sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O meu querido


O pai já passou por muitas fases do Alzheimer. Agora, próximo de completar 91 anos, está sem andar. Dar alguns passinhos logo que levanta da cama de manhã já é bem difícil. Ele fica cansado e desaba. O jeito então é partir para a cadeira de rodas. Nela a gente pode circular pelo jardim, tomar sol, ir até o portão ver o movimento da rua, circular. Ele gosta, sempre foi rueiro. O resto do dia é sentadinho na poltrona. Ali ele briga com os cachorros, vê um pouco de televisão e principalmente ouve música. Trouxemos de casa todos os CDs que ele gravou ao longo da vida, com coletâneas de música sertaneja, a assim ele vai passando o dia. 

Vez em quando ele se cansa de ficar sentado, eu acho. E fica rabugento. Começa a falar na sua língua klingon e tenta levantar. É um perigo, por isso estamos sempre de olho. Outro dia eu desviei o olhar por um segundo e quando virei lá estava ele de pé, agarrado na porta. É danadinho. Quando fica assim, enfezado e agitado o jeito é distrair. Minhas alternativas são cantar, ou dançar como uma Maricota.

Mas, tem outra forma que é mais legal. Quando ele fica muito brabo eu abraço ele com força e digo, enchendo de beijinhos: 

-Tu és o meu queridinho? Tu és o meu amorzinho? Tu és? Tu és?

É aí que eu ganho um belo de um sorriso. 

- Ahhhh, não – Ele diz, enquanto se enrosca em mim como um gato. Sabe que é meu querido.

E assim passamos os dias, com muitas dessas janelas de amor.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

O brasil avermelhou


Mapa: O Estadão

Depois de uma semana tensa, na qual um apoiador de Jair Bolsonaro feriu policiais com tiros e granada e uma deputada bolsonarista perseguiu um homem negro pela rua fora, armada de pistola, a população brasileira deu sua resposta. Era chegada a hora de colocar fim a um dos governos mais destrutivos da história do país. Derrotar Bolsonaro e sua política de morte passou a ser ponto de honra, inclusive com a formação de alianças jamais vistas. Foi uma campanha bastante despolitizada, sem o debate dos grandes temas nacionais, justamente porque Bolsonaro conseguiu impor uma agenda recheada de mentiras. Assim, era preciso um grande esforço para tentar desfazer a trama toda. Nisso, a pauta econômica e política ia ficando de lado. O clima de guerra religiosa e moral deu o tom em todo o processo e a violência generalizada se espalhou. O último ato foi o do ex-deputado Roberto Jefferson, que tentou se transformar num mártir, buscando reconstituir o clima da famosa "facada" criada pelo candidato Bolsonaro na eleição de 2018. Ao atacar a Polícia Federal esperava um revide, que não veio. O balão murchou e fez estragos na campanha bolsonarista. No campo da oposição ao governo as comportas iam se fechando e velhos adversários se uniram para derrotar Bolsonaro. 

E a derrota veio. Apertada, mas veio. 

É importante salientar que o governo usou de toda a máquina para impedir a vitória de Lula. O Nordeste, região brasileira com mais votos para o petista, foi o campo de batalha. A Polícia Rodoviária Federal foi acionada para impedir as pessoas de chegarem aos locais de votação. Ônibus, carros, motos, tudo era parado e os passageiros sofriam humilhações. Ainda assim, não foi suficiente. A resposta do Nordeste foi a esperada: vitória acachapante de Lula. Minas Gerais, um estado que sempre é baliza, também surpreendeu e Lula ficou com mais de 50% dos votos. E na região Norte, os estados do Amazonas e Pará igualmente responderam bem contra Bolsonaro. Restou ao Sul, Centro-Oeste e parte do Sudeste manter a preferência com Bolsonaro, com o Rio Grande do Sul também surpreendendo e impedindo a vitória do candidato a governador bolsonarista, apesar de ainda dar vitória a Bolsonaro na eleição principal.  

Por fim, depois de uma apuração bastante sofrida o resultado veio: 50,90% para Lula e 49,10% para Bolsonaro, uma diferença de pouco mais de dois milhões de votos. 

Olhando para o mapa do Brasil é fácil ver que foi a população mais sofrida quem decidiu aplicar a derrota a Bolsonaro. Afinal, foram quatro anos nos quais os trabalhadores perderam direitos e ainda sofreram de maneira visceral os efeitos da ação governamental durante a pandemia. Bolsonaro não atuou no combate à doença, fez campanha contra o uso de máscaras e pelo uso de medicações ineficazes. Além disso, fez campanha contra a vacina e só comprou o imunizante depois de muita batalha por parte da população. O resultado foram quase 700 mil mortos. Não bastasse isso abriu caminho para as empresas de armamento, fez vistas grossas para fazendeiros e mineradores invasores de terra indígena, não atuou nas queimadas da Amazônia e do Pantanal, deixou a gasolina chegar a sete reais o litro e provocou a disparada dos preços dos alimentos. 

No campo da moral Bolsonaro, sua mulher e filhos abriram caminho para uma série de mentiras: que o comunismo estava chegando, que o PT iria fechar igrejas, que Lula era um satanista, que iria obrigar as crianças nas escolas a usar o mesmo banheiro, que iria ensinar as crianças a serem gays e mais um sem número de absurdos que foram cimentando um exército de fanáticos. Diante de uma economia em colapso, avanço da fome e da miséria, esses temas criaram cortinas de fumaça que inebriaram muita gente. Por isso, não é de estranhar que Bolsonaro tenha conseguido 58 milhões de almas para seu projeto. O medo foi decisivo para uma camada grande da população. 

Mas, apesar disso, Bolsonaro foi derrotado nas urnas. E agora, espera-se que venha um novo tempo. Não há ilusões sobre o governo de Lula. Será um governo socialdemocrata, com muitas concessões aos aliados de última hora. Mas, sem lugar a dúvidas, haverá uma retomada da racionalidade visto que a pauta do mandatário da nação não será mais dominada por mentiras e absurdos moralistas.  Aos trabalhadores restará ficar atentos e organizados, porque muitas lutas ainda deverão ser travadas.