sábado, 22 de fevereiro de 2014

Apontamentos sobre Ucrânia, Venezuela e Brasil



O mundo das redes sociais tem provocado reações interessantes. Ora, serve para democratizar a informação, ora para confundir e difundir mentiras. É um terreno fluido, líquido, pantanoso. Navegar por esses mares do éter cibernético requer cuidado e, principalmente, formação. Como os conteúdos são jogados sem qualquer compromisso com a verdade - ou são mentiras propositais para confundir, ou são meras opiniões, o sentir de cada um sobre os fatos - apenas aqueles que se dispõe a investigar, procurar a fonte original, compreender a realidade, podem formar um quadro que verdadeiramente se aproxime do real. Só que isso dá trabalho, exige estudo, leitura, pesquisa sistemática. Então, o que parece ser hegemônico nos espaços como facebook, twitter ou plataformas semelhantes, é um bombardear incessante de informações sem fundamento, opiniões pessoais, preconceitos e muitas vezes até a discriminação criminosa.

Pode-se observar isso em questões bem específicas que envolvem a política mundial: as manifestações populares na Ucrânia, na Venezuela e no Brasil. Tem sido bem comum nas redes sociais, as pessoas compararem os três países como se fossem situações semelhantes. Uma postagem em particular diz assim: Na Ucrânia, o povo luta contra o socialismo, na Venezuela, luta contra o socialismo e, no Brasil, luta pelo socialismo. Nada poderia ser mais mentiroso. É absolutamente impossível comparar a realidade desses três países de forma tão simplista.

Na Ucrânia, a população está em conflito e mobilizada. Uma parte quer que o país estreite laços comerciais com a Rússia e outra parte quer a união com a Comunidade Europeia. Aí estão colocadas a luta de classes e visões distintas de mundo. Os que querem a União Europeia preferem estar na parceria com o centro do mundo capitalista, acreditando que, com isso poderão participar das promessas do sistema. E não é apenas a elite que anseia pelo pleno capitalismo. Ali também estão operários, estudantes, camponeses pobres, trabalhadores informais e ex-soldados que sentem-se à margem do bem-estar nessa nova Ucrânia pós-soviética. Esses, acreditam que essa outra forma de organizar o mundo, representada pela comunidade europeia, pode lhes dar uma chance melhor, afinal, nunca a tiveram.
Os que preferem a aliança com a Rússia não estão a favor do socialismo, até porque essa experiência há muito tempo que não existe mais naquele país. A Rússia aparece como um parceiro desejável porque tem um considerável poder, por conta de sua força nuclear e militar. E, também, por conta de que seus aliados são os que estão hoje no comando da Ucrânia. Mas, do ponto de vista da proposta de desenvolvimento, não há muitas diferenças com o projeto capitalista.

O certo é que a Ucrânia hoje tem uma sociedade dividida e está em conflito, mas os motivos disso não são tão simplistas assim, de ser contra ou a favor do socialismo. Aliás, como já disse, o socialismo nem está em questão. Há toda uma experiência do passado - de ligação com a antiga União Soviética  - que é rechaçada pelas novas gerações, há racismo, há rasgos fascistas, assim como há o medo de mergulhar na ilusão capitalista por conta da já conhecida derrocada de vários países da periferia da comunidade europeia. É complexo. E esse embate já gerou mais de 100 mortos, porque, afinal, é uma batalha de concepção de mundo. Os últimos informes apontam para um acordo entre a oposição (pró-europa) e o governo (pró-rússia) de antecipação das eleições e mais poder para o parlamento. Tudo isso pode significar o levantamento das barricadas, mas não garante que todas essas pessoas  - as bem intencionadas ou não - terão os ganhos que sonharam. A luta pelo poder recomeçará forte na batalha das eleições.

Na Venezuela a situação é radicalmente diferente. Não há um passado de ligação com o dito "socialismo" soviético. É o contrário. Ao longo de toda a sua existência como república, a Venezuela esteve dominada pela elite local, nascida e criada na exploração dos índios, dos camponeses e, agora, da riqueza natural que é o petróleo. Desde sempre a opção dos que comandaram o país foi pela exploração capitalista. A batalha que está dada hoje na Venezuela é sim, contra as propostas de caráter socialista iniciadas por Hugo Chávez. A chegada de Chávez ao poder em 1998 trouxe a possibilidade de repartição da riqueza do petróleo, que até então estivera na mão de muito poucos.  Isso começou a ser feito com uma série de mudanças estruturais que se iniciaram, mas que não se completaram. Logo, não há um regime socialista na Venezuela. O que há é um capitalismo de Estado que tem como proposta ir se socializando. Mas, esse objetivo tem sido algo bem difícil de alcançar.

