sábado, 25 de janeiro de 2020

Os indígenas e os trabalhadores


Nos fundões do Brasil os jagunços armados invadem aldeias, matam índios e intimidam famílias. São “trabalhadores” da morte, a soldo dos fazendeiros ou mineradores ricos que provavelmente nunca sequer pisarão nas terras que querem tomar. Os jagunços estão ousados, sabem que a polícia, que deveria proteger as pessoas, também tem a mesma intenção que eles: servir aos poderosos. E que dentro da corporação vão encontrar pessoas que, como eles, consideram aqueles índios uma gente suja e inútil, praticamente não-humanos. Provavelmente também devem ter ouvido o presidente da nação dizer algo assim. Então, estão seguros, protegidos. E sorriem quando matam um jovem guerreiro. Poderiam até pendurar a sua cabeça, como um troféu. Não o fazem porque ainda não podem. Quem sabe daqui a pouco.

Nas cidades, uma gente amargurada vê na televisão sobre as mortes. Poucos sofrem ou se indignam. Pensam igual aos jagunços e aos policiais. Os índios não são humanos. São índios, alguma coisa entre o bicho e nojo. Melhor que morram, imaginam. Assim, deixam de incomodar quem quer produzir. Essa é, afinal, a mensagem que recebem dia e noite, por todos os canais de comunicação. Assim aprenderam na escola, onde o índio sempre foi só um tema do passado, dos tempos de Cabral. Hoje não há que ter índios, pensam, deviam se incorporar aos “brasileiros”, os tempos são outros. Para que querem tanta terra? É o que se perguntam, repetindo pergunta alheia, sem entender muito bem os fatos e sem ter informação alguma sobre o território originário, hoje apenas 12% do torrão nacional.

E assim vai seguindo o bonde do terror sobre os povos indígenas, tanto nos grotões como nos salões. Só em 2019 foram sete indígenas assassinados. Todos em conflitos por terra. Há quem diga: Mas, só sete? Sim. Sete. Sete universos contidos num corpo. Seres com sonhos, com esperanças, com família. Isso sem falar nas sequelas de outras tantas violências como perseguições, ameaças, surras, violações, torturas. Também não contabilizamos aqui os suicídios de indígenas que acabam não suportando mais existir de um jeito que não é o que lhes cabe viver. Nos últimos 10 anos, 500 tiraram a própria vida, a maioria gente muito jovem, meninos e meninas sem saída no mundo do capital. 500 almas, 500 universos contidos num corpo.

Mas, entre tantas desgraças acumuladas sobre os trabalhadores, quem realmente se importa? Cada um trata de lamber suas próprias feridas. E o índio segue sendo alguma coisa distante, um bicho sem alma. O verniz da “democracia racial” está totalmente descascado e os monstros se mostram às claras, sem medo de punição ou vexação pública. Sentem que estão entre iguais. A face perversa do colonizador/explorador assoma no Brasil atual, sem pejo. O que antes se escondia, agora se desvela.

Uma olhada mais profunda sobre a questão indígena no Brasil e já se pode perceber que muito pouca coisa mudou desde a nefasta chegada dos portugueses ao porto seguro da Bahia. Os povos originários com suas vidas comunitárias, sua cultura panteísta, seu respeito à natureza não serviam para a lógica de exploração que vinha se implantar, e não servem hoje para o capital. Eles são seres inúteis para a produção capitalista porque não produzem mercadorias, nem querem produzir. Em vez de ficar 15 horas dentro de uma fábrica produzindo riqueza para um patrão eles preferem ficar tomando banho de rio. Isso é um insulto à lógica do capital. E passa a ser um insulto também para boa parte da massa trabalhadora que olha para eles com ódio, rancor e inveja. O capital acirra a guerra intra/classe, afinal, tanto os trabalhadores quanto os índios são vítimas do sistema de exploração que rege a vida do planeta. Melhor que se odeiem, assim não se unem para acabar com a farra dos ricos.

E assim segue o baile.

