sábado, 9 de maio de 2015

O ajuste fiscal

















Professor Nildo Ouriques concedeu entrevista ao Programa Campo de Peixe, na Rádio Comunitária Campeche, falando sobre as votações do chamado ajuste fiscal na Câmara dos Deputados. 

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quinta-feira, 7 de maio de 2015

Sobre o bater das panelas

















Não sei se é por conta das redes sociais ou o quê, mas eu tenho visto muita gente falando dos batedores de panela, considerando um absurdo e outros que tais. Há ainda os que cobram porque as panelas não batem pelos professores agredidos no Paraná, ou pelos que são violentados todos os dias nas favelas do Brasil. 

Particularmente não vejo nenhum absurdo nas fotos de pessoas nas janelas ou mesmo de gente do tipo Bolsonaro batendo panelas. Estão exercendo o sagrado direito de manifestação. Podem fazer o que quiserem desde que respeitem a vida e a dignidade dos demais. Atuam como qualquer um de nós atuaria numa democracia. Eu mesma já bati muita panela num tempo em que tínhamos mais de 30 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e poderia bater outras tantas panelas por outros milhares de seres que ainda não tem o básico para comer aqui no Brasil e em vários cantões do país. 

Há que entender que o fenômeno da bateção de panelas, nesse momento da conjuntura, não tem a ver com as lutas sociais.  Logo, as mesmas pessoas que batem panelas não as bateriam por solidariedade aos professores, aos pobres, aos sem-terra ou algo assim. As panelas batem contra o Partido dos Trabalhadores.

Pois então, seria bom fazermos uma análise sobre o porquê disso. O Partido dos Trabalhadores nasceu nos anos 80 com uma promessa básica: ser um espaço das lutas dos trabalhadores num país que começava a sair da dura noite da ditadura. Trazia no seu bojo a ideia de ética, de respeito ao empobrecido, de cuidado com as gentes trabalhadoras. Não pregava o socialismo, mas apontava para a construção de uma sociedade anticapitalista que, aos que caminharam por aquelas veredas, era o primeiro passo para o início de um mundo novo. 

O fato é que o tempo passou e as veredas socialistas foram se apagando. Estranhas alianças foram feitas para que o partido se tornasse palatável. E o que estava em jogo já não era mais a organização dos trabalhadores para a construção de um tempo novo, mas sim a entrada no mesmo velho jogo institucional. A prioridade passou a ser garantir cargos de vereadores, deputados, prefeitos, governadores. A via eleitoral foi matando a proposta de organização popular. 

A eleição de Lula em 2003 já mostrava um PT totalmente disforme. A união com a burguesia industrial, na figura do vice José Alencar, configurava uma aliança de classe que, já sabíamos, não poderia ser boa para os trabalhadores. Afinal, quando que patrão caminhou junto com empregado em harmonia? Nunca! E tanto isso foi verdade que em poucos meses de governo, o Lula lançou a reforma da Previdência, um ataque devastador sobre os trabalhadores públicos. Desde aí, as pautas dos patrões começaram a comandar. E, no melhor estilo do liberalismo e seu braço socialdemocrata, algumas migalhas foram sendo derrubadas da mesa do banquete para acalmar a plebe rude. 

Assim, é certo que o governo petista trouxe para o cenário muitas das pautas dos trabalhadores: o bolsa-família, as vagas nas universidades, a consolidação das cotas, e outras tantas políticas para os empobrecidos, que são boas, mas ainda muito insuficientes. Porque junto com elas também vieram as benesses para os banqueiros, para os latifundiários, para os poderosos de sempre. A classe dominante seguiu com todos os seus privilégios. Nenhuma fissura foi criada no edifício do capitalismo dependente que nos domina.   

Com o passar do tempo, dois mandatos de Lula e um e meio de Dilma, a política do PT foi ficando exatamente igual à de seus inimigos. É o consórcio “petucano”, como diz Gilberto Vasconcellos (união ideológica dos tucanos e petistas). Não bastasse isso, vários integrantes do partido foram sendo pegos em esquemas de corrupção e favorecimentos que explodiram com o discurso de ética, sempre usado pelo PT como uma bandeira intocável. 

