terça-feira, 31 de dezembro de 2013

2014 - que venha!!



A despeito de tudo, re/brotaremos...

As celebrações de um novo começo na vida das gentes são tão antigas quanto a própria raça. Nas culturas mais remotas o “recomeço” era celebrado sempre no solstício ou equinócio de primavera (dependendo do hemisfério), quando tudo começa outra vez a florir. É que como o conceito de tempo ainda não havia sido aprisionado nos relógios a vida das comunidades se regia pelas estações. Naqueles dias, o povo se reunia em festivais, cantando, dançando e bebendo em honra da terra. As mulheres engravidavam e a vida florescia. Era a completude do ciclo da existência, sempre se repetindo.

De qualquer forma, na medida em que as culturas foram se complexificando, igualmente encontraram formas de medir o tempo. Os maias, por exemplo, lograram construir um intrincado calendário com 364 dias, e mais um outro, chamado de “dia fora do tempo”. Este, celebrado em 25 de julho, marca o início do novo ciclo. Já nas culturas do médio oriente, a festa era no equinócio de março, por conta da estação. A comunidade judaica comemora sua festa de Ano Novo, ou Rosh Hashaná, uma espécie de dia do julgamento, em meados de setembro ou no início de outubro, onde as pessoas fazem um balanço da vida. Os islâmicos celebram em maio, contando o tempo a partir do aniversário da saída do profeta Maomé de Meca para Medina, a Hégira, cujo marco corresponde ao 622 da era cristã.

Na China, o “recomeço” é celebrado em datas nem sempre fixas, mas entre final de janeiro e início de fevereiro. Lá, o calendário está relacionado ao movimento da lua e conta cada mês como o mês de um dos 12 animais que se apresentaram na frente de Buda e o ciclo da vida segue esta dinâmica, sempre começando na primavera.

O mundo ocidental também institui o seu “recomeço” a partir de um deus, que não é o cristão. Foi o imperador Julio César, no ano 46 antes de cristo, que determinou o primeiro de janeiro como o dia do início do ano, em homenagem a Jano, o cuidador dos portões. Depois, mais tarde, com a oficialização do calendário gregoriano, esta data permaneceu. Os franceses deram o toque romântico chamando-o de réveillon, que vem do verbo réveiller, cujo significado é "despertar".

E assim as gentes escolhem seus momentos de despertar, de balanço, de julgamento de suas vidas. Vemos que tudo depende da cultura onde se está inserido embora a ideia seja sempre a mesma: recomeçar, jogar fora o que foi ruim, esquecer, olvidar. Começar de novo, dar-se novas chances. E assim, vai avançando a raça, buscando aquilo que os filósofos gregos insistiram em chamar de “felicidade”. Pois eu, que reverencio a terra, os animais, as forças da natureza, que amo Jesus, Maomé, Khrisna e Buda, também vou comemorar. Que venha mais um ciclo, e que seja bom. Que floresça a vida, o amor e a paz. E que todos os povos possam vibrar na mesma onda cósmica. 

Eu te convido a dançar nesta bela noite de lua clara, com os deuses e deusas, sob as estrelas. Para receber o ano novo, recomeçar... despertar! Ah, quanta bênção em se viver neste grande grande jardim!

2014 será um ano de muita luta. Estaremos juntos!!


segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O Dia da Maldade. Entre protestos, Câmara de Vereadores de Florianópolis aprova Plano Diretor






Nenhum vereador conhecia o conteúdo do projeto. Votação foi no escuro

30 de dezembro. Calor de 40 graus. Florianópolis. Mais conhecida no jargão turístico como “ilha da magia”. De fato. Só a mágica explica a votação do Plano Diretor no apagar das luzes de 2013, mergulhada num festival de irregularidades e ilegalidades. Com 17 votos a favor, uma abstenção e três votos contra, a Câmara de Vereadores aprovou, sem sequer conhecer, o plano que deverá desenhar a cidade pelas próximas décadas. “Estamos votando em confiança”, disse o presidente. Como assim? Confiança em quem? Pois é, venceu o cimento. Perderam as gentes. Mas não sem luta!

A sessão da câmara começou as duas horas da tarde. Sol a pino. Ainda assim, apesar do frisson nas ruas pela chegada do ano novo e com as liquidações pós-natal, representantes das comunidades, estudantes e população em geral compareceram às galerias para exigir que a votação fosse adiada. É que os vereadores só receberam o documento com as trezentas emendas aprovadas no primeiro turno de votação apenas na sexta-feira à noite. Logo, não tiveram tempo hábil para estudar e ver como estava conformado o projeto. “O documento que nos chegou não é oficial da Câmara, é um rascunho do Ipuf”, denunciou o vereador Lino Peres (PT). Além disso, como o documento foi todo alterado pelas emendas, diz o Estatuto da Cidade que são necessárias novas audiências públicas para que a  comunidade tome conhecimento das mudanças. Nada disso foi levado em conta. Na primeira votação quase 700 emendas foram apresentadas. A maioria sequer tomou conhecimento do conteúdo. Tudo passou de roldão.

Nessa tarde do dia 30 não foi diferente. Na fala de abertura, a qual cada partido tem direito, apenas os representantes do PP, PT e PSOL fizeram uso da palavra para se colocar contra a proposta de votação. Ninguém estava a fim de discutir nada. O vereador Pedrão protestou contra a realização da sessão e denunciou a falta de participação da comunidade no processo. “Faltou transparência”, afirmou.  O vereador Lino denunciou que o texto oficial não foi divulgado pela prefeitura, o que por si só já demandaria a necessidade de mais tempo para os vereadores conhecerem o teor do Plano. O vereador Afrânio falou do absurdo que foi a câmara chamar uma sessão para discutir o Plano Diretor, no meio de outras tantas votações, e denunciou ainda que o projeto não tem a cartografia, o que impede de saber as consequências das alterações, algumas delas, inclusive, ferindo legislação federal. “Podemos cunhar esse dia de hoje como o Dia da Maldade. Florianópolis não podia ser tratada assim”. Pediu ainda a suspensão da votação.

Bastante incomodado com a presença e a gritaria da população nas galerias, o presidente da casa sequer abriu discussão sobre o pedido de Afrânio. Colocou imediatamente em votação. Os que fossem contra a suspensão da votação que ficassem como estavam. E antes que alguém pudesse respirar ele assinalou: recusado! Passou então, imediatamente à discussão do Plano Diretor. De novo, nenhum outro vereador - a não ser os mesmos três: Pedrão, Lino e Afrânio – fez uso da palavra. Os demais conversavam entre si, davam risadinhas, olhavam a internet, sem a menor atenção aos discursos que os colegas faziam na tribuna, apontando falhas e irregularidades no processo. Tudo já estava arranjado. Assim, logo após a fala dos três vereadores, de apenas cinco minutos, sem condições nenhuma de aprofundar nas consequências do plano em tela, o presidente já encaminhava a votação. O vereador Afrânio perguntou ao presidente se a Câmara tinha os documentos sobre a cartografia, ou seja, o desenho da cidade, elemento fundamental para a compreensão do plano. César Faria foi obrigado a dizer que não. Ninguém ali naquela sala sabia o que estava votando e tampouco pareciam se importar.