Mas haverá de chegar o dia no qual os trabalhadores empobrecidos perceberão que estão no mesmo andar que os indígenas no navio da vida, e que querem a mesma coisa: vida boa, bonita, farta, com trabalho coletivo e banho de rio. E quando esse dia chegar não haverá mais jagunço e os poderosos serão varridos.

Sei que posso pouco, mas no que posso estou com meus irmãos originários. Somos um. Espero que os demais que me leem, possam também compreender.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Novo ataque à UFSC - Entenda o caso



A Corregedoria-Geral da União publicou uma portaria na qual pune o reitor da UFSC, Ubaldo Balthazar, com suspensão do cargo, e ainda aplica uma advertência à vice-reitora Alacoque Lorenzini Erdman e ao Diretor do CSE, Irineu Manoel de Souza. Segundo a portaria a punição diz respeito ao fato de o reitor ter nomeado Ronaldo Davi Viana Barbosa como Corregedor-Geral da UFSC, depois de discussão e aprovação no Conselho Universitário.

Para compreender esse episódio é necessário voltar a outro, que acabou causando, inclusive, a morte do reitor Luiz Carlos Cancellier, em dois de outubro de 2017, quando ele se atirou do sétimo andar do Centro de Compras Beira-Mar. Cancellier tinha sido denunciado por obstrução de justiça, justamente pelo então corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado. A denúncia levou a uma operação policial na UFSC que prendeu o reitor e o submeteu a uma série de constrangimentos e humilhações, culminando com a decisão de afastá-lo da universidade. Cancellier se viu envolvido em um escândalo de desvio de 80 milhões de reais, conforme divulgava a mídia da época e que, depois, com o andar da carruagem caiu para 300 mil. Notícias enviesadas e mal apuradas levaram a manifestações bastante fortes da comunidade universitária contra Cancellier, a tal ponto de até no velório do reitor haver pessoas, aos gritos, desrespeitando sua memória.

Cancellier, que havia sonhado uma vida inteira com a reitoria, viu sua reputação ser destruída em poucos dias. Não podia falar com os colegas, não podia sequer entrar na UFSC. Seu gesto desesperado chocou a instituição que tinha sido muito lenta na defesa do reitor. Nos dias que sucederam a denúncia e a prisão, poucos se manifestaram em apoio e o nome de Cancellier ficou manchado como aquele que havia roubado os 80 milhões. Na verdade, a denúncia fora por obstrução e não por roubo. O que o corregedor alegava era que Cancellier sabia do uso indevido do dinheiro e não investigou o caso, apesar de ter sido alertado. Mas, para a mídia e para a opinião pública isso não estava claro. O reitor aparecia como um ladrão. Cancelier não suportou.

Os dias que se seguiram a morte de Cancellier foram pesados na UFSC. A investigação policial não apresentava qualquer prova sobre a suposta obstrução realizada por Cancellier e a instituição foi percebendo que todo o espetáculo montado durante a prisão tinha sido uma exagerada ação que beirava o desmando e o abuso.

Internamente, o corregedor-geral Rodolfo Prado passou a ser visto como o responsável pela morte do reitor, visto que partira dele a denúncia. Ele bancou a denúncia que fez e seguiu trabalhando normalmente, mas logo pediu afastamento por licença médica e depois mais 30 dias de férias. A reitoria decidiu por exonerá-lo do cargo em fevereiro de 2018, alegando a necessidade da manutenção da harmonia após o tumulto causado pela Operação Ouvidos Moucos. A UFSC ficaria então sem um corregedor-geral. Assim, depois da exoneração de Rodolfo, o reitor decidiu nomear Ronaldo Davi, que já era corregedor auxiliar, para assumir como corregedor-geral. A CGU foi consultada e declarou não haver nada desabonador contra ele. Por conta disso, quando encerrou o mandato tampão, Ronaldo foi reiterado como corregedor-geral, para novo mandato.