Com o telhado estilhaçado por seus próprios integrantes, o PT ficou à nu. A direita começou a nadar de braçada. Cada escândalo envolvendo um petista foi sendo ampliado, com a ajuda sempre precisa dos meios de comunicação. E, aqueles que sempre foram antiéticos, que sempre roubaram e meteram-se em maracutaias passaram a ser as vestais da moral. Ou seja: o roto falando do rasgado.
Ao final das contas, pouco se consegue vislumbrar de diferença entre os grandes partidos que hoje dominam a cena nacional. É quase como a dicotomia republicanos x democratas nos Estados Unidos. Tudo fica igualado por baixo. Um ou outro detalhe os diferencia. É por isso que muitas pessoas – que nem sequer sabem o que significa ser de direita – assumem os discursos dos inimigos do PT e saem por aí batendo panela, apostando na promessa do fim da corrupção, mesmo sem se dar conta de que os que prometem isso são os que sempre foram corruptos. Há uma intensificação do ódio ao PT e isso é fortalecido com as denuncias que a mídia se encarrega de multiplicar. E, que se saiba: muitas são verdadeiras. Não há que tapar o sol com a peneira.  

Pessoas ligadas à direita menos esclarecida – como Bolsonaro, Feliciano etc... – ainda colam no PT adjetivos que já nem sequer mais fazem parte dos preceitos petistas, tais como comunistas, ou socialistas. Qualquer olhada mais aguçada sobre as políticas petistas e já se vê que não há qualquer menção a um projeto socialista, que dirá comunista. Mas, tudo isso ajuda para engordar o preconceito e o ódio que sempre floresceu contra aqueles que lutam por uma nova sociedade. Afinal, o novo é sempre uma promessa sem fiador. 

Não é sem razão que os seguidores desse rastro de ódio ao PT postam cenas da violência cometida pelo governo do Paraná contra os professores, culpando as vítimas pelo massacre. “São tudo petista”, dizem, confundindo o ser socialista com ser petista. Já não há mais a ligação direta. Há petistas socialistas ainda, mas esses são poucos.

Assim que se há um jogo de acirramento de ódio ao PT por parte da direita, também é certo que o PT é muito responsável por tudo isso também. Faz-se necessário uma autocrítica séria por parte daqueles que ainda seguem no PT, acreditando ser possível mudar por dentro. Sem isso, serão apenas peões num jogo que é unicamente eleitoral. O que está em questão é: quem ocupa as cadeiras de mando. Se é o PSDB ou o PT, ou o PMDB ou o DEM. As  grandes pautas de interesses nacional não estão postas. É só um bailado egoísta sobre quem comanda o balé. Mas a trilha sonora é a mesma de sempre. As diferenças são filigranas. 

Nesse cenário estão as gentes. Há os que caem no conto dos Caiados e Bolsonaros, há os que caem nos contos do Lula. Há os que fazem a crítica, há os que trabalham para construir outras formas de organizar a vida. Há uma esquerda incapaz de perceber as mudanças do mundo e há outra que tenta manter a cabeça fora do turbilhão para estudar a realidade e organizar as gentes. 
Nosso desafio é definir nosso lugar nesse contexto. Se de peões no tabuleiro do jogo dos outros, ou se vamos inventar algo novo, que não seja jogo, que seja uma política concreta de participação e de governo popular. 

Enquanto isso, que batam as panelas. De alguma forma, esse som de lata nos desperta da letargia.  Eu agradeço por isso. 


O Senhor do tempo





























Por elaine tavares

Blumenau - verão - 2004

A cena é insólita. Uma espécie de hippie - cheia de lenços coloridos, brincos e enormes colares - uma intelectual e um homem muito magrinho, de idade imponderável. Caminham os três, a passos muito lentos, no ritmo do homem. O cenário é o xopin de Blumenau - uma cidade de porte médio do interior de Santa Catarina.  Com a proximidade do natal, as luzes faíscam em todo o ambiente e as gentes caminham num ritmo frenético por entre as lojas feericamente decoradas. Algumas pessoas param, observando a cena incomum. Fora do tempo, os três seguem, lentamente, em direção ao cinema. O trajeto parece interminável. As mulheres olham reverentes para o homem velhinho. Vez em quando ele para e fala alguma coisa. As mulheres estacam e escutam. Não dizem palavra. O silêncio paira depois de se erguer a voz absurdamente forte do homem velho, que pronuncia um pensar capaz de movimentar o cosmos. É que ele não é um homem comum. É, talvez, um dos últimos sábios vivos neste mundo de deus. 

Montevidéu - equinócio da primavera - setembro/1905

Não poderia ser diferente. Félix Peyrallo Carbajal tinha que nascer num dia mágico, no alvorecer do século vinte. Era 23 de setembro, na charmosa Montevidéu. Enquanto o equinócio marcava o início de uma nova estação, a mãe de Félix morria ao dar a luz. Naqueles dias, aparecia na capital uruguaia o primeiro automóvel. Eram tempos estranhos. Na casa de Félix, tristeza e alegria. Vida e morte. Mas o garoto franzino não faria feio diante da mãe que nunca conheceu. Saberia respeitar a vida e vivê-la com tamanha intensidade, numa sofreguidão que sequer a velhice amainaria.  O pai era violinista e chegou a ser regente da orquestra de Montevidéu. Deixou como herança, não só uma fortuna considerável em dinheiro, mas o gosto pela música, pelo belo, pela arte, pela harmonia. Morreu quando Félix tinha 14 anos e abriu a porta do mundo. Nada mais o prendia. Tinha “mucha plata” e uma vontade voraz de conhecer o mundo. Fez-se andante, filho do vento, e nunca mais parou. 