O vidro que separa os vereadores do público impedia que eles ouvissem a gritaria, as vaias, as palavras de ordem, mas, mesmo que estivessem escutando, não faria diferença. As cartas estavam marcadas. Vez em quando algum deles olhava para trás, como que para se certificar que ali estavam as pessoas, mas era um olhar de indiferença, ou de profundo desprezo. Os interesses que estavam a representar não era o da maioria das gentes. Assim, não adiantou argumentar que o regimento estava sendo quebrado, que leis federais estavam sendo burladas, que o processo era anti-democrático. O presidente César Faria bocejava, enfadado, sem sequer prestar atenção.

Então, depois da fala dos três vereadores que se colocavam contra o plano tal como está e pediam o adiamento da sessão, Faria colocou imediatamente em votação. Foi nominal, mas muito rápida. Um a um os vereadores, ainda que desconhecendo completamente o conteúdo do Plano foram votando pela aprovação. O vereador Tiago, do PDT, que esteve no ato público contra o Plano no sábado e até tirou foto dizendo: eu luto por Florianópolis, decidiu se abster, recebendo uma vaia gigantesca. Pedrão, Lino e Afrânio votaram contra. Em poucos minutos, estava alterado o destino da cidade. Para pior.

Nessa hora, os ânimos de quem estava no plenário se acirraram. Os vereadores comemoravam entre abraços e, alguns, ainda riam, olhando debochadamente para as pessoas atrás do vidro. Um grupo começou a bater no vidro e a guarda municipal apareceu para proteger o patrimônio. “Vendidos, vendidos, vendidos”. “Mercenários, mercenários” eram as palavras de ordem. “Que nojo, que nojo”, bradava uma mocinha, em lágrimas. Entre os jovens, a revolta. Entre os mais velhos, também uma ponta de desesperança. Foram anos de luta para desenhar um plano que tornasse a cidade melhor, e o que passava ali era um plano totalmente alterado, sem a aprovação da comunidade. Prédios altíssimos em bairros como o Estreito e o Saco dos Limões, ocupação do Morro do Lampião, permissão para a construção em cima da restinga, construções em cima de área de preservação, enfim, o circo dos horrores.

As pessoas saíram e ficaram na porta esperando pela saída dos vereadores. Com medo, eles não arredaram pé de dentro da Câmara. Os manifestantes ocuparam a rua em frente e trancaram a garagem do prédio com uma corrente. Era uma queda de braço. O vereador Badeco deu uma de valente e saiu. Ao o reconhecerem, os manifestantes saíram correndo  atrás dele. Badeco conseguiu entrar num carro, mas o mesmo teve o vidro traseiro quebrado. Ele escapuliu. Em pouco tempo a polícia chegou pedindo a desobstrução da rua. E foi todo aquele clima de tensão. Gritos, palavras de ordem, cantorias. “Vem pra luta, vem, contra o cimento!” No outro lado da rua, pessoas se postavam, assistindo, enquanto um pequeno grupo ainda insistia em, pelo menos, jogar um ovo na cara dos vereadores que votaram contra os desejos da maioria das comunidades. Os sacos de lixo da Câmara que descansavam sobre a calçada foram levados para a entrada do plenário, onde estavam os vereadores: “estamos devolvendo o lixo para o lixo”. Ao final, todos – exceto Pedrão, Afrânio e  Lino - tiveram de sair escoltados pela polícia.

Agora, com o plano aprovado, resta ainda uma carta na manga: a Justiça. Como o processo todo está eivado de irregularidades e ilegalidades, os movimentos sociais esperam que ao ser julgado o mérito da ação movida pelo Ministério Público, a votação realizada seja impugnada. Por outro lado, todos sabem que a justiça burguesa, no mais das vezes, não se manifesta favoravelmente à maioria da população. Ela tem classe. E defende os interesses da classe a qual pertence.  Assim, as esperanças são mínimas.

De qualquer sorte, o movimento por uma cidade que seja capaz de se sustentar na energia, na água, na mobilidade, com ambiente equilibrado, não termina com essa votação. As pessoas que construíram o plano diretor participativo – desfigurado pelos vereadores – seguirão na luta diária. É certo que será mais difícil, mas todos sabem que é a luta que faz a lei. O que causa revolta é saber que a destruição andará a galope e, depois de consolidada, muito mais duro será voltar ao que era. Se uma área de preservação for ocupada com prédios, como voltar atrás? Se a restinga desaparecer, como recuperar? São questões que agora ficam a martelar, ainda sem solução. A única coisa certa é mesmo a continuidade da batalha renhida contra aqueles que cotidianamente entregam a cidade para a especulação e para o lucro de alguns.  

O ano acaba, mas a luta segue! 



sábado, 28 de dezembro de 2013

Noites em La Paz



Dona Vivi é uma mulher baixinha, pequena, de olhos apertadinhos que vive em Oruru, Bolívia, com o marido Juan. Naquela noite, em La Paz, no fevereiro de 2003, ela chegou espavorida, agarrada ao braço do velho companheiro, o rosto moreno corado de ansiedade. Tinham ido tomar um café na rodoviária e viram a confusão. Pela rua acima vinha a turba de gente quebrando e queimando tudo. Ela percebeu que algo estava errado porque conhecia bem a turbulência da vida boliviana. Mulher de mineiro e filha de cocaleiro, ela mesma já tinha passado por coisas assim sua vida inteira. Nunca fora fácil ser trabalhador na Bolívia.

Dona Vivi tentou sair em direção ao hotel, mas Juan não estava muito bem. Tinha dificuldade para andar. Fora por isso mesmo que tinham vindo para La Paz. Ele iria fazer alguns exames no Hospital Obrero. Os seguranças da rodoviária fecharam as portas de ferro, ninguém mais podia entrar ou sair. Entre os turistas que esperavam ônibus, o medo era palpável. Os gritos da gente lá fora ecoavam fortes e parecia que um imenso vagalhão iria assomar por sobre o pavilhão.

A confusão começara horas antes em frente ao Palácio Presidencial. Policiais militares, que estavam em greve há dois dias, tinham ido fazer um protesto e foram recebidos a bala pelo exército boliviano. Em poucos minutos a guerrinha particular das forças armadas gerou 13 mortos. Em frente a Praça Morillos os corpos se estendiam diante de uma multidão ainda passiva. Mas, quando o sangue escorreu pela calçada, uma espécie de frêmito tomou conta das gentes. Estudantes secundaristas que tinham ido à praça para protestar começaram a função jogando pedras nas janelas do palácio. Foi o estopim de uma revolta represada. As pessoas, em turbilhão, começaram a entrar nos prédios e a quebrar tudo. De dentro dos edifícios voavam mesas, cadeiras, computadores, papéis. Em pouco tempo o fogo irrompeu. Em volta da praça o clima era de completa balbúrdia.