Nesse ínterim as disputas envolvendo o cargo seguiam se fazendo e Ronaldo chegou a ser denunciado em um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), por não cumprimento de horário e retirada de documentos sem autorização quando ainda era corregedor auxiliar. Esse PAD foi aberto na CGU com alegações de que o clima era instável na UFSC por conta da operação que levara o reitor à morte. A reitoria da UFSC alega que não sabia desse PAD aberto em maio de 2018, quando Ronaldo já era o corregedor-geral, e só foi informada numa segunda nota técnica encaminhada em 2019, a qual solicitava que Ronaldo não fosse reconduzido como corregedor-geral.

Um parecer sobre as notas da CGU foi solicitado pelo Conselho Universitário e escolhido o relator: o diretor do CCJ, professor José Isaac Pilati, que coloca por terra as alegações da CGU considerando as notas técnicas equivocadas e sem sustentação jurídica. Assim expressa o documento: “com muita habilidade, o texto (no caso, da segunda nota técnica) inseriu ocorrência posterior, para vincular a nomeação perfeita a um processo administrativo disciplinar movido a poster/or/ contra ele, Ronaldo; a misturar as coisas de modo a extrair consequência jurídica estranha ao caso, ou seja, para pleitear a anulação ab ovo da nomeação válida e perfeita ao seu tempo”. E, com base na argumentação do relator, o Conselho decidiu por manter a decisão de nomeação de Ronaldo como corregedor-geral para mais um mandato de dois anos.

Ocorre que a CGU não aceitou a decisão do CUn e decidiu por afastar o corregedor nomeado das funções de técnico-administrativo por 60 dias, tentando impedi-lo também de entrar na UFSC . O reitor e o Conselho Universitário consideraram a decisão da CGU como um ataque à autonomia e decidiram mantê-lo no cargo. E foi isso que acabou gerando o Processo Administrativo contra o reitor e todos os que participaram na sessão do CUn, que agora culmina com essa punição.

Na época, a maioria dos conselheiros, ao ser notificada do PAD, que é uma investigação interna, decidiu entrar na Justiça contra a decisão, pois, afinal, tinham votado num parecer apresentado pelo relator do tema, um jurista, e que garantia ser completamente legal a indicação de Ronaldo. O processo se extinguiu, mas a CGU conseguiu desmembrá-lo e reabriu novo PAD contra aqueles que não haviam ingressado na justiça, no caso, os três agora punidos. Lendo os documentos, que estão disponíveis na plataforma Solar, parece claro que a UFSC tomou a decisão acertada, sem qualquer dolo para a instituição.

Na imprensa, como sempre, o caso aparece como uma coisa isolada e as pessoas envolvidas são apresentadas como criminosas. A verdade é que o tema tem suas implicações políticas e o pano de fundo é a luta pela autonomia da universidade, que está na Constituição, no artigo 207, mas que mesmo assim encontra dificuldades para ser reconhecida ou respaldada. É na verdade mais uma batalha na guerra deflagrada contra as instituições federais de educação. Por isso que dizer meias-verdades, ou não contextualizar a notícia, pode provocar ainda mais desinformação.

A imprensa segue sendo irresponsável.

O diretor do CSE, Irineu Manoel de Souza, que na época da abertura do PAD decidiu não entrar na Justiça, acabou penalizado justamente por ter confiado no processo interno. Ele afirma que o conselheiro tem por obrigação votar em qualquer processo, contra ou a favor, e seu voto é balizado pela decisão apresentada pelo relator. Na época, nada havia no parecer do relator que significasse irregularidade, daí o seu voto favorável. Agora, com essa punição, que considera injusta, ele deverá recorrer na justiça comum.

Nessa sexta-feira, o Conselho Universitário se reúne para discutir o tema.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Já fomos mais valentes na UFSC


Quando o horário especial de verão terminar centenas de trabalhadores da UFSC e milhares de estudantes terão suas vidas transformadas radicalmente, pois a reitoria decidiu voltar atrás em uma decisão que já levava mais de um ano e que fora promessa do ex-reitor Luís Carlos Cancellier: a extensão do horário de atendimento, com a universidade aberta das sete da manhã às 22 horas.  Essa medida permitia que os estudantes pudessem ter acesso aos serviços da universidade tanto no horário do almoço quanto de noite e também garantia os turnos de seis horas seguidas para os trabalhadores. 