Blumenau - verão - 2004

Félix está perto de completar 100 anos. Cem giros em volta do sol, seu sul. É mais lúcido do que qualquer um de nós. Mora num asilo público desde 2003. Foi levado pelo então prefeito de Blumenau Décio Lima. O Lar São Simeão, que existe desde 1954, é o mais antigo dispensário da cidade e abriga, além de Félix, mais 91 almas acima de 60 anos. A entrada é simples. Um portão de ferro, um vigilante, uma curta estrada até o alpendre. Na parte da frente, aberta, vários idosos estão sentados, olhar perdido no vazio. Poucos ligam para as pessoas que entram e menos ainda cumprimentam ao serem saudados. Na sala, um grupo está sentado em frente à televisão. Praticamente nenhum realmente vê o programa. Limitam-se a simplesmente a estar ali, perdidos, talvez, no passado ou no futuro. Mas, num canto, sob a luz de uma janela, está Félix. Tem uma mesa só para ele. Cheia de livros, papéis, lápis, canetas. Está com o rosto enterrado num papel. Enxerga mal, por causa da catarata. Tão logo nos vê, se levanta, solícito. Beija, delicadamente, a mão de cada uma. "- Senhoritas!!!!”, exclama, com um adorável sotaque espanhol. É um gentil homem. Sem que ninguém pergunte vai informando. "Estou traduzindo este texto para uma revista de Buenos Aires". E assim é. Beirando um século, o sábio anarquista trabalha a todo o vapor. Escreve, cria, lê e profere conferências.

Anos 20/30 - A belle  époque 

Quando decidiu sair pelo mundo, aos 17 anos, Félix Carbajal só queria saber de uma coisa: conhecimento. Não apenas ler nos livros, perdido nos caminhos de Montevidéu. Queria viver, sentir, tocar, conhecer as pessoas certas, os lugares onde a vida vibrava. Seu primeiro porto foi a Europa. Madri. Tinha dinheiro e o usaria, todo, para aprender. Estudou letras, compartilhou a moradia estudantil e a vida com figuras como Buñoel, Garcia Lorca e Pedro Garfias. Encantou-se pela poesia. Viveu toda a efervescência da cidade espanhola. Logo depois, seguiu para Paris, onde estudou na Sorbonne e viveu a "belle époque" nos braços das mulheres mais ardentes. Seu foco agora era a filosofia. Seu objetivo, viver intensamente. Peregrinou por muitos caminhos, dizendo poesia e enchendo-se de palavras. Foi aluno de Piaget e com ele estudou o que chama de “psicologia genética”. O caminho do Id para o Ego e o Super Ego. Tomou muito champanhe, amou, dividiu. Saboreou cada experiência. Encheu-se de Filosofia, Antropologia, Astronomia, Biologia, Química, Física, Matemática, Artes, Música. uff... Não há o que não saiba, e com profundidade. Fala inglês, francês, italiano, alemão, latim, grego. Dedicou sua vida a perseguir e conhecer figuras com quem pudesse sentar e fruir da boa conversa, da poesia.

Blumenau – verão – 2004 

O estranho trio chega, enfim, ao cinema. Percorrera um longo caminho no passo de Félix. Ele está seguro. Entra como se fora o dono. “Aqui tengo entrada libre! Todos saben que soy un estudioso del cine”. E é assim! O sábio é frequentador assíduo das salas de cinema de Blumenau e ninguém ousa barrá-lo em qualquer delas. Vê um mesmo filme várias vezes. “Hay mucho que mirar. La fotografia, el figurino, enfin...” Na entrada, ele deixa sair sua voz de trovão. “A señorita podria llevar-me hasta la primera fila?” Passa levinho, com passos de lã. Os três vão assistir ao filme que conta a vida de Lutero, o padre que, lá no 700, questiona toda a ordem católica e cria uma nova igreja, no movimento que ficou conhecido como “Reforma Protestante”. Sentam-se na segunda fileira. Félix não vê muito bem. Reclama que a operação de catarata é uma coisa simples hoje em dia, que ele já poderia ter feito. Mas, até agora, ninguém ainda se ofereceu para fazer isso. Parece que os oftalmologistas de Blumenau ainda não perceberam que ele precisa disso, mas que, quando perceberem, farão o que deve ser feito. Fixa os olhos na tela e fica atento. Quase não pisca. Vez em quando, uma das mulheres o mira, com o canto do olho, para ver se não dormiu. Qual o quê. Está concentrado. Ora balança a cabeça, ora coça o queixo. Lutero vive seus dramas na tela. 

