoas, representando 12 estados da federação, nasce o Movimento dos Sem-Terra. A primeira ocupação organizada por eles foi a da fazenda Santa Idalina, no Mato Grosso, envolvendo mais de mil famílias de “brasiguaios” (moradores na fronteira com o Paraguai). “Naqueles dias, a gente era muito transparente, falava das ocupações nos botecos, nas igrejas, então, quando a gente chegava, já estava lá a polícia”.

Mas, a prática foi qualificando. Onde era detectado o erro, havia a discussão, o estudo. A duras penas foram evitadas as divisões, as tendências, o caciquismo, tudo para que o movimento crescesse de forma unitária, coesa. Parafuso esteve sempre ali, na luta. Acredita que o Brasil, a América Latina, têm um poder imenso na formação de um outro tempo. “No dia em que os campesinos disserem não ao império ianque, nós botamos fogo na América”.

Hoje ele olha para a caminhada que fez, desde quando era um pregador da palavra de deus, ortodoxo e fanático, até o homem que tem o MST marcado na alma, e se emociona. “Eu me construí na luta. Sofri muito envolvido com o partido, com o trabalho, botando meus filhos para trabalhar na roça ainda crianças, deixei minha família muito só. Mas, hoje, sei que valeu a pena. Tenho filhos maravilhosos, todos envolvidos na luta, e tenho minha mulher, companheira, firme do meu lado”.

Parafuso, além do trabalho no MST, também foi um dos fundadores do PT e chegou a concorrer a deputado estadual e federal. “Não me elegi e creio que foi bom. Talvez eu tivesse sido cooptado pelo parlamento. Hoje desacreditei da luta via parlamento. Foi melhor ter ficado 100% MST. Foi como fazer mestrado e doutorado junto dos trabalhadores”.

O homem do MST é um homem duro. Diz ele que nunca havia chorado na vida. Apenas uma vez isso aconteceu. Quando foi homenageado pelo MST e Jaime Amorim falou de sua mulher, Maria Helena. “Ele disse: - Parafuso conciliou a luta e a família. Mas a responsável é a mulher que ele tem. Foi aí que chorei. Porque era verdade. Nas minhas andanças, eu chegava na minha casa, com a mala cheia de roupa suja, e já tinha outra, com roupas limpas, em cima da cama, pronta para eu ir adiante. Minha mulher é tudo pra mim”.

A família de Parafuso é o seu maior tesouro. Um filho é dirigente do MST, uma é médica em Cuba, outros dois são músicos, outro trabalha no campo e uma filha é professora. Além disso, tem uma garotinha de 16 anos, adotada. “Todos estão na luta”, diz, com orgulho.

O dirigente do MST segue seu caminho, ligeiro, seguro. Quer a vida digna e não vai descansar enquanto não vier. “Não somos nós que rompemos a ordem. Quem faz isso são os dominantes quando não dão saúde, educação, quando impõem a fome. O sistema capitalista é uma planta de ciclo vencido. Nós, do MST, plantamos uma planta nova, que vai vingar...”


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A dor do outro


Tenho um amigo que diz que a dor singular não deve nos comover, que precisamos atentar para o coletivo. Mas, adelmiana que sou, é do singular que eu caminho para o universal. Talvez, por isso, a dor do outro, que tem nome e sobrenome, me toque tão profundo. Penso firmemente que na história de uma pessoa singular está escondido o mundo. Daí que toda história pode ser um caminho para se entender o universal. 

Na madrugada dessa sexta, alguém, talvez um pequeno grupo de jovens, agrediu de forma brutal um homem bom. Não sei o seu nome, mas todos os dias eu o vejo. Sentado como um rei africano, muito ereto, olhar fixo em alguma coisa que me escapa. Seu rosto é como uma esfinge e os olhos, perdidos, são como um lago profundo, escuro, e repleto de imagens que só a ele compete ver. O cabelo é branco e comprido. As roupas em trapos. Ainda assim, há uma majestade nele. Não o vejo pedindo, ou falando com alguém, nada. Sempre que passo no centro lá está ele, sentado, impávido, mergulhado no mundo interior. Hoje pela manhã o encontraram, o rosto sangrando, o olho vazado. “Não sei o que aconteceu. Eu acordei assim”. 

Testemunhas falaram de quatro jovens a dar-lhe pontapés. E ele, tão abandonado em si mesmo, que nem se apercebeu. Chamam-no de o “Barba”, por ostentar uma barba longa. Não fala com ninguém, ninguém sabe de sua história. É um homem só. Ao vê-lo ali, indefeso e assombrado com a maldade humana, bate aquela desesperança com a raça. O que leva um guri a ver um homem pobre como um nada? Por que aquele que está na rua, sabe-se lá porque, precisa ser eliminado? O que temem os que veem os pobres como lixo? 

O Barba se foi para o hospital. Pode ficar sem a visão. Os caras podem nunca serem encontrados, afinal, “era só um mendigo”. E se forem, pode acontecer como o que passou com aqueles guris que queimaram o índio Galdino, ou seja: nada. O Barba certamente voltará para a rua, e sentará ali no mercado do mesmo jeito, altaneiro e ensimesmado. Mas a nossa cidade já não será mais a mesma. Coisas como essa são pontos de viragem. Alguma coisa se perdeu hoje nesse ataque tão covarde... E é aí que a dor do Barba se universaliza, porque coloca em xeque essa sociedade bruta, que coisifica as pessoas e elimina as que, de alguma forma, lhe incomoda. 