A Venezuela não conseguiu alavancar o desenvolvimento interno, a indústria, a produção agrícola. A elite que segue fazendo batalha contra as propostas do governo - porque quer voltar a dominar a riqueza petrolífera - nunca pensou em apostar no desenvolvimento do país. Quando tinham a renda do petróleo, exploravam e enriqueciam.  Hoje, sem ela, exploram o setor de importação, que é igualmente rentável e não gera divisas, a não ser para eles. Então, o que está em disputa na Venezuela é um projeto de Estado e de desenvolvimento. É certo que nas fileiras dos "escuálidos", a oposição elitista, também tem gente simples, camponeses, trabalhadores, operários que tem suas próprias demandas, legítimas, mas que somadas ao golpismo, acabam se perdendo. Com certeza, entre esses trabalhadores, não deve haver quem queria a volta da exploração dos velhos oligarcas, mas eles também têm críticas ao governo bolivariano, que muitas vezes não são levadas em conta. Por isso gritam e se manifestam legitimamente, oferecendo outro projeto. Tudo isso torna igualmente complexa - embora não igual a da Ucrânia - a luta que se trava nas ruas. 

A semelhança com a Ucrânia é a da mobilização popular – tanto de facções reacionárias, como progressistas -  a realidade de uma sociedade em crise, mas os motivos que levam uns e outros às ruas são bem diferentes, e devem ser analisados nas suas respectivas conjunturas. Na Venezuela, o que se vê é um governo com ampla base e apoio popular, que não tem medo de chamar o povo às ruas, que convoca a população a defender a proposta bolivariana de desenvolvimento. O governo não se esconde e não escamoteia suas propostas. Tem problemas? Claro que tem! A Venezuela não é um país socialista, o governo - desde Chávez - comete muitos erros, se equivoca de caminho, volta, retoma. Há uma certa burocracia estatal se fortalecendo, há corrupção. Óbvio. É um governo de humanos. Mas, também há esse diálogo direto com as gentes, feito cara-a-cara e sem medo de defender as escolhas de cunho mais socialista ou progressista. Assim, os erros podem ser acertados. Tudo está em ebulição. Essa é uma luta interna, mas não dá para ser ingênuo. Aproveitando-se das divergências internas, o império - incorporado nos EUA - põe a sua mão. É igualmente óbvio que um governo bolivariano não é bom para os Estados Unidos. Eles preferem os amigos da velha elite, seus também velhos aliados. Vai daí que tudo isso se expressa nas ruas. Descontentes de esquerda, a direita renitente e os mercenários ianques.  Realidade explosiva e complexa. 

No caso do Brasil, as similitudes aparecem igualmente no crescimento da mobilização popular que esteve bastante adormecida nos últimos tempos. Como a opção do governo petista, desde Lula e agora com Dilma, foi de aliança com os banqueiros e com a elite dominante, os problemas de poder começam a se acirrar, porque a elite é insaciável. A escolha por seguir pagando religiosamente os serviços da dívida tira do governo brasileiro a possibilidade de realizar mudanças estruturais. Como analisou o economista Nildo Ouriques, no programa Faixa Livre, da Rádio Livre, nessa sexta-feira (dia 21) as políticas sociais do governo brasileiro não passam de "caridade", não conseguem ultrapassar esse limiar. Com isso, foi se formando uma grande bolha de descontentamento. Existem críticas fortes feitas por parte da esquerda, que, de forma clara tem apontado os desvios de curso, os erros estratégicos, as alianças funestas. Uma esquerda que mostra onde estão os limites e que aponta caminhos, sem ser levada em conta.