Nasce o gnomonista – anos 40

Quando a segunda guerra acabou Félix já estava completamente sem dinheiro. Gastara tudo. Nunca teve apego a nada de material. Enquanto teve, gozou. Ficou sabendo que já não tinha mais renda em Los Angeles, EUA, quando foi ao banco sacar uns trocados: "Não há saldo, senhor". Estava arruinado. Depois disso, pôs-se a andar, vivendo como dava, na casa de um, de outro.  Já era um anarquista. Sem documentos, sem diplomas, sem papéis, sem família, sem laços. Como bagagem levava unicamente a sabedoria e uma muda de roupa, sempre branca. Dos EUA foi para a América Central, atrás dos poetas, e lá começou seu trabalho de plantar relógios. O primeiro foi em León, na Nicarágua, para onde fora a fim de conhecer a casa natal do poeta Rubén Darío. Na casa onde se hospedou havia um garotinho lendo uma revista sobre relógios de sol. De brincadeira, como um presente, Félix fez um, em miniatura. Como a conferência sobre o poeta foi um sucesso, logo todos sabiam que ele fazia relógios. O prefeito o procurou e pediu para que construísse um maior, na praça da cidade. Foi o que fez e nascia aí sua profissão de gnomonista, ou seja, construtor de relógio de sol. Ele não sabe muito bem, mas acredita que já tenha feito mais de 180 relógios em praticamente todos os países da América Latina. Este é número oficial registrado pela Associação Internacional de Gnomonistas Carpe Diem que, inclusive, enviou a Félix, no início deste ano, uma carta onde o informa sobre sua inscrição como membro honorário. O presidente da entidade, que fica na Espanha, ficou assombrado com a notícia de que havia aqui, na América Latina, um gonomonista com um trabalho tão extenso. No Brasil, há relógios de Félix por vários estados, Paraíba, Bahia, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina.


Rio de Janeiro - anos 50

Félix sempre teve uma obsessão pela poesia e pela literatura. Sua vida foi vasculhar as terras atrás dos poetas. Viveu com Garcia Lorca, conheceu os nomes mais importantes da literatura na França, conviveu com Hemingway, amou a poetisa cubana Carilda Labra. E foi nessa caminhada atrás dos nomes das letras que chegou ao Rio. Queria falar com Manuel Bandeira. Fuçou e descobriu onde o poeta morava. Um belo dia bateu em sua porta. Disse ser um poeta também, que conhecia toda sua obra e queria "charlar". Bandeira dispensou-o, pensando ser mais um chato. "Volte outro dia, mas telefone antes". Félix curvou-se, fez uma reverência e partiu. No dia seguinte, quando o poeta abriu a porta de casa, lá estava Félix, esperando. "Dê-me três minutos. Três minutos de relógio". O poeta assentiu, e o jovem uruguaio o marcou tanto que a ele dedicou uma crônica. O estrangeiro. Está no livro Flauta de Papel, editado em 1957. Diz Bandeira. "Dei-lhe os três minutos. Uma lábia infernal... Virou pelo avesso o meu `Último poema´, Comentou a tradução do ´Torso de Apolo´, de Rilke , referiu-se com entusiasmo a uma jovem poetisa cubana, Carilda Oliver Labra, conhecia todo o mundo na América, falou de Neruda, de Leon de Greiff, de Coronel  Urtecho, mostrou-me notícias de conferências suas em Belém do Pará...
... -  De que vive? 
-  De mendicância. Tem sido assim em toda parte, será aqui também. Quando tenho fome, entro num restaurante e peço comida. Um, dois, três recusam, o quarto me atende. Quando me regalam onde dormir, durmo em cama. Senão passo a noite andando: tenho uma saúde de ferro, posso andar 25 quilômetros sem sentir fadiga. Comer, dormir não são problemas para mim. Os problemas da vida são outros. 
Despediu-se sem me pedir nada. Perguntei-lhe se aceitava dinheiro para o jantar.  O ´sim´ alegre e enérgico com que respondeu já era o seu agradecimento. Apertou a minha mão e antes que eu chamasse o elevador, desceu as escadas como uma bala."