 E a gente fica assim, impotente, pensando que a vida é um sopro, um mísero sopro...

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O 20 de setembro




É sempre bom que se relembre o fato de que gauchismo não é algo que se incorpore só por se ter nascido no Rio Grande do Sul, um dos estados mais ao sul da federação brasileira. O gauchismo é, a meu juízo, um jeito de viver daqueles que cresceram na “campanha”, um espaço geográfico que toma parte do Rio Grande, Argentina e Uruguai. É o caminho cheio de horizontes, o descampado tomado pelo vento minuano, as sangas, o rio Uruguai e as emas. É coisa entranhada no corpo, com cheiro de tosquia, bosta de vaca e cavalo. É sentimento de imensidão e vertigens, típico daqueles que vivem nas bordas, veredas, hoje fronteiriças, mas que até 500 anos atrás eram estradas livres dos povos minuano, tapes e charrua, a gente originária que povoava o lugar antes da chegada dos espanhóis e portugueses.

Por isso que quando chega o 20 de setembro - data em que no Rio Grande se comemora o dia do gaúcho - eu me permito vibrar à custa desse gauchismo que vive em mim, nascido, como eu, na barranca do rio Uruguai. Esse rio atávico, essa veia larga, de onde, desde guriazinha, já observava, reverente, os balseiros, os pescadores e as lavadeiras na faina diária. Conhecedora da história da Revolução Farroupilha, aprendida bem antes de aprender a andar, sei muito bem que a revolta gaudéria do 1835 foi um levante de fazendeiros, de homens ricos, liberais, que buscavam um brecha na fechada economia colonial. Igualmente sei que, junto com eles, lutaram na guerra independentista os lanceiros negros, tropas formadas por escravos que se jogaram na guerra almejando sua própria liberdade. É certo que foram enganados e traídos pelos generais, mas como negar a eles a reverência por toda a bravura que empreenderam nos dez anos de existência da república farrapa? Também é importante lembrar a ação libertária e generosa dos índios charrua, que tinham passado para o lado de cá do rio depois da traição de Salsipuedes, na Banda Oriental, e que assumiram a causa revolucionária, colocando nas batalhas o seu corpo em oblação. E, como eles, também os minuano e os guarani. Ainda há que se lembra das gentes simples, os paisanos livres, que avançavam na batalha, incitados pelos ventos de transformação que vinham desde a parte de cima da América, desde os anos 20, com Bolívar, e depois com os vizinhos San Martín (da Argentina) e o grande Artigas ( da Banda Oriental).

Em nome de toda essa gente que se moveu na revolução é que se deve reforçar que os fazendeiros oportunistas não semearam no vazio. Havia toda uma terra já arada de desejos de vida plena, livre e cheia de bênçãos. E foi nessa senda que os seguiram a gente maragata, na pureza e na valentia. Mas, não dá para esquecer que muitos dos que se bateram em combate nos campos do sul não estavam movidos nem pela pureza, muito menos pelas demandas de Bento e sua gente. Alguns tinham bem claro que havia uma guerra dentro da guerra e que haveria de chegar a hora em que os "generais" do latifúndio também haveriam de ser derrubados. Homens e mulheres que morreram nas batalhas, creio eu, talvez muito pouco se importassem com o mercado do charque ou com possibilidades de arrancar uma ou outra coisa do governo imperial. Muitos estavam firmemente empenhados da vontade de construir uma república, um novo jeito de organizar a vida. Sabiam das grandes guerras já travadas em toda a América, cujas histórias se contavam nos galpões, nas noites frias de minuano. E, quem já pode percorrer aquelas campanhas nas noites de inverno, sabe que, por vezes, dá até para ouvir as risadas de pé de fogo, e os sonhos verbalizados por aqueles valentes que se jogaram, em farrapos, na aventura de tecer um grande meio-dia.

E é esse povo de coragem que eu reverencio no 20 de setembro. Que me importa Bento Gonçalves, Canabarro, Almeida, Neto ou outros generais do latifúndio. Eles seguem sendo desvelados pela história nas suas vilanias, traições e cobiças. No 20 de setembro eu cevo o mate pelas gentes simples, pelos valentes que embarcaram na grande aventura da liberdade. Homens e mulheres, irmãos e irmãs de Bartolina, Micaela, Tupac Amaru, Tupac Catari, Bolívar, Manuela, Artigas, Juana Azurduy.  É essa procissão de gente que eu vejo passar diante dos meus olhos gaudérios. E é para eles que tiro respeitosamente o chapéu, porque ajudaram, com seus corpos, a palmilhar essa estrada ainda inconclusa da nossa independência como povo e como nação.

Digam o que disserem, eu faço cerimônias no 20 de setembro. Canto canções, acendo incensos e agradeço. Não aos fazendeiros que acabaram se achicando em acordos econômicos ao fim de 10 anos de luta, mas aos verdadeiros protagonistas dessa saga histórica que, repetidamente, acende em mim os candeeiros da paixão. Viva o povo farroupilha! Brancos, negros, índios, essa gente valente que fez o Rio Grande ser o que é.