Pois esses limites e equívocos agora emergem. O desemprego é uma dos menores da história? Correto. Mas os salários são de miséria. Isso vai aprofundando o abismo das desigualdades sociais. O conflito acaba se explicitando, muitas vezes de forma indefinida e esparsa como mostraram as jornadas de junho. Com a completa falência dos partidos políticos, que deixaram de fazer política, "preferindo fazer trabalho eleitoral", como diz o economista e presidente do Iela,  Nildo Ouriques, não restou ao povo senão a revolta, que se mostrou nas mais variadas facetas, inclusive a da reação alienante. "Não sei porque estou na rua, mas se todo mundo está, também vou". Ou seja, era uma apropriação ingênua, mas não irreal, das demandas do movimento social organizado. Essas pessoas, de um jeito ou de outro sabem que o transporte é uma droga, a saúde é uma droga e a educação vive um estado de miséria. As coisas não estão bem! Muitas vezes, como na Venezuela e na Ucrânia, explodem em reações de cunho fascista, justamente porque falta trabalho político junto às massas.

Diante de todos esses conflitos e o acirramento da luta popular - que encontrou ainda mais força no derrame de dinheiro público para obras da Copa - qual foi a atitude do governo petista? De novo, o professor Nildo Ouriques oferece uma interpretação: "O governo não tomou posição diante do povo na rua, preferiu ignorar o conflito, não enfrentou o drama social que gera dependência e subdesenvolvimento. Em vez de convocar as massas para a luta nas ruas, na defesa de um projeto emancipador, abafou o conflito, não explicitou seu projeto de país". Com isso, acabou atiçando a direita que está sempre à espreita de qualquer deslize para se fortalecer.

A conjuntura brasileira, a exemplo da Ucrânia ou Venezuela, também é complexa. Há os jovens que anseiam mudanças, há os revoltados por causas difusas, mas legítima, há uma esquerda crítica que não pode ficar calada sob a pressão de se confundir com a direita, há partidos políticos com interesses coletivos legítimos, mas há também uma direita raivosa que arma e incita à violência, bem como militantes à soldo das políticas estadunidenses, como não poderia deixar de ser. Porque é preciso que se tenha claro que os Estados Unidos atuam, e forte, na tentativa de manter os países da América Latina na sua órbita. Seja com financiamento direto de grupos, seja com a colonização ideológica e cultural. Não são poucas as pessoas "de bem" que acreditam firmemente serem os Estados Unidos os guardiões da liberdade.  Desconhecer todas essas forças, também as externas, é enveredar para a ingenuidade, coisa inconcebível no mundo da político. Mas, se há tudo isso, como diferenciar esses grupos no meio de uma multidão de milhares e milhares de pessoas? Aí está o desafio. Nas manifestações de junho, nos grupos que gritavam “fora partidos”, a organização – com distribuição de camisetas e lanches – estava a cargo de conhecidas figuras de partidos de direita. Então, há que se informar, estudar, compreender. Não é possível ficar no âmbito da consciência ingênua, acreditando que o povo que marcha quer uma coisa só. Como também não dá para agir como um avestruz, dizendo que quem protesta são só os "coxinhas", ou mercenários, ou anti-petistas, ou a esquerda "burra". Há uma fatia muito grande de descontentes que estão se expressando. Há gente séria fazendo a crítica. E também há entre os que respondem a violência do estado com violência, porque em determinadas situações é o único que cabe fazer. Desconhecer a realidade é o primeiro passo para a derrota.

A paz, todos a querem. Mas pessoas há que querem a dos cemitérios e outras que preferem a de um país soberano, livre e com participação popular.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Olímpia Gayo visita o diabo



O livro que escrevi contando a vida da irmã Olímpia Gayo deverá ser lançado em Lages no mês de março. O trabalho conta a história da Pastoral da Mulher Marginalizada criada na cidade de Lages pela irmã Olímpia. A teóloga Ivone Gebara é quem apresenta essa preciosa história de uma mulher que nunca se recusou a olhar o diabo de frente. Essas são suas palavras generosas...


"Elaine Tavares tem o dom e a arte de contar histórias de mulheres apaixonadas pela vida. Mulheres que são parte da história oculta da bondade e da beleza e que atuaram intensamente para que esses valores continuassem a se manifestar nas vidas sofridas e silenciadas. "Olímpia Gayo visita o diabo" é mais uma preciosa narrativa que revela o percurso de uma mulher que cresceu vencendo o sofrimento que a vida punha em seu caminho. Desde criança vencia o sofrimento preparando-se e lutando pela dignidade da vida de outras sofredoras e sofredores.