Blumenau – outono – 2004 – encontro de almas

Ela se chama Roseméri Laurindo e é professora na FURB, em Blumenau e na Unidavi, em Rio do Sul. Vive no mundo das ideias, sempre pensando um jeito de melhor iluminar os caminhos das jovens almas que circulam pelos corredores da universidade. Então, um belo dia, o viu. Pareceu-lhe estranho, aquele velho, bem velhinho, magérrimo, andando no passo miúdo. Estranha figura naquelas paragens. Seguiu seu rumo, esqueceu. Então, outro dia, observou, na entrada principal, um ajuntamento. Reitor, pró-reitores, professores, alunos. Re-inauguravam um relógio de sol – coisa antiga e quase extinta - que fica ali, bem no fim da escada da entrada principal. Acercou-se e, ali estava. Ele, o velho. Parecia ainda mais mirradinho na sua roupa branca. Estacou. Ficou. Quem seria?! Não demorou muito e ele foi chamado. Era o construtor. Havia erguido aquela obra havia 35 anos, quando ainda estava no vigor dos seus 64 anos de vida. Peregrino, já havia plantado dezenas de relógios de sol pela América Latina inteira. Aquele era mais um. Então, ele falou. O corpo magrinho sumiu, a silhueta de homem velho desapareceu. Assomou sua voz de trovão, como que num encantamento. Em poucos segundos, hipnotizava a todos com sua fala sobre os quadrantes solares, o cosmos, o planeta, o universo. “Aí, ele começou a falar da ciência que se produz nas universidades e faz com que o homem possa medir o tempo. E, olhando sua obra, alertou que, apesar disso, essa mesma ciência era incapaz de compreender o movimento dos corpos humanos, que também é tempo”. Foi uma hora mágica. Aquele homem, braços abertos, a bradar: “Esa pareja (casal), estes cuerpos, estas curvas, esto, el tiempo no es capaz de medir. Como no se puede medir el movimiento de las ‘bundas’ de las mulatas de Sargentelli”. Depois, declamou poesias, falou de poetas, pensadores, filósofos, uma lista interminável. Era impossível sair dali. Rose estava tomada, arrebatada por ele. Nunca tinha ouvido alguém falar daquele jeito, com aquela paixão, com toda a sapiência. Era certo, o levaria até seus alunos.

Rio do Sul – outono – 2004 

Roseméri decide carregar Félix para uma conferência em Rio do Sul, para os alunos de jornalismo. Aqueles garotos precisavam beber naquela fonte viva de quase todo o século vinte.  “Ele é um sábio. Cada palavra que diz é carregada de significados. E está aqui, vivo. Eu tinha que levá-lo”. É uma novela. Félix não pode mais sair do asilo onde vive sem que tenha uma autorização especial. Para tirá-lo de lá, mesmo que para um simples passeio, é necessário assinar um documento, assumir a responsabilidade. É que ele toma remédios e precisa de cuidados. Rose não se intimida. Faz a peregrinação burocrática e lá se vai com o sábio, subindo a serra de Blumenau até Rio do Sul. No meio do caminho, o carro quebra. Félix está sereno, nem se importa. Rose se apavora. O que vai fazer com aquele homem, daquela idade, no meio do nada. “Estamos com um problema, e tudo o que eu quero é deixar o senhor confortável”. Ele ri, aquele seu riso torto, quase cínico. “Conforto? O que es esto? Yo soy un peregrino, puedo dormir en un banco, en el relento. No hay que preocupar”. Chama guincho, negocia, arranja tudo e segue a viagem. Chegam atrasados. A turma espera, ansiosa. Mas, Félix não é homem de abrir mão dos pequenos prazeres. Quer um chá. Ele comanda. Tudo para. A turma fica à espera e ele vai para o bar. Lá, promove seu ritual. “Quiero água caliente, a 100 grados. Hay que borbulhar de forma que mi mano se queme”. Quer o chá em separado e a água na chaleira. Tudo é feito como pede. A água chega, ele observa a fumaça por longos segundos, quieto. Vê se o calor lhe queima a mão, só então coloca na xícara. Calmamente sorve o chá. Passam-se 15 minutos. Ele frui, ensina que esse é o prazer da vida, observar aquilo que, de alguma maneira, move o mundo. Sem pressa. Então vai para o auditório. Um silêncio desconfiado. A gurizada se espreme entre risadas. O que pode aquele velhinho oferecer de bom? Deve estar morrendo... Então, ele senta e começa a falar. A voz ribomba pelo espaço. Por duas horas ele hipnotiza a turma. Ninguém sai.