A reivindicação por uma UFSC de portas abertas é antiga, pois justamente nos horários do meio dia e à noite é quando os estudantes têm mais tempo para realizar as atividades burocráticas que exigem os serviços da universidade. Só que sem o horário estendido os estudantes dão com a porta na cara. Para os trabalhadores também foi uma vitória importante, pois garantiu os turnos de seis horas, o que melhora o atendimento e também a qualidade de vida de quem trabalha. Não foi coisa fácil de ser conquistada, exigiu muita luta. E quando finalmente essa reivindicação teve acolhida junto a um reitor, foram igualmente necessárias muitas reuniões, estudos e trabalho para comprovar a possibilidade de realizar os turnos, bem como a sua eficácia. 

Todo esse trabalho foi feito e finalmente os setores da universidade começaram a atuar nos turnos de 12 horas seguidas ou mais, se considerarmos os Centros que têm aula à noite. Para os estudantes abriu-se um universo, visto que puderam ter mais tempo para realizar as tarefas, e para os trabalhadores, igualmente, pois conseguiram organizar a vida garantindo mais tempo para a família.

Ocorre que no final do ano passado, pressionado pela Procuradoria Geral da União, o reitor decidiu por suspender as portarias que garantiam a flexibilização do horário dos trabalhadores. O tema foi amplamente discutido pelos trabalhadores que apresentaram ao reitor os seus argumentos para que não houvesse retrocesso no atendimento. Segundo os trabalhadores a decisão representaria um profundo descontrole na vida pessoal de todos os que faziam o turno de seis horas, pois a vida já estava estruturada no novo horário: tais como horários de escola dos filhos, cuidado com os pais, etc... Também foi argumentado que diante de ataques tão violentos por parte do governo federal à universidade, era bastante perigoso ceder diante de uma ameaça. Falou-se da necessidade de chamar os procuradores e o Ministério Público para uma conversa na qual fosse possível mostrar a especificidade da universidade, que não é uma fábrica de salsichas.  Mas, nada comoveu o reitor Ubaldo Balthazar. Conforme confirmou em reunião aberta com os técnico-administrativos, ele não estava disposto a colocar o seu CPF em risco, afinal, uma ação do Ministério Público poderia até criminaliza-lo. 

Ao que parece, os tempos são duros. Não há quem queira enfrentar o estado e o judiciário policialesco que temos no momento. A saída tem sido ajoelhar-se, ceder. E mais, além de acabar com a ampliação do atendimento, a reitoria também vai atender a sugestão do Ministério Público e instalar o relógio-ponto. De novo, cede, sem que se leve em conta o tipo de trabalho realizado na universidade. O desejo do governo federal, de desqualificar os trabalhadores da educação, está sendo fielmente cumprido pela administração. 

Do lado dos técnico-administrativos, os sentimentos são dúbios. Há os que se colocam contra essas medidas por sua completa inadequação histórica. Avançou-se muito no processo de trabalho para que tudo se perca agora. E há os que sentem medo, muito medo. Estão acossados pela campanha sistemática realizada pelo governo federal contra os trabalhadores públicos e temem por seus empregos. A queda de braço com a reitoria ainda não conseguiu sair dos gabinetes e das reuniões.

Quando fevereiro chegar a vida retorna ao normal na universidade e é quando se poderá medir a força real dos trabalhadores, que voltam tendo de cumprir o novo horário. Por enquanto tudo é apatia e a instalação do ponto já está marcada para março quando também chegam os estudantes que voltarão a encontrar a universidade fechada nos horários que mais precisam. 

Tá tudo calmo por agora, mas nós já fomos mais valentes.