O texto move o coração e convida a abrir os olhos para as vidas ocultas, aparentemente sem valor, para a escória humana que somos e criamos assim como para a salvação e libertação que também podem nascer de nós. Sim, somos salvadoras umas das outras, somos a mão estendida, o abraço apertado, o sentido da solidariedade, a misericórdia vivida. Somos a voz que denúncia, que grita até que os corações de pedra comecem a palpitar de novo e ver e ouvir o mundo ao seu redor.


Conheci Olímpia num encontro de estudos em Julho de 2013 em Lages. Sua congregação religiosa me convidara para uma semana de reflexão sobre espiritualidade eco feminista. Desde as primeiras palavras que ouvi de Olímpia, a cumplicidade nas ideias, nas visões e, sobretudo, sua forma de "sentir a dor do mundo" ecoaram em mim. Cada uma do nós, de seu jeito, vivia a paixão pela vida manifestada através de muitas formas e expressa através de muitos nomes. Tínhamos muitas coisas em comum. Enfrentamos demônios parecidos, aqueles que atingem os corpos de mulheres e querem silenciar seus gritos de liberdade.


Nas visitas e encontros de Olímpia com os "diabos" da fome, da droga, da prostituição, seu nome, que faz lembrar o Olimpo, moradia dos deuses gregos, espantava os algozes e trazia algo apaziguador, algo ao mesmo tempo celeste e terrestre.  Os diabos fugiam e se descobria sua face oculta, sua beleza, sua momentânea integridade.  No encontro de coração a coração os diabos não ficam. Abrem o espaço para o amor e a justiça. Por isso tantas pessoas marginalizadas encontraram na presença de Olímpia a força para viver, levantar-se e seguir o caminho do resgate da vida.


Ao final da leitura do livro um sentimento de profunda gratidão e beleza tomou conta de mim. Gratidão à Elaine, à querida Olímpia e a tantas pessoas que no anonimato sustentam a vida e anunciam a grandeza do amor, único capaz de curar os corações partidos e renovar a face da terra".


Vale a pena conhecer a história dessa mulher, guerreira, ainda atuando com toda a valentia.







terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A Venezuela e a luta de classe



Janeiro de 2006. É final de tarde na turbulenta Caracas. O bar próximo ao imponente teatro Tereza Carreño fervilha de gente atrás das famosas "arepas", um sanduíche típico do país feito com milho moído. Ali encontramos Rosália, prostituta, mãe de três filhos já grandes. Espera a hora para entrar no teatro, coisa que iria fazer pela primeira vez, junto com mais duas amigas. Iam ver uma exposição de fotos sobre mulheres caraquenhas, promovida pelo governo venezuelano. “Nós nunca tivemos acesso à nada por aqui. Agora, com Chávez, temos. Podemos ir ao teatro, ler - os livros são distribuídos de graça - e nós mesmos criar cultura. Imagina quando que uma mulher como eu, antes, iria entrar no Tereza Carreño?” Rosália, assim como as amigas que bebericam uma cerveja, morreriam por Chávez. Fazem parte daquele grupo de pessoas que sempre foi invisível na grande cidade, e que, naqueles dias, no auge da revolução bolivariana, se sentiam protagonistas da sua história. “A gente trabalha na missão Barrio Adentro, temos de trabalhar para ajudar o país. Chávez convocou e a gente vai”. As missões são a forma de organização com a qual a população Venezuela conseguiu ir se encarnando na vida das gentes.

Do outro lado da cidade, no bairro de Altamira, a realidade parece ser completamente outra. É o centro da vida da elite caraquenha, reduto da riqueza. Ali as ruas são vazias, não há o burburinho das zonas populares, proliferam os prédios e os esterilizados centros de compras. As mulheres que circulam bem vestidas e maquiadas são bem diferentes de Rosália. Nunca foram barradas no teatro mais importante da capital e tampouco, hoje, participam das missões para melhorar o país. Fazem parte do grupo dos “esquálidos”, oposição ao governo. Em alguns lugares até é possível ver a bandeira dos Estados Unidos tremulando, numa mensagem bem clara sobre quem eles admiram. Não querem saber de Chávez e de seus planos de tornar a Venezuela soberana.