Blumenau – Verão – 2004 

O filme termina. Os três ficam até a última letra da enorme ficha técnica. Já não há mais ninguém. A moça que limpa o espaço para a próxima sessão observa sem entender aquelas três almas a mirar as letrinhas. Balança a cabeça como a dizer, loucos... Lentamente, eles saem. Seguem pelo xopin buscando um lugar para fazer um lanche. Um casal passa levando com ele um garotinho, ainda ensaiando os primeiros passos. Félix para. Fica bem na frente do menino. Eles se olham por algum tempo. O velho sorri, o menino também. Depois, o casal segue e ele fica, parado. “En este mundo, los niños son los únicos que me hacen verter una lágrima”, brada. Fala então que poderia ficar emocionado com uma nuvem, um pássaro, um rio limpo, mas que, agora, nesses tempos de guerra, de ódio, em que os Estados Unidos atacam países sem motivos, com base em mentiras, não há mais nada com que se enternecer. Só as crianças. Essas sim. Mas, só até os cinco anos. Depois disso, perdem a pureza. Passados muitos minutos e, na cadência do andar de Félix, chegam ao restaurante. Tomam uma sopa de capelletti. “Toda mi alimentación es frugal”, diz. Depois, pronuncia, lentamentente, um nome: Aparício Silva Rillo. “Te diz algo?” A mulher, criada em São Borja, terra do poeta gaúcho, assente. “Sim, é um poeta!”. Félix conta que também fez um relógio de sol em São Borja no ano de 1972. “Terra de los presidentes. Estan los tres allá. Getúlio, Jango y Brizola”. Ri um riso maroto. Sabe que Brizola nunca foi presidente. Conta que, na prefeitura, era Aparício – o poeta - quem mandava. “El prefeito, Juca, nada decidia”. E seus olhos se perdem em lembranças. Fala de Paso de los Libres. Da balsa. “Agora já tem uma ponte lá”, diz a mulher. Ele suspira. “Sí, e aún está el reloj”.

São Borja – verão – 2004 

Falar em Félix Carbajal para Marco Antônio Loguercio, 46, um engenheiro agrônomo de São Borja, é provocar nele uma emoção oceânica. Ao saber que o velho sábio ainda está vivo, a voz treme de emoção. “Sou louco por ele”. Confessa que sua vida mudou depois de tê-lo conhecido, em 1996, quando voltou à fronteira depois de saber que o poeta Aparício Silva Rillo havia morrido. “Ele me ensinou a ler coisas que não estão escritas, me ensinou sobre o tempo, que não existe. Sabe, ele pode ficar seis meses olhando para uma formiga. Ele faz a gente ver o que realmente importa nessa vida. As pessoas levam uma vida inteira para aprender isso. Eu aprendi com ele e hoje a minha vida é outra”. Marco, que é genro de Rillo e herdeiro de sua obra poética, conta que Félix foi a estrela do Festival da Barranca, um encontro só de homens - poetas, compositores, intelectuais, gaúchos de todo o tipo - que acontece em São Borja, todos os anos. “Foi uma coisa linda, 260 homens reunidos e o Félix sentou numa cadeira, com aquele corpo magrinho, e começou a falar sobre o que sentiu quando chegou à barranca do rio Uruguai. Era poesia, literatura, sei lá. Aquele povo todo ficou num silêncio nunca vivido e depois de hora e meia de pura emoção, se levantaram e foram beijar o velho”. Mas a lembrança mais viva que Marco Antônio tem dele é a da despedida. Conta que havia prometido levá-lo até a balsa – naqueles dias não havia ainda a ponte – na qual ele atravessaria para Santo Tomé, na Argentina. Atrasou-se. Quando chegou à casa onde ele estava, já se havia ido. Correu até o Paso e lá estava o velho, impecável. “Por que não me esperou, Félix?” E ele quieto. Não disse palavra. Quando a balsa chegou, foi entrando, sem abraço, sem nada. “Eu corri e o apertei em meus braços, enchi ele de beijo, e ele sério”. Afastou-se e só então disse: “Yo te quiero mucho bien”. Seguiu seu rumo, entrou na balsa e sequer voltou-se para olhar o amigo. Marco ficou parado, olhando a balsa se afastar, já cheio de saudade. Lá no meio do rio, Félix virou-se, tirou o chapéu panamá que levava na cabeça e se foi, acenando. “Essa imagem não me sai da cabeça”. Na cidade de São Borja a vida segue seu rumo quase igual. O Juca, José Pereira Alvarez, de 72 anos, que o acolheu em 1972, quando era prefeito, está à frente da prefeitura outra vez. Os relógios de sol que Félix lá construiu seguem marcando o tempo da cidade fronteiriça. Um deles enfeita a frente da prefeitura e o outro está na praça do Paso, bairro que espia a Argentina, na beira da barranca do rio.

