Na página do projeto “Narrar o Alzheimer”, encontro essa generosa resenha sobre o meu livro “Boa Noite, seu Tavares” pela lavra de André Carvalho.
“Na resenha anterior, apresentei o primeiro livro de memórias brasileiro a tratar dos cuidados de uma pessoa com demência. Hoje, trato do mais recente, "Boa noite, seu Tavares", de Elaine Tavares.
Elaine cuidou do pai, Nelson Tavares, em Florianópolis por oito anos, desde o diagnóstico de Alzheimer em 2016 até 2024, quando ele faleceu. O livro é composto de crônicas sinceras e bem-humoradas escritas ao longo desse tempo, muitas delas publicadas na comunidade virtual Anjos que Cuidam, do Facebook. Temos acesso ao dia a dia de uma filha sensível, carinhosa, firme e corajosa durante o percurso da família através das "milhares de fases" que a doença desenrola.
Elaine é jornalista e escreve muito bem. Cada crônica é sucinta, mas densa. Mistura memória afetiva, informação de saúde e reflexão política, tirando da experiência própria lições para o comum. Aliás, um dos (muitos) méritos do livro, que o destaca dentre similares, é justamente a vocação política de compreender a doença e o envelhecimento no contexto de nosso capitalismo marginal. Assim, mesmo narrando a experiência familiar e doméstica, somos lembrados a buscar as causas para tanto apuro e desamparo, da falta de preparo dos médicos à infraestrutura de transporte público da cidade.
Outro destaque é a consciência das armadilhas de quem vive e narra o cuidado. Elaine não romantiza a doença: "é uma merda". Literalmente. Por outro lado, não existe uma página em que a tragédia domine. No final dos dias mais turbulentos, seu Tavares solta uma frase que derrete nosso coração e redime a penúria da filha. Sempre vale lembrar que Sublime virou marca de papel higiênico.
Há pelo menos outras duas diferenças marcantes com obras do tipo. Primeiramente, não encontramos a tentativa de reconstruir a vida e a identidade do pai, como em biografias tradicionais. A autora aceita plenamente quem o pai é em cada momento, e suas transformações ao longo dos meses e dos anos. O ato-reflexo de voltar à integridade da identidade fixa, segura, está ausente. Em segundo lugar, não existe no livro a cena tradicional do espanto e da crise desencadeados pelo não reconhecimento. Elaine aceita que às vezes seu pai não a reconheça "como filha", mas tem plena segurança de que existe um reconhecimento mais profundo no cuidado e no carinho diários. Juntas, essas diferenças apontam para uma fluidez que narradores/cuidadores de países mais desenvolvidos — leia-se, mais calvinistas e individualistas — raramente alcançam. É na brincadeira, no afeto, no apego à convivialidade e ao improviso de um modo mais humano de existir que Elaine Tavares descobre o caminho. Aqui, o livro realmente se parece com a troca em grupos de apoio de familiares: é gente cuidando de gente.
Se tivesse que recomendar um livro para cuidadoras e cuidadores que desempenham a função 24 horas por dia, seria esse.