Ali estávamos nós, eu e meu irmão, no hotel em Beijin, depois de chegar da grande muralha. As retinas ainda queimavam com a visão daquela grandiosidade, fruto de imensos sacrifícios humanos. Era janeiro de 2013 e fazia um frio de lascar. Ainda era o meio da tarde e via-se pouca gente na rua. E mesmo com os termômetros bem pra lá do zero, decidimos sair, batendo perna, afinal, uma cidade só se pode conhecer assim, vagando ao léu, indo onde os passos nos levam, sem rumo ou plano. É quando nos deparamos com a cidade invisível aos olhos comuns. A cidade real, que não se mostra nos roteiros turísticos. Beijin é imensa e quadrada, cheia de edifícios gigantes, cortada por parques que se mostram estranhamente meio tímidos por conta da quase onipresente poluição.
Naquela tarde, por algum motivo, aquela fumaça branca, tipo neblina, tinha amainado e as ruas se mostravam em suas cores sóbrias, claras. Já havíamos andado mais de 10 quadras, entrando nos mercados e nas inusitadas pequenas lojas que não ostentam vitrines. Não estávamos preparados para a visão do Pan Jia Yuan. Mas, ele nos chamava.
Numa das transversais da rua maior por onde andávamos vislumbramos uns portões. Eles destoavam do cenário cor de cimento. Entreolhamos-nos. Aquilo haveria de ser obra do Quilin, entidades mítica chinesa que andávamos buscando. Viramos à direita e entramos. Foi como adentrar o cenário daqueles filmes de época, de uma China antes da revolução. Ao contrário das ruas planificadas, ali vibrava a vida, a cor, as gentes trabalhadoras. Era o mercado Pan Jia Yuan.
Posso dizer que foi a coisa mais fascinante que vi em todo o roteiro que fizemos na China. Eu que sou amante da cidade das gentes, encontrara meu lugar. O mercado era um gigantesco espaço tomado pela genuína arte tradicional e popular chinesa, misturado a um animado e diversificado brique, no qual se vendiam desde bonecas quebradas até as mais finas joias.
O pavilhão, é claro, fica fora dos circuitos turísticos e passar pelos seus portões é mergulhar na China mais verdadeira. Na praça estão os vendedores avulsos, cada um com seu banquinho e antiguidades de todos os tipos. Tranquilos e sorridentes eles nos convidavam para sentar e apreciar as coisas, com calma. Não importava que a língua verbal não fosse compreendida, o corpo falava e a gente ia se entendendo. Impossível descrever a beleza que explode ali. O mercado, na sua concepção mais antiga. O olho no olho, a conversa, o regateio, tudo na mais absoluta paz, numa algaravia suave, típica dos chineses.
Além dos espaços dos que vendiam a céu aberto, havia lojinhas que circundavam o grande pavilhão onde apareciam as pedras de jade em todas as suas conformações e os artistas se apresentavam, com seus trabalhos, sorridentes, ao observarem nosso olhar embevecido. Éramos, naquele momento já de fim de tarde e frio cortante, os únicos ocidentais dentro daquele universo. E em cada um daqueles espacinhos nos deparávamos com o sorriso e a delicadeza.
Em outras dezenas de boxes estavam os pintores da arte tradicional, feita com pincel típico e com nanquim. Verdadeiras obras de arte que em nada devem as que ficam no chique Espaço 798, antiga fábrica de componentes elétricos desenhada pelos alemães em 1950, que virou área da expressão da arte moderna da China. Só que ali, na Pan Jia Yuan, o desenho produzido eram a paisagens, as amendoeiras, o impressionismo e a memória de uma China camponesa e milenar. Pode-se ficar por horas nos corredores vendo as obras se constituírem na sua frente, metódica e tranquilamente, por experientes pintores, que trabalham lentamente, sem parecer notar os compradores. Também é de tirar o fôlego acompanhar a confecção das famosas sombras chinesas, incrível e delicado trabalho que testemunha a capacidade humana de produzir indizíveis e absolutamente delicadas belezas. Eu mesma não queria mais sair dali.
Circulamos por cada cantinho da imensa praça, vez ou outra descansando ao sol, só olhando o vai-e-vem das pessoas que circulavam sob centenas de bandeirinhas coloridas. Não se vê nem a sofreguidão dos grandes mercados ocidentais nem a frieza dos xopins. Não há turistas, é um espaço tomado quase que exclusivamente por locais. Só o que se escuta é farfalhar dos casacos e a risada cristalina das mocinhas. É quase como um oásis no meio de Beijin.
E, para coroar a sensação de que estávamos no paraíso, no meio da praça despontava uma árvore inacreditavelmente florida. Em pleno janeiro, no frio intenso, quando não havia sequer folhas nos arbustos, aquela árvore, no centro de Pan Jia Yuan, explodia em rosa claro. Seu caule estava protegido com cordas porque “as árvores se assustam com o frio”, conforme explicou, depois, uma senhora. E ela, a árvore, agradece àquele povo simples e criativo, assim, se abrindo em beleza. Ali, naquele inimaginável lugar, a epifania.
Então, de todas as maravilhas que vi em Beijin, na parte antiga e na nova, certamente o que nunca me sairá das retinas é aquela amendoeira, em flor, no meio daquele mercado colorido e cheio de gente sorridente, como que a desafiar o tempo. Ela mesma um milagre, tão maior do que o propalado desenvolvimento econômico que pretende levar a China ao paraíso.
Aquele que consegue ver, não tem dúvidas. O paraíso já está ali. Entre aquelas senhorinhas, artistas e bandeirinhas, na adorável azáfama de comerciar sem pressa.