Blumenau – dezembro de 2004

Ricardo Casarini Muzy é fotógrafo e andarilho. Vive a vida fazendo artesanato, fotografando, trabalhando num bar, fazendo um bico aqui, ali. Queria conhecer o velho de quem tanto ouvira falar. Pega sua Kombi velha e segue o rumo de Blumenau. Lá recebe lições que nunca mais vai esquecer. No asilo, Félix espera. Já sabe que vão fotografá-lo. Está sentado na sua mesa a fazer uma dobradura. É seu presente de natal para a namorada Elza, que vive em Lages. “O trabalho tem uma riqueza de detalhes que é impressionante. Em cada pedaço da dobradura ele escreveu o nome dela. Uma coisa emocionante” . Félix ensina que o amor não está na cama, nem no sexo. O amor está na alma, na entrega, na capacidade de estar junto, de dividir os saberes, numa vibração que está para além do corpo, além do tempo. É assim com Elza. “Ele disse que as pessoas, no natal, compram coisas para provar que amam, mas isso não é verdade. Disse que amor era aquilo que ele fizera. Passara horas, muitas horas, construindo aquele presente. Tinha colocado ali todo o seu amor e agora o mandaria pelo correio. Uma dobradura, recheada do nome dela, cheia de mundos”. Félix sobe na Kombi como se fosse um guri, está feliz da vida. Vai até a FURB mostrar seu relógio-do-sol. Fala de sua vida, andando pelas terras da América e da Europa. Sem dinheiro, sem qualquer bem. “Nunca comprei uma casa – ele me disse - nunca comprei um carro, nunca tive nada... e tenho tudo! Ele verte felicidade, ele está repleto, nunca vai estar em solidão”.

Rivera/Uruguai – final dos anos 80

É noite, num desses típicos cafés uruguaios. Dentro dele, Félix conversa com Eduardo Galeano, enquanto bebem uma garrafa de vinho. Confessa que está preocupado. Sente-se muito bem naquele lugar e isso não é bom. Vai dando uma vontade de querer ficar, atado a alguma mulher ou a uma mesa de café. Os dois poetas riem e falam a noite toda. Da vida, do amor e de como é bom estar nesse mundo. No dia seguinte, Félix se vai. Galeano fica e a ele dedica uma crônica que está eternizada no livro “Janelas”. Chama-se “O Andante” e diz: Don Félix vai deixando, na sua passagem, relógios de sol. Esse raro uruguaio que não é aposentado e nem quer sê-lo, vivia disso: fazia quadrantes, relógios sem máquinas, e os oferecia às praças dos povos. Não para medir o tempo, costume que a ele parecia bobo, mas pelo simples gosto de revelar os movimentos da terra, que se volteia como uma mulher, e pelo desejo de dividir os segredos do céu.
...Já a tentação de ficar estava dando a ordem de ir: - o novo, o novo, o novo, bradou, golpeando a mesa com suas mãos de criança. Para ir-se preferia o amanhecer. Quando o sol chegava ele se ia. Nem bem abriam as portas da estação de ônibus ou trem, don Félix mostrava os poucos trocados que havia juntado e dizia ao vendedor: Até onde chegue!

Blumenau – verão 2004 

A noite caminha, vagarosa, como Félix. No xopin, os três terminam a sopa. Hora de voltar para casa. O sábio segue falando de Goethe, Montaigne, Platão, Lorca, Aristóteles, Alarcón, Unamuno. Está alegre feito um menino. Principia uma brincadeira. “Diga uma palabra, cualquier, la que venga en la cabeza”. “Cachoeira”, diz a mulher. Prontamente ele conta uma piada que tem como tema a cachoeira. E assim repete com mais outra palavra, para a outra mulher. Os risos ecoam. As pessoas olham. Então se dá o direito de dizer a sua palavra e outra piada. Mais risadas. Ele pede uma tônica, um copo com um limão espremido e açúcar. Quando chega, dispõe cada coisa a sua frente e inicia mais um ritual. Coloca a tônica no copo com limão, depois o açúcar e pede que uma das mulheres mexa. Toma o refresco, vagarosamente. Pede a sobremesa e diz que é tempo de ir. Levantam-se a retomam o longo trajeto até o estacionamento, passo a passo, miúdo. Ele está leve. Insiste em contar uma piada que lhe contara o velho Piaget. “Él era muy serio, pero, vez en cuando salía con una piada”. Conta que um gato vinha passando e outro estava sobre o muro. O que descansava no muro cumprimentou: miaaauuuu! E o outro respondeu: Au au! “Que pasa, dice el gato. Estoy aprendiendo lenguas, dice el otro”. E ri, um riso de cristal. No carro, uma das mulheres tenta ajudá-lo com o cinto de segurança. Ele rejeita, ríspido. Fica em silêncio. Passam-se eternos minutos. Então ele fala. “A un niño, de seis o noventa años, se les deja hacer las cosas solos. Si te piden ayuda, ayuda. Pero si no, dejalos!” Mais uma lição. Faltam dois minutos para a meia-noite quando chegam ao asilo. Rose brinca: “A cinderela está chegando”. Ele ri, faceiro. Pede que ela pare o carro. “Mira la luna, que és?” É crescente. “Mira”. E ficam os três a olhar a lua no céu. O tempo do relógio passando. Então suspiram e entram. Ele desce. Os funcionários do asilo vêm, solícitos. Querem que ele entre. “No, debo despedirme de las señoritas”. Beija a mão de cada uma e fica em pé, esperando que o carro dê a volta. Na saída, no portão, as duas se voltam para um último aceno. Ele tira do bolso um lenço branco e fica acenando, com um doce riso no rosto, até que o carro desapareça na curva. As duas mulheres seguem em silêncio, cada uma carregada de mundos em si. O tempo, agora, tem outro significado.