Três estações do metrô adiante, surge o bairro Sabana Grande e, ali, tudo fica "patas arriba". Como num passe de mágica, outra Caracas surge. Não mais as ruas  clinicamente limpas, os enormes outdoors, os prédios clarinhos, os carros importados, os centros comerciais, as gentes bem vestidas. O que se vê são calçadas tomadas por uma infinidade de barracas de lona do mercado informal. As ruas estão sujas, há lixo nas esquinas e as pessoas comuns estão envolvidas em outra marcha: a da sobrevivência. O grande bulevar da Sabana Grande é o retrato da vida real. Nele vicejam os hotéis de encontros fortuitos, os mendigos, alguns garotos e garotas drogados e mais e mais barracas onde se vende tudo o que há. Mais adiante, na direção da periferia, desaparecem os toldos de lona e surgem as imensas comunidades de tom marrom, que se espalham pelos morros, cheias de barracos de tijolo ou lata. É gritante a divisão das duas Caracas, o que torna mais compreensível a guerra ideológica e utópica travada nas ruas. Nos bairros ricos e limpinhos as pessoas lutam para manter a vida pequeno burguesa, aparentemente protegida, que o dinheiro pode comprar. Nos bairros degradados e na periferia as gentes lutam por mudanças concretas que as levem para uma vida digna, de riquezas repartidas. Essa dicotomia de projetos é tão visível e densa que quase se pode tocar com as mãos.

A batalha para consolidar o bolivarianismo 

Passados oito anos da viagem à Venezuela, muitas são as mudanças na vida dos dois grupos que se enfrentam cotidianamente por um projeto de país. Naqueles dias, a promessa de transformação era soberana. Chávez vencia, eleição após eleição, os golpes que a direita entreguista perpetrava. As missões floresciam e as gentes construíam um novo país. Hoje, a Venezuela está golpeada. A morte de Chávez, no ano passado, pouco antes de assumir mais um mandato, foi um baque duro demais. Ainda que a organização popular tenha crescido e se fortalecido, sempre foi inegável o impacto de Chávez na vida de toda aquela gente que assomou em 1998 como protagonista da nova Venezuela. Ele era a alavanca que provocava o empuxo  para a frente, sempre para a frente.

Muitos foram os avanços populares no país durante os anos de governo bolivariano. A educação, a saúde, a moradia, tudo melhorou para os que eram os mais empobrecidos. Mas, havia um grande desafio a ser vencido: sair da armadilha da dependência do petróleo. Desde sempre, por sua riqueza petrolífera, a Venezuela baseava toda sua economia nesse setor. A revolução bolivariana tinha, então, que recuperar o país para a produção. Havia que incentivar a indústria nacional, a produção de alimentos. O país estava refém das importações. Tudo o que se consumia vinha de fora. E esse foi o caminho que começou a ser palmilhado. Desenvolvimento endógeno. Uma tentativa de substituição de importação.

Mas, o processo venezuelano não foi um processo revolucionário aos moldes ortodoxos, de vitória armada, com o aplastamento do "inimigo". A proposta bolivariana se deu nos marcos da democracia, com eleição, plebiscitos, referendos. Isso significa que, ao longo do tempo, a oposição esteve sempre organizada e atuante, disputando no mesmo terreno. E tanto atuava em liberdade que chegou a tramar e levar a cabo um golpe de estado em 2002, sequestrando o presidente Chávez, e mentindo para o povo que ele havia renunciado. Só que a população organizada ocupou as ruas e recuperou o presidente, bem como a retomada do processo democrático. O golpe foi debelado, mas os golpistas continuaram agindo, livremente, para derrubar a proposta bolivariana, que nada mais é do que distribuir a riqueza, garantir soberania e construir a integração da pátria grande .

Assim, esse embate se manteve nos 13 anos de governo de Chávez. Quando algumas coisas começavam a andar, lá vinham os golpistas com alguma armadilha e tudo tinha de parar. Ao longo desse tempo várias eleições foram realizadas, uma nova Constituinte foi promulgada, tudo com muito debate e envolvimento popular. Eventos políticos de abissal importância que mobilizavam as gentes, mas que, de alguma forma, paravam a máquina das mudanças prosaicas, essas que precisam se dar no dia a dia. Assim, com o passar do tempo e com tantos entraves para as mudanças, o projeto de um desenvolvimento endógeno não conseguiu decolar com a força necessária. O petróleo seguiu dando as cartas e a mesma elite que antes enriquecia com a importação de bens e alimentos, seguiu atuando no mesmo setor.