Sem qualquer policiamento e com o exército alheio a tudo, protegendo apenas o palácio, a multidão foi colocando para fora todos os seus demônios. O que era um protesto político virou desaguadouro de outras mágoas. Uma grande loja de departamentos, identificada como “americana” foi completamente saqueada e destruída. A turba seguia, derrubando, queimando, saqueando, destruindo. E, assim, foi descendo em direção à rodoviária, onde estavam Vivi e Juan. Não pouparam nem as bancas das índias. Tudo era arrasado.

Aquela foi uma tarde de terror. Só no início da noite Vivi conseguiu chegar na hospedaria com seu marido Juan. No dia seguinte teriam a consulta no hospital, mas já anteviam que aquilo iria ter de esperar. Durante a noite, os hóspedes se reuniram na sala principal, todos muito assustados. Seria uma madrugada de tensão e medo. Era um hotelzinho barato e talvez por isso tenha ficado de fora da sanha dos saqueadores que assaltaram a cidade por toda a noite. Acordados, todos, ouviam os tiros, os gritos, e sentiam o cheiro da fumaça do fogo que queimava por toda La Paz.

O segundo dia foi o pior. A polícia continuava amotinada. Os saqueadores tomavam a cidade. Nas estradas, outros tantos bloqueavam ônibus e carros. Bancos queimavam, prédios do governos eram destruídos e o exército havia colocado franco atiradores pelos prédios, os quais atiravam contra a multidão que se dividia entre os que protestavam e os oportunistas que saqueavam. As centrais obreras tinham chamado uma greve geral para aquele dia e o clima era de muito pavor. Ninguém sabia o que poderia acontecer. Todos esperavam um rio de sangue.

As caminhadas de sindicalistas e representantes do movimento popular aconteceram em La Paz e nas principais cidades da Bolívia. Bandeiras brancas pediam paz. Franco atiradores balearam uma médica e mataram uma enfermeira que ajudavam os feridos. A cidade entrou em comoção. Ninguém mais queira sair dos hospitais para ajudar. Foi um dia inteiro de completa confusão. Mortos e mais mortos. No meio disso tudo o governo se mantinha calado. Na televisão, os comentaristas exigiam que o presidente Sanchez de Losada resolvesse o caso da polícia para que esta voltasse às ruas, reestabelecendo a ordem.

Vivi e Juan não se assustaram com toda a violência. Durante aquela manhã haviam saído para tomar café e também saíram na hora do almoço. Não podiam ficar sem se alimentar, dissera ela. “A senhora não tem medo?” - perguntava eu. “Isso é a Bolívia, querida”, respondia, serena. No meio da tarde, enquanto pela porta do hotel passavam as gentes carregando portas, janelas, computadores e outros que tais, ela, serena, anotava receitas de comida brasileira que eu lhe passava. “Adoro cozinhar”.

No início da noite o presidente veio à TV falar com o povo. Havia concedido o aumento aos policiais e estes estariam voltando para as ruas. A Bolívia voltaria a ter paz (?), dizia. Na sala, com os companheiros de hotel, ouvi, aparvalhada, a fala de Goni, o presidente. Falava ele com sotaque inglês. “Mas como???” - perguntava eu, perplexa. Ele parece um estadunidense falando. “Ele é um deles”, diziam os homens, irritados. “Viveu a vida toda lá, representa os interesses deles”. “Mas vocês o elegeram?”... “Somos todos uns burros”, vociferou um mineiro de Cochabamba que esperava o fim dos conflitos para voltar para casa. “Somos todos uns burros”, repetia.

Fiquei mais um dia em La Paz esperando que liberassem os ônibus. Pelas ruas, as pessoas falavam do levante com aquela fleuma que é peculiar a um povo calejado nos horrores e nas rebeliões. A vida voltava ao normal. Na rodoviária, os turistas retomavam o movimento. As velhas índias ocupavam seus lugares pelas escadarias a pedir esmolas e os policiais, de volta às ruas, eram saudados com alegria. Vivi e Juan foram, enfim, ao hospital. “Vou experimentar a feijoada, filha”, despediu-se, sorrindo, a mulher de sangue índio e esperança atávica. A Bolívia ficaria para trás, manchada de sangue e fogo...como se o tempo não houvesse passado desde o passado imemorial...

Eu ainda não sabia, mas aquele era um dos tantos episódios da famosa Guerra do Gás, que colocaria para correr o presidente com sotaque de “americano”. E, desde ali, a Bolívia seguira por outros senderos. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Grupo Gente da Terra - uma entrevista

A cultura viva da nossa cidade: Meiembipe (nome original), Desterro (nome dado pelos imigrantes) e Florianópolis (vil nome dado para homenagear um carrasco). De qualquer forma todas essas três faces da cidade saltam nas canções do Grupo Gente da Terra. Um grupo que faz a gente se orgulhar...


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Ocupação Amarildo desvela a cidade




Quem chega na cidade de Florianópolis com olhos de turista ou de babaca-disposto-a-baladas tende a enxergar uma cidade repleta de oportunidades de diversão. São 42 praias, das mais belas que existem, mar grosso, mar de baia, mar com ondas médias, lagoas, enfim, natureza para todos os gostos. Também tem gente bonita, bronzeada, tem o centro histórico, a Praça XV, a decoração de natal. Têm as casas de show, os bares da moda, a algaravia da vida noturna na Lagoa. Mas, os que chegam como viajantes, cheios de curiosidade acerca da cultura, da vida real, esses podem ver uma outra cidade, invisível para os que procuram apenas divertimento.

As pessoas que tornam real o “parque de alegrias” dos turistas e que, no geral, são percebidas como borrões na paisagem, ocupam o Lado B da ilha da magia. Elas vivem na periferia da cidade ou então em outros municípios vizinhos, como Palhoça ou São José. São aquelas que precisam pegar três ônibus para chegar ao trabalho, vivenciando a amargura do transporte desintegrado, todos os dias. São as que, dia após dia, vão sendo empurrada para mais longe da parte “bonita” da cidade. As que não têm o direito de “sujar” a paisagem com suas presenças incômodas. Aos trabalhadores que arrumam as camas dos hotéis, que fazem a comida, limpam os banheiros, servem as mesas é negado o direito de viver nas áreas nobres.

Um exemplo disso foi a comunidade Vila do Arvoredo, chamada pelo poder público e pelos moradores “nobres” de  Favela do Siri. É um espaço na bela praia dos Ingleses que foi ocupado por gente que ali trabalha, mas que não tem condições de pagar aluguel. Muitas foram as tentativas de retirada das famílias e muito se discriminou o pessoal, chamado de marginal, vagabundo, e toda a sorte de adjetivos pejorativos. Que se resgistre: eram pobres, erguendo casas simples e tentando sobreviver. Foi preciso muita luta para conseguir se manter no lugar, e até hoje ainda não está resolvida a situação das famílias. 

O fato é as gentes precisam dar conta da proteção de sua prole. Como os ricos, os empobrecidos também querem erguer suas casas e garantir a moradia. E, para esses últimos, no geral, é sempre melhor que seja perto do trabalho por motivos óbvios: não se gasta com transporte, coisa que corrói boa parte do orçamento, além do tempo perdido no trajeto. Isso deveria ser bastante compreensível para todo mundo. 

Pois é esse motivo singelo, mas fundamental – o direito a moradia – que faz com que muitas famílias precisem apelar para medidas mais radicais, capazes de fazer com que a vida seja possível: a ocupação de terras ociosas. O sistema de organização da vida consolidado no modo capitalista insiste em transformar tudo em mercadoria, inclusive a terra. Então, os ricos compram terra para especular ou para construir seus espaços de ócio. Não querem saber de pobreza ao redor. Os pobres que se virem, que fiquem longe. Então, os governos criam projetos habitacionais em outros municípios ou nos ermos periféricos e querem ainda que as gentes agradeçam pelo “favor”. 

Mas gente há que insiste em fazer um caminho contrário. Não quer ser expulsa do paraíso. Se trabalha nos Ingleses, como morar em Palhoça? Se trabalha em Canasvieiras, porque não morar ali? 

Foi esse sentimento que moveu 60 famílias que ocuparam há uma semana um espaço de terra em Canasvieiras. O sonho de ter uma casa para morar, perto de onde ganham a vida. Para que os filhos estejam próximos, para que sobrem reais no final do mês. A terra pertence a uma empresa chamada Florianópolis Golf Club, que, em tempo recorde, já conseguiu a reintegração de posse. Ou seja: a justiça mandou arrancar de lá as famílias. Gente pobre, não. Melhor um campo de golf, bem verdinho, onde senhores abastados possam passar suas horas de ócio.  

Os legalistas dirão: “a terra tem dono, então, está certo”. E são os mesmo legalistas que acham absurdo demarcar terra indígena. Será que, como no caso de Canasvieiras, o que está em questão é o “tipo de gente”? Bom lembrar que essa mesma comunidade protagonizou um patético momento ao realizar uma passeata pedindo a expulsão dos mendigos da praia, como se os mendigos fossem coisas, e não a dramática consequência dessa sociedade de consumo, de exlusão e de exploração. No geral, os argumentos são os mesmos: gente pobre forma favela e favela só tem bandido, que traz a droga e o crime. Gente pobre traz a droga? Em que mundo?  

O fato é que mais um foco de tensão na luta pela moradia está criado em Florianópolis. Há pouco tempo, famílias ocuparam um terreno na Trindade, outro bairro nobre da cidade. Agora, é tempo da queda de braço. As famílias querem um lugar para morar, livres do aluguel exorbitante. A justiça quer que a terra seja desocupada. A empresa quer criar seu campo de golfe. O prefeito precisa encontrar um jeito de atender a todos. O fará? Não sabemos. Mais fácil é enviar a polícia e derrubar os barracos, colocar o terror nos olhos da crianças, como fizeram em Pinheirinho, São Paulo. É uma opção. 

Para os que apoiam a luta das famílias, entendendo a necessidade do abrigo sem custo, é tempo de trabalhar no sentido de articular as lutas todas da cidade. Há poucas semanas vivemos uma votação esdrúxula na Câmara de Vereadores. Foi aprovado, em duas tardes, um Plano Diretor que nenhum vereador conhecia, com o acréscimo de mais de 300 emendas, também desconhecidas. Esse era um momento em que todas as forças políticas tinham de estar ali, pressionando. Era a vida da cidade como uma totalidade que estava em jogo. As ações de luta ou de resistência particulares só poderão fazer sentido se colocadas nesse todo que é a cidade. Essa é a hora de avançar na consciência de classe, no entendimento do sistema como um todo. Compreender  que a forma como se organiza uma cidade é a forma que pode excluir, alijar, discriminar, explorar, matar. 

Desgraçadamente não foi o que se viu na Câmara de Vereadores. Estavam apenas algumas comunidades mais engajadas, pessoas, ambientalistas, pouco mais de 100 almas. Pois o que passou na Câmara diz respeito a ocupação Palmares, na Serrinha, ou a ocupação Amarildo, agora em Canasvieiras. Diz respeito à Vila do Arvoredo, ao Papaquara, aos morros da cidade, às periferias. É certo que os empobrecidos estão muito ocupados em garantir a sobrevivência do dia a dia, mas são esses momentos de luta e união que podem fazer a diferença no processo de compreensão da cidade.  

As lutas dentro da cidade são as chagas vivas do sistema. Momento abissal de tomada de consciência. As gentes da ocupação Amarildo vão resistir, e precisam, nessa resistência, compreender porque estão nessa condição, porque não têm direito à cidade, porque não podem morar em Canasvieiras, porque são vistas como marginais. Só com a clareza dessas respostas poderão enfim atuar na sociedade como autoras de suas próprias existências, escrevendo elas mesmos suas falas, na construção de uma cidade diferente, de um país diferente, um mundo diferente. 

No primeiro comunicado divulgado ao mundo, hoje (20.12), elas apontam: “As crianças levantaram bem e mesmo com uma noite longa e escura, anunciada pela oficial justiça, todas tiveram sonhos lindos, principalmente as crianças que não dormiram. Essas crianças são os anjos rebeldes de casca grossa... Magia é Ilha para todos! Quanto muito é o aluguel, pouco é o pão. Terra, Trabalho, Teto e Liberdade conquistados têm o gosto do alimento sagrado. Hoje vamos precisar compartilhar resistência, sabedorias e desobediência com muita gente. Estamos juntos, somos fortes!”

E é isso. Juntos, somos fortes. Na luta por um projeto de cidade que não seja excludente. Na luta pela destruição do capitalismo como modo de organizar a vida. 

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Um menino a passear...


Sou filha do meu tempo e espaço. Nascida numa família cristã, desde pequenina o natal significou presépio, ou seja, a montagem da hora mágica na qual um menino veio ao mundo para anunciar uma boa nova. E, com ele, a promessa de que haveria outra aliança e que nossos pecados todos estariam perdoados. Lá em casa sempre demos prioridade a isso. Nunca ao Papai Noel, brinquedos, compras, etc... A expectativa era a chegada do menino. Eu mesma sempre colocava o sapato na janela, mas a mãe explicava: “os presentes não são coisas, são sentimentos e desejos”. Então, quando o dia amanhecia eu entendia que um gurizinho tinha nascido e, por força da mágica da religião, também havia passado pela janela deixando amor, saúde, alegria e todas essas coisas boas. E recolhia aquele sapato como se fora a coisa mais preciosa do mundo.

Na minha mente de criança eu imaginava não um velhinho montado no trenó, com renas e todas estas coisas da celebração européia. Eu acreditava piamente que havia um menino, bem sapeca, magrelinho e sem camisa, que saracoteava pelo mundo, montado numa grande estrela, levando presentes invisíveis aos olhos. E eu esperava o ano inteiro por esta noite de passeio divino. E o legal era que o fato dele ser um guri tirava toda a pomposidade do sagrado filho. Era como esperar um amigo, coisa íntima.

Depois eu cresci e fui conhecendo outros mitos, outras religiões. Aprendi a dar pago à terra (Pachamama) em agosto, a respeitar o trovão, a folha de coca, as plantas, os animais. Aprendi a honrar Kuaray, jacy, Ñanderu. Aprendi a reverenciar outras manifestações criadas pelo humano para sustentar suas dores e medos. Porque é disso que se trata quando se fala de deuses. Eles são redes nas quais descansamos de nossos terrores. E, esta construção humana me enche de ternura, porque reconheço aí a fragilidade da nossa raça. Isso me emociona.

Mas, apesar de tudo o que aprendi sobre os outros deuses, o natal ainda me encanta de um jeito muito especial, talvez porque esteja colado na minha mãe, que já encantou. Então, a despeito de todas as impossibilidades, eu espero o menino. Às vezes, nos tumultos familiares ou no barulho da festa, pode parecer que eu o esqueci, mas não. Lá no fundo do meu coração, eu o espero. E o vejo chegar, montado na estrela, rindo seu riso de cristal. Também a despeito de tudo, ainda deixo meu sapato na janela e o recolho de manhã com a absoluta certeza de que ali dentro estarão os presentes. Os que verdadeiramente importam.

E, assim, nesta natal, como em todos os outros já vividos, meu jesuzinho haverá de vir passear. E eu estarei esperando...

Que ele passe por aí também!...

Gente da Terra lança mais um CD - cultura viva da nossa terra

Temos aqui em Florianópolis uma maravilha cultural. É o grupo Gente da Terra, que faz música com temas locais, que conta da vida cotidiana, da cultura, das brincadeiras. Um trabalho emocionante, instigante e de grande qualidade. Ancorado em Nilo Conceição e Amaro Manoel reúne uma gente bamba, de primeira linha. O Quarto CD do grupo será lançado nessa sexta-feira, dia 20, lá no Engenho do Ataíde, na Rodovia João Gualberto Soares - Rio Vermelho, as nove da noite. Paga 20 pila, vê o show e ainda leva o disco. Tudo de bom. Aqui dá para vê-los, no primeiro de maio do Campeche. Alegraram a praia e a vida da gente. 


quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Seres do Bem - retratos de viandantes


Este é um trabalho único. Fala das gentes que caminham pelo país, pela América grande, Latina, pelo mundo. Fala de pessoas que decidiram dizer não a ciranda capitalista, que voltam as costas para o mercado, para a competição, o egoísmo. São homens e mulheres que vivem uma vida próxima da natureza, que escolheram proteger o planeta, amar o próximo e o distante, com-partilhar, com-viver na harmonia e na cooperação. Um povo sobre o qual pesa o preconceito.

Vistos como loucos, hippies, marginais, através das lentes do fotógrafo Ricardo Casarini Muzy adquirem outra forma. Aparecem aqui imortalizados em instantes de perpétua beleza: o da partilha amorosa com todos os seres viventes, em cenas do cotidiano dos encontros que realizam para trocar experiências e saberes. O trabalho de Ricardo, que projeta em preto e branco a vida dos viandantes já é, em si, uma escolha do caminho do próprio fotógrafo. Ele poderia ter preferido retratar a vida que se faz em salas acarpetadas, nas estradas asfaltadas, nas paisagens turísticas. Mas não, ele mesmo um homem de caminhos vicinais, decidiu percorrer a vida que viceja às margens, que anda pelos caminhos de terra, que se mostra nas veias internas do grande Brasil.

O livro Seres do Bem diz dessas escolhas. É um memorial poético que se faz na imagem e nos pequenos textos, retratando a prática de vida de homens e mulheres que decidiram viver já, agora, no presente, a ideia de um tempo solidário e amoroso. Cenas do Encontro Nacional de Comunidades Alternativas, no meio da floresta amazônica. Imagens do Rainbow, encontro de caminhantes de todo o mundo, no interior da Bahia, e do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Momentos rituais de trocas e de comunhão. Uma vida que muita gente não conhece. Uma opção, uma decisão sem volta. Agora cabe a você, conhecer, saber, respeitar e, quem sabe, partilhar.


Seres do Bem, editado em 2004, é um poema de amor à vida, ao planeta, aos seres viventes. É um presente, uma bênção. Um olhar generoso sobre os viandantes, os que semeiam, a despeito de todos os horrores do mundo capitalista, sementes de paz e de amor. Sentimento tão antigos quanto a própria vida, tão esquecidos, mas que revivem em cada cena cristalizada por Ricardo.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Sul da ilha convoca Audiência Pública e define rumos da luta pelo Plano Diretor






Fotos: Rubens Lopes


As comunidades do sul da ilha deram uma lição de participação ativa na vida da cidade nessa segunda-feira, dia 9. Por auto-convocação dos núcleos distritais do Campeche e Pântano do Sul, os moradores lotaram as dependências do Clube Catalina, no Campeche, em uma Audiência Pública, para conhecerem as mudanças produzidas pela votação atropelada da Câmara de Vereadores sobre o Plano Diretor. Essa votação, feita em bloco, de quase 700 emendas produzidas pela prefeitura e por vereadores completamente descolados dos debates do plano participativo, mudaram de forma radical a proposta que foi construída coletivamente nas reuniões realizadas nos 13 distritos da cidade. Com as emendas, a cidade fica entregue a especulação imobiliária, a serviço do grande capital, sem proteção contra a destruição do ambiente e com a sistemática desvalorização dos imóveis, afinal, em pouco tempo, o que hoje é beleza virará uma selva de pedra. 

A audiência começou as sete horas da noite, com a comunidade fazendo fila para assinar as listas e votar. Em pouco tempo, o salão estava lotado, mostrando que as pessoas estão preocupadas com o destino do município e dispostas a lutar pelo modelo de cidade na qual querem viver. O representante do núcleo do Pântano do Sul, Gert Shinke, abriu com um resumo de todo o processo do Plano Diretor Participativo, mostrando as idas e vindas da prefeitura e as conquistas do movimento no sentido de garantir cada vez mais participação. 

Depois, Janice Tirelli, do Campeche, contou sobre a história de luta da comunidade, que começou em 1989, com a histórica Carta do Campeche, que detonava o início de uma luta incansável por um plano diretor construído pelas gentes, plano esse que foi finalizado e entregue na Câmara de Vereadores no ano de 2000. "Nós fomos pioneiros nessa batalha por uma cidade boa de morar, planejada e protegida". 

Na sequência, Ataíde Silva, do Campeche, explicou o que muda no bairro com as emendas feitas por vereadores que não respeitaram as decisões da comunidade, tais como Lela, Erádio, Gui Pereira e Sandrini, que circulam pela região. Segundo Ataíde, se aprovadas essas emendas que privilegiam o capital, está aberta a ocupação de boa parte do Morro do Lampião e da restinga que protege o bairro da ação do mar. Também estão planejadas grandes vias que cortam o bairro e demandam desapropriações, enquanto que a proposta comunitária é de pequenas vias e ciclovias na beira do mar, para garantir a vida tranquila do bairro e a proteção da restinga. Segundo Ataíde, da forma como está conformado o plano, a proposta da prefeitura é elevar a população da cidade para quase 800 mil pessoas, sem considerar a capacidade energética, de água, saneamento e mobilidade. 

Em seguida, foi a vez de Gert Shinke explicar as mudanças que estão propostas para o Pântano do Sul, que seguem as mesmas diretrizes dadas para o Campeche. Ocupação das áreas verdes, construções de condomínios, vias rápidas. A ideia é encher cada vez mais o bairro, sem a devida estrutura. Na plenária, as pessoas ouviam estupefatas as propostas que foram aprovadas e exigiam o nome completo de cada vereador que foi responsável por isso. Foi frisado que apenas três vereadores votaram contra as propostas definidas em bloco pela Câmara: Lino Peres, Afrânio Boppré e Pedrão. 

Ao final, as comunidades reunidas na Audiência Pública decidiram pela confecção e entrega de um documento ao prefeito municipal, aos vereadores e ao Ministério Público, exigindo o veto de todas as emendas que se contrapõem ao plano diretor participativo construído pela população. Também definiram que será articulada uma grande manifestação para o dia 30 de dezembro, dia marcado para a segunda votação do Plano na Câmara de Vereadores. Estrategicamente no apagar das luzes do ano, quando boa parte das gentes está viajando ou envolvida nos festejos de natal e ano novo. Ainda assim, houve o compromisso de todos em participar e levar mais gente para a manifestação.

Outra proposta aprovada foi a de se fazer uma ampla divulgação dos nomes de todos os vereadores que votaram no primeiro turno e que vierem a votar no segundo turno contra o plano elaborado pelas comunidades, ressaltando que, no primeiro turno de votação na Câmara, apenas três vereadores (Lino Peres, Pedrão e Afrânio), foram favoráveis ao que as comunidades decidiram.

A noite chuvosa terminou animada, com as comunidades do sul da ilha dispostas a aprofundar ainda mais a luta pela cidade que decidiram construir.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Canasvieiras quer expulsar mendigos


foto: Natália Cancian - Folhapress

Buscando as raízes da palavra mendigo, diz-se que vem do indo-europeu  ‘men-’ (pensar) e ‘dhe-’ (por, colocar), mais o verbo latino ‘facio’ (fazer), no qual o prefixo  ‘de-’ significa carecer (de-fecto). Vem daí também a origem do significado real que foi dado a palavra. Nos tempos muito antigos, mendigo era aquele que carecia de algumas funções mentais, o louco, ou ainda os que tinham alguma deficiência física. Sem que ninguém quisesse arcar com eles, viviam como caminhantes, esperando pela compaixão das gentes.  

Nas sociedades antigas, como na Grécia, por exemplo, havia aqueles que decidiam por vontade própria, viver na rua, daquilo que encontrassem. Era os cínicos. E já naquele tempo eram bastante criticados por isso. Outros, como Francisco de Assis, chegaram a fundar ordens religiosas, compostas por medicantes. Viver de esmolas para dedicar mais tempo as coisas espirituais. Também, no seu tempo, eram rechaçados, chamados de loucos, apartados da vida social. Só mais tarde Francisco virou santo mas, quando vivo era um pária. Seria expulso da praia de Florianópolis se aqui vivesse.

Hoje, os mendigos já não são só aqueles que tem deficiência , ou cínicos, ou religiosos. São os que não conseguem permanecer dentro da bolha de “consumo” capitalista. Assim, os empobrecidos, os que não tem trabalho, os abandonados, os que caíram em algum vício, os desgraçados, os excluídos, os que não conseguem ganhar o pão do dia, são os que vivem nas ruas, esperando a compaixão das gentes.

Mas, no mundo coloridos do capitalismo selvagem não há espaço para compaixão. Aquele que não é igual só consegue fomentar o medo. Assim, os que, por algum motivo, conseguem se manter na bolha da vida “normal”, que é ter um emprego, um pequeno negócio, uma casa para morar, passam a olhar com desconfiança os que não tem. Sentem medo, nunca compaixão. E, para purgar o sentimento de medo, atacam. Preferem tirar do alcance das vistas aqueles que, de alguma forma, são a denúncia viva de uma sociedade falida.

Os gregos, que são a base da cultura ocidental já diziam: o ser é, o não-ser não é. Ou seja. Só existe aquele que é igual. O diferente, não-é, logo, deve ser exterminado. Foi essa lógica que sustentou a matança dos indígenas no chamado “novo mundo”, que permitiu a escravidão dos negros, e que vem sustentando o extermínio de todos aqueles que não estão enquadrados nos cânones da “normalidade” social. Não é sem razão que um morador de rua tenha sido condenado a cinco anos de prisão por estar portando pinho sol e água sanitária num dia de protesto no Rio de Janeiro, ou que o pedreiro Amarildo tenha sido barbaramente assassinado numa favela carioca. Outros tantos exemplos poderíamos colar aqui: o desordeiro, o black bloc, o grevista, o pichador, o crítico. É diferente? Crucifiquem-no!

Por isso não é de surpreender a passeata feita no bairro de Canasvieiras, em Florianópolis, pedindo a expulsão dos mendigos e dos viandantes da praia. Comunidade praieira, turística, já há muitos anos virou o destino preferido da classe média alta argentina e brasileira. Ali abundam os hotéis, as propriedades protegidas e os negócios medianos. Ou seja, reduto da pequena burguesia, sempre tão cruel, tentando escalar a montanha da riqueza, custe o que custar. A essa gente, tão afeita em subir no contexto social, em acumular riquezas, as criaturas mal-vestidas, sem trabalho e, muita vezes drogadas ou alcoolizadas, são muito mais do que uma ameaça. Elas acabam sendo uma espécie de espelho às avessas. O horror do qual todos querem escapar. Por isso reagem tão mal. Alguns desses seres podem sim ser bandidos, ou ladrões, ou monstros, mas a maioria é formada por gente que, por algum motivo, não consegue penetrar na roda do mundo normótico. Ou seja, criaturas iguais a nós, só que desprovidas dos meios para ganhar a vida. Daí que deambulam pela cidade, esperando a compaixão daqueles que são seus iguais, humanos. Mas, por detrás das janelas, os olhos assustados que observam os viandantes não conseguem os ver como iguais, ao contrário, são os não-seres. Então, o grito: expulsem, crucifiquem!

Enrique Dussel, criador da filosofia da libertação fez um exercício bem simples usando a velha máxima grega “o ser é, o não-ser não-é”  que nos governa. Para que a gente se liberte desse axioma racista e discriminatório há que caminhar a partir de outro. E ele o inventou. Disse: “o ser é, o não-ser é real”.  E isso muda tudo. Se aquele que não é igual a mim é real, significa que eu não posso simplesmente dizer: matem-no, crucifiquem-no! Tenho de enfrentar essa diferença, olhar nos olhos, compreender. A partir daí outras práticas humanas podem ser possíveis.

Esse é um trabalho gigante que temos de cumprir. Mudar os axiomas, transformar a filosofia, destruir todo o edifício cultural que perdura por mais de dois mil anos. Não é coisa fácil. Mas, o fato de não ser fácil não significa que não possa acontecer.  Nesse sentido, talvez o grande trabalho que precisa se cumprir é o de alfabetizar a pequena burguesia de Canasvieiras sobre isso. Mostrar que os mendigos não são necessariamente um perigo. São pessoas que precisam ser compreendidas no seu contexto. Muito mais perigoso por ser o traficante bem vestido, o playboy estuprador ou o milionário assassino que se hospeda nos hotéis de luxo da praia e tem muito dinheiro no bolso. Mas, que, às vezes, por parecer igual, passa batido.

A sanha raivosa contra o pobre não é coisa de hoje. Parece ser “normal” bater no que está no chão. É mais fácil “malhar o judas” do que enfrentar a dura verdade que o velho Marx já apontava: no capitalismo, para que um viva outro tem de morrer. Os poucos “manifestantes” que saíram pelas ruas de  de Canasvieiras querem seguir pela via mais curta. Destruir o que lhes dá medo. Precisam saber que não adianta. O sistema ao qual seguem e no qual querem ascender sempre vai produzir mais e mais excluídos. Logo, esse,  serão um exército. Quem sabe, aí, tudo mude! …

sábado, 7 de dezembro de 2013

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Só quando chegar a hora


Como num livro de Kafka, dias há em que se acorda outra coisa. Nem humano, nem bicho. Algo. Foi assim naquela manhã. Ela despertou e não estava mais. Havia como que um vazio de si. Talvez fosse a exaustão de tantas dores, derrotas, medos, prenúncios. Ainda assim, levantou, resoluta. Iria fazer como no lindo filme “A excêntrica família de Antônia”, no qual a personagem central, depois de uma vida inteira de embates com tudo ao seu redor, ajeita as coisas no seu cotidiano, festeja a vida,  deita-se tranquilamente e morre. Poderia tentar. Quem sabe. Feito Antônia, ela também era um “tanque de guerra”, puro “acero”, capaz de enfrentar qualquer peleia. Talvez por isso voejassem à sua volta tantos seres, se amparando.

Naquela manhã em que fraquejou não conseguia entender porque a ela não permitiam a fragilidade. Ou será que fora ela mesmo que nunca se deixara ficar, fraca e indefesa, a espera de um herói? Que mania tinha de, ao primeiro soar da batalha, se postar à frente, peito aberto, arma em punho.   Por que raios não pedia proteção? Por isso ninguém nunca acreditava em sua dor. E não havia outro remédio senão engoli-la e seguir, abrindo os caminhos à facão.

Lembrou do dia em que saiu de casa no rumo do sul, com apenas uma velha mochila militar. Tinha tanto medo, mas o olhar era firme, como se caminhasse para o paraíso. E tudo o que tinha era um senão, um grande talvez. Perdeu a conta das noites insones, da fome roendo, do corpo enregelado, da solidão. E ela nem rangia os dentes. Passou ventos, tormentas, temporais, olhou bem dentro do abismo, viu o que havia lá e não deixou escapar um pio. Carregou essa imagem sempre bem guardada, atrás do riso, colocado na cara como um reboco. Ninguém precisava saber.

E agora, essa exaustão, esse suspiro de angústia. De novo, lembrou o filme de Antônia. Lá, há um personagem que fala dessa dor, que não passa. É o Dedo Torto : "(...) É absurdo crer que a dor constate que nos aflige seja apenas momentânea . Pelo contrário: a desgraça é a regra e não a exceção. A quem culpar por nossa existência? A explosão solar que nos deus a vida? Eu me acuso, já que não creio em Deus ou reencarnação, se acreditasse poderia me iludir de que a vida nos promete uma divina sobremesa após uma indigesta refeição. Não quero mais pensar, acima de tudo não quero pensar". Dito isso, ele se entrega.

Mas, para a mulher, parece meio tolo desistir por vontade própria, antes do tempo. Afinal, de que valeria tudo o que já foi? Talvez seja preciso esperar, que chegue a hora, como Antônia. Firme, cheia de poder sobre si mesma. Então, ela trata de retomar as rédeas dos demônios que andam soltos. Que se aquietem. Que voltem para as sombras, para o fundo do abismo. A vida cobra a faina do dia-a-dia. Roupas para cerzir, passeatas para seguir, passeios para varrer, gatos para cuidar, textos para escrever, gentes para proteger, caminhos para trilhar.

No muro, uma coruja move lentamente a cabeça, desafiando a lógica. Um quero-quero se esganiça anunciando algum viandante. É noite escura. Não há estrelas, prenuncia mais um temporal. Ela recolhe a lágrima, apruma o corpo e ainda encontra tempo para lavar a louça que sobrou do café. Tudo está limpo. Hora de dormir. Talvez sonhar.


Ainda não é tempo de ir.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A comunicação da UFSC

Breves notas sobre a comunicação da UFSC


Poucas vezes na história da UFSC a comunicação entre a universidade e a comunidade esteve tão ruim. A opinião pública é bombardeada com informações desde fora – quase sempre negativas - e, desde dentro a universidade não consegue estabelecer um diálogo real com a cidade. Há uma aposta nas mídias eletrônicas e sociais, sem eficácia. Perde a gestão, perde a comunidade universitária e perde a cidade, que fica com uma visão distorcida dos fatos que acontecem na UFSC. A universidade não consegue falar de si, passando uma visão amadora da administração e de todo o seu quadro de trabalhadores. A reitora parece estar orientada a não falar com os jornalistas e a não responder as críticas. Ela está blindada pela assessoria,  deixando de ser uma fonte acessível aos profissionais de imprensa, perdendo a oportunidade de se colocar como sujeito político não só no que diz respeito a vida da universidade, mas também com relação aos grandes temas locais, como é o caso do Plano Diretor.

Apesar de contar com uma agência de comunicação, que já foi modelo em nível nacional, a nova administração preferiu atuar desde o gabinete, destruindo, inclusive, a política pública que há décadas vinha sendo construída pelos trabalhadores e dirigindo a forma de comunicar na universidade. A primeira atitude, logo no início do mandato, foi rebaixar o status da agência. Foi retirado o cargo de direção e a agência virou uma coordenação, apenas com chefia, totalmente subordinada ao gabinete. Toda a produção passou a ser comandada a partir da administração central por uma professora do Curso de Jornalismo que não estabeleceu qualquer vivência cotidiana no espaço da agência, enquanto os jornalistas de carreira passaram à condição de cumpridores de ordens vindas de cima, sem participação no debate da nova linha de comunicação imposta. É bom que se lembre que a Agência de Comunicação da UFSC, historicamente, quase sempre foi dirigida por jornalistas do quadro. Essa foi uma batalha travada pelos Técnico-Administrativos em Educação (TAEs) durante muito tempo e vencida, marcando um espaço de respeito pelos profissionais que ali atuam e que, tal e qual um professor, tem capacidade técnica e política para atuar no cargo.  Apenas em duas situações - muito particulares - um professor do Curso de Jornalismo assumiu a condução dos trabalhos, e nessas duas oportunidades os problemas foram muitos.

O primeiro desses mandatos de docentes teve como protagonista o professor Bonifácio Bertoldo (originário da filosofia, mas atuando no jornalismo) e a reação dos trabalhadores foi imediata. A gestão foi conflituosa e durou poucos meses, com os TAEs garantindo o espaço e a atuação. O segundo professor do Curso de Jornalismo a assumir a Agecom foi Áureo Moraes, que também teve muita oposição, uma vez que assumiu o comando da agência num momento muito singular, em plena greve de TAEs e de professores na UFSC, pegando os trabalhadores da agência de surpresa. Na verdade, foi um golpe dado pelo então reitor Rodolfo Pinto da Luz, que queria uma comunicação chapa branca e aproveitou-se do momento em que boa parte dos trabalhadores estava em luta, fora do espaço de trabalho, para fazer a mudança, exonerando o então diretor, um TAE, sem qualquer conversa. A partir desse fato único, a gestão do professor do Jornalismo que se seguiu foi bastante polêmica, com casos de censura a jornalistas do quadro, impedimento do exercício profissional e de assédio moral. Quando, por fim, a agência voltou a ser dirigida por um técnico-administrativo, estava já bastante debilitada, uma vez que vários trabalhadores saíram do setor.

É fato que para os trabalhadores da época, grupo no qual eu, inclusive, me incluía, o grande debate nem era se o novo diretor era ou não professor. A polêmica se deu em função da forma como o reitor Rodolfo Pinto da Luz e seu vice- Lúcio Botelho, conduziram a questão, sem nenhum diálogo e de forma sub-reptícia, num momento de greve. Por outro lado, a luta dos TAES, que levou mais de 20 anos, para que a agência fosse reconhecida como um espaço de comunicação institucional, profissional, também estava em jogo. Afinal, ao trazer um professor do Curso de Jornalismo para dirigir a agência, o reitor buscava também tornar o espaço um local de ensino, com os estudantes do curso fazendo o trabalho de jornalistas profissionais. Coisa com a qual os trabalhadores não concordavam e queiram discutir. Mas, não houve diálogo. O próprio processo de trabalho mudou totalmente, com o novo diretor, dizendo na primeira reunião de equipe: "a democracia que havia aqui, acabou". E assim foi.   Com ele, a política pública de comunicação criada e desenvolvida pelos trabalhadores, ganhadora do Prêmio José Reis de Divulgação Científica e modelo para boa parte das agências que se criaram nas universidades brasileiras, foi negligenciada.

Com o retorno de Moacir Loth, trabalhador técnico-administrativo, jornalista de carreira, à direção da agência, pós-Áureo Moraes, o processo de política pública foi sendo retomado, mas andou bastante capenga, na medida em que divergia do projeto dos reitores Lúcio Botelho e Álvaro Prata que, de certa forma, eram uma continuidade do projeto rodolfista. Ainda assim, aos trancos e barrancos, foi mantido o Jornal Universitário (JU), histórico periódico da UFSC, de tiragem quinzenal, com algum espaço para a opinião crítica e reportagens sobre temas da UFSC e da política nacional. O JU sempre se caracterizou por ser, com seus limites, um dos espaços de comunicação mais importantes e democráticos da instituição. A vida da comunidade universitária e sua relação com a conjuntura nacional passava por ali. Grandes reportagens eram produzidas, o debate fluía. Mas, com o passar do tempo também o JU foi escasseando, aumentando o intervalo entre uma edição e outra, e a política de trabalho assumiu cores mais oficialistas. Ainda assim, um pequeno grupo resistia, fazendo o jornal, apostando na reportagem, garantindo a opinião divergente, além de começar o trabalho de entrada no mundo virtual das redes sociais e outras parafernálias tecnológicas.

Gestão Roselane/Lúcia

Agora, na gestão Roselane/Lúcia - que se elegeu no escopo de um projeto mais progressista -  já não há mais vestígios nem da antiga política pública de comunicação, nem do Jornal Universitário, que simplesmente sumiu do mapa. A comunicação tornou-se unicamente on-line, sem espaço para o debate público acerca dos problemas e desafios da UFSC, o que sempre aconteceu através das opiniões que eram publicadas no JU. Para avivar a memória é bom lembrar que a política pública de comunicação da UFSC foi elaborada em 1987 pelo grupo de jornalistas que atuava na agência, e tinha como objetivo fugir da lógica redutora do jornalismo chapa-branca (oficialista), buscando realizar uma comunicação capaz de articular as várias correntes de pensamento dentro da instituição, com prioridade para os fatos jornalísticos, comunicação crítica e bastante espaço para a opinião, gerando intenso debate dentro e fora da universidade. Numa instituição conservadora como a UFSC a proposta até que durou muito tempo, sempre defendida pelo grupo de jornalistas do quadro, e foi ponta de lança de um movimento que  se espalhou pelas agências de comunicação das universidades federais. Muitas delas foram organizadas aos moldes da Agecom da UFSC.

E o interessante é que nos fóruns realizados pela administração, antes de iniciar o mandato, o tema da comunicação foi bastante discutido. Todos os jornalistas foram ouvidos e, sem dúvida, a maioria deles destacou a política pública de comunicação como um avanço importantíssimo que não poderia sofrer revés, ao contrário, deveria ser retomada com toda a força, para se diferenciar da mediocridade com que as administrações anteriores haviam tratado o tema, optando pelo oficialismo e pela falta de espaço crítico. Mas, a demanda dos jornalistas não foi escutada e a política que a nova gestão decidiu implantar em nada se identifica com o processo iniciado em 1987.

Hoje, temas polêmicos como os que envolveram as panelas do Restaurante Universitário, a compra do prédio Santa Clara e o fechamento do campus, não encontram espaço de debate na comunicação institucional. Outros, como as 30 para os TAEs são escondidos ou desvirtuados. A administração se comunica através de notas explicativas, oficiais, que circulam apenas na internet, com textos insossos, sem contextualização, sem interpretação dos fatos e, por vezes, sem informação de qualidade. Ou seja, não se faz jornalismo. O que existe é uma comunicação aos moldes da comunicação empresarial, propagandística. Mas, não da universidade, e sim da gestão. Nesse sentido, a UFSC vai perdendo o debate na mídia. Na medida em que age como uma "empresa", perde credibilidade. Passa a impressão de que é dirigida por amadores, incapazes de se comunicar com a comunidade externa e interna.

E é importante ressaltar que isso não se dá por falta de competência do quadro de jornalistas. É simplesmente a escolha por uma nova política que não dá espaço para a autonomia e o espírito crítico dos trabalhadores.  Assim, em vez de a administração atuar potencializando o diálogo com a comunidade através dos instrumentos de comunicação, ela os subutiliza, desconstrói e prefere o modelo de respostas evasivas aos problemas que, primeiro, aparecem na imprensa comercial. É uma resposta reativa, que não expõe os problemas e evita a discussão em profundidade. Sabe-se que