Do Rio Grande guardo saudades atávicas. Memórias que se encravam na alma e que galopam nas noites frias dos invernos e nos abafados verões. O rio Uruguai, os balseiros, a gurizada banhando agarrada às boias de pneu de caminhão, as tormentas, o minuano, o túmulo da Maria do Carmo, o caminho para o Passo, o estádio do Internacional, o túmulo do Getúlio, a terra vermelha, o trigo, as ovelhas, as taipas dos arrozais. Memórias que pastoreiam meu cérebro sempre que a noite vem.
Mas, há uma que me toma todos os sentidos: a bolacha. Suspeito que esse pão só seja feito ali nos pagos de São Borja e Uruguaiana, pois nunca vi em outro lugar no sul. A bolacha não é pão de sal, nem sovado, nem cabrito. É bolacha. Algo intraduzível e insuperável. Para mim bolacha é simplesmente sinônimo de infância. Não há uma única lembrança da minha meninice na qual não esteja, indefectível, a bolacha. Com manteiga, com salame, com queijo, com chimia. É parecida com um biscoito comum, só que grande, e imagino eu que deva ter uma maneira diferente de sova ou preparo. Não sei e nem quero saber. Porque, para mim, bolacha é também magia.
Lembro que quando ia passar as férias de verão com os meus avós que moravam em Japejú, Uruguaiana, a gente andava quilômetros no meio das vacas e das caixas de abelha, da casa da vó até a “faixa”, que era como chamavam a estrada geral asfaltada, para comprar as bolachas do mês. Vínhamos carregando as bichinhas dentro de um saco desses de farinha, grande. Chegando a casa, a vó colocava todas elas dentro de uma lata de azeite, daquelas de 10 litros, e ali elas ficavam até que viesse o próximo mês, sempre molinhas e gostosas. Bolachas.
Depois que saí da fronteira, há décadas, nunca mais vi uma bolacha. Até que ontem, elas me chegaram pelas mãos da minha querida amiga Cassiana, que veio de São Borja passar uns dias na ilha. Um saco imenso de bolachas as quais eu espio com os olhos mareados, percebendo nas suas curvas as belezuras da infância. Vejo a gurizada da rua brincando no engenho de arroz, as correrias na rua de chão vermelho, as conversas das famílias nas calçadas, o chimarrão na tardinha, vejo amigos que já se foram e outros que nunca mais encontrei, mas que ainda moram em mim. Vejo meu pai saindo pra rádio Fronteira do Sul, a mãe fazendo café com farinha, as gurias do seu Jesus e da dona Cira, a Cassiana passando pra gente ir pra aula, a Regina, a Luiza, a turma toda do CESB.
E, quando não, vejo assomando à porta a guriazinha de cabelos armados e patitas chuecas que eu era, com os olhos cheios de eternidade, estendendo a mão para o pão sagrado, mágico. Senta-se à mesa comigo, mulher de 60, e sorri. Somos uma só na alegria, na partilha da bolacha. É uma epifania.
Obrigada Cassiana, por esse presente. E gracias por termos preservado, por quase meio século, essa amizade que não esmorece.