N.E – Félix encantou no ano seguinte, em agosto de 2005. Vive por toda a América baixa, nos seus relógios de sol.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

De lembranças e começos


Cine Municipal - o das cadeiras estofadas

Deve ser da natureza humana. Quanto mais perto do fim da vida, a tendência é revisitar o passado. Volta e meia, do nada, assomam velhas lembranças que julgávamos enterradas em algum lugar profundo de nós. Essa semana, um foto da igreja de São Borja fez isso comigo, carregando minha alma para as ruas daquela cidade que viu desfilar minha primeira infância. Lembrei então de quando tinha pouco mais de oito anos e ia para o cinema com minha irmã mais velha e suas amigas. Era sempre na sessão de domingo à tarde porque a noite era dos adultos. No geral revezávamos as salas em busca dos melhores filmes. Os de mocinho passavam no Cine Municipal, que era mais confortável, com cadeiras estofadas. Os de Tarzan passavam no Variedades, cujas cadeiras eram de madeira dura. Os dois cinemas ficavam a pouca distância um do outro, o que permitia a prévia consulta aos coloridos cartazes.

Por algum motivo eu gostava mais do Variedades. Como ali as condições eram piores, as sessões eram mais baratas e a plateia bem mais popular. Não havia preocupação com a roupa que se estava vestindo e o objetivo maior era a diversão. Já no Municipal desfilavam as meninas endinheiradas, com seus modelitos em estilo frufru.

Por isso, o bom mesmo era a balbúrdia em frente ao cinema mais caidinho. Antes da sessão a gurizada se encontrava para jogar o "bafo" com as figurinhas dos álbuns. Era um bom momento de levar para casa um bocado de figuras que depois seriam re/trocadas. Também havia a tradicional troca de gibis. Era quase um mercado a céu aberto. E não era preciso conhecer ninguém, o que ajudava muito, visto que era muito tímida. Assim, sempre marchava para o cinema com minhas revistinhas.

Bem em frente montava guarda o João das Balas, com suas tradicionais balas "puxa-puxa", envoltas em papel branco com franjinhas.  Grudavam nos dentes, tinham gosto de açúcar mascavo e aquele puxa-puxa durava a sessão inteira. Também era comum, depois que começava o filme, a batalha de balinhas. O pessoal entrava com saquinhos de balas coloridas que depois viravam munição, numa algaravia que tomava conta do lugar assim que a luz apagava.

A velha cidade de São Borja, na fronteira com a Argentina, com seus cinemas no centro, foi o berço desse encantamento pelas histórias que me acompanha desde então. Mesmo em meio a gritaria que assomava quando o mocinho aparecia ou quando Tarzan realizava peripécias, eu encontrava um espaço de silêncio no qual permanecia, embevecida com a mágica dos quadros em movimento. O cinema era feitiço e os enredos eram feitiçaria.

Depois, em casa, eu rabiscava as histórias que nasciam das pequenas memórias que envolviam os temas vistos nas tela e do que presenciava na rua. Encantavam-me as meninas, filhas dos turcos, que chegavam para o matinê  com as cabeças envoltas em lenços coloridos e eu arriscava alguns contos árabes. Certamente vem daí o amor que tenho por essa cultura. E assombravam-me as garotinhas bem vestidas e de nariz empinado, as quais comparava com as irmãs da gata borralheira, fazendo com que eu as narrasse com mordacidade. Meu mundo era tão vasto naqueles dias de domingo.

Hoje, nas grandes cidades cinemas já não há, estão sub sumidos nos grandes centros de compras e não representam coisa alguma. Não têm trocas de figurinhas, nem jogo de "bafo", nem balas puxa-puxa. Não há calçadas - estão dentro dos xopins - não há meninos de calças curtas e narizes ranhentos. A infância mesmo mudou. Mas, não duvido que em algum lugar desse deserto exista alguma garotinha tímida, arriscando suas primeiras letras. Porque é assim, desse olhar sobre a realidade, que nascem as construtoras de mundo. E por mais feio que seja o real, sempre há portas a romper.