Na luta cotidiana, Chávez conseguiu uma certa composição com os empobrecidos - historicamente fora de qualquer processo na Venezuela - e a classe média, contando ainda com algum apoio empresarial. Uma tênue composição de classe que nunca perdeu sua tensão. 

A crise e os desafios para o futuro

Desde a última eleição para a presidência, quando Chávez já estava doente, a direita venezuelana colocou em campo todos os seus trunfos. Apostando em lideranças jovens e agressivas, fortaleceu o discurso de que a Venezuela estava indo para o abismo e que era hora de retomar as rédeas do país. É claro que esse abismo estava sendo fortalecido por essa mesma elite que hoje sonha em retomar o controle das riquezas do petróleo. Uma elite que não aceitou a proposta do desenvolvimento, que seguiu apostando na dependência dos Estados Unidos  - financeira e política - e prefere manter a Venezuela como no passado: com uma massa gigantesca de pobres e um pequeno oásis onde só ela possa usufruir das riquezas. 

E, já naqueles dias, quando Chávez ainda administrava o país, se podia perceber algumas rupturas na aliança de classe que ele lograra formar. Economicamente, o governo teve de continuar emitindo dólares para realizar as importações necessárias ao consumo interno e isso só fez fortalecer uma camada empresarial que comanda esse setor. Hoje, é essa força que assume a dianteira na tentativa de retomada de controle por parte da direita. Mas, a grande batalha segue sendo pelo controle do petróleo. Não há, nos planos da elite que chama para a rua as forças contrárias ao governo bolivariano, qualquer intenção de melhorar a vida da maioria da população, hoje acossada com uma grave crise econômica e desabastecimento.  

Por outro lado, o governo, comandado por Nicolás Maduro, não está conseguindo tomar as medidas econômicas que poderiam dar outro rumo à Venezuela. O economista Heinz Dieterich, que tem sido um duro crítico do governo bolivariano - desde os últimos anos de Chávez - diz que os dois atos de Maduro para conter a crise, a lei orgânica do preço justo e o plano de paz e convivência, são medidas paliativas que mais tarde se verão inúteis diante do colapso. Para ele, há que tomar os rumos da economia, sob pena de perder o controle do estado.

Agora que a direita mostra os dentes de novo, com força redobrada, o governo bolivariano está numa encruzilhada. Mais uma vez se coloca o problema da composição de classe. Parte da burguesia que estava apoiando o processo bolivariano vai sendo cooptada pelo grupo que busca retomar o controle do país. Não se tem muito claro qual a posição das Forças Armadas nesse momento da crise. Em 2002, quando do golpe de estado por parte da elite predadora, a escolha das Forças Armadas em proteger o processo bolivariano e seguir apoiando a proposta de soberania, foi decisiva para que, apoiadas no povo reunido nas ruas do país a gritar pelo cumprimento da Constituição, ajudassem a garantir a volta de Chávez.

Ainda segundo Heinz Dieterich, as Forças Armadas venezuelanas são hoje a força fundamental para garantir a continuidade do bolivarianismo e do poder popular. Para ele, essa aliança entre militares, vanguardas e povo é a única que pode constituir um consenso capaz de recuperar o tecido social e ultrapassar a crise. Mas, para além dessa  união necessária, são urgentes medidas econômicas que recoloquem a economia nos eixos e permitam a Venezuela retomar seu processo de desenvolvimento endógeno. Uma batalha difícil, mas que pode ser travada com a ajuda também dos países parceiros, unidos na própria ideia bolivariana de integração.

A luta de classes recrudesceu outra vez na Venezuela. As alianças estão rotas e precisam ser reforçadas para que sobreviva o grande legado da Quinta República: poder ao povo, democracia participativa e soberania. A batalha recomeça. Para pessoas como Rosália, vencer essa luta é decisivo para garantir a sobrevivência de milhares de pessoas que, tal qual ela, conquistaram um espaço real de decisão dentro da revolução bolivariana. Já para o pequeno grupo de moradores de Altamira, vencer é retomar o controle das riquezas para ficarem ainda mais ricos do que já são. Projetos radicalmente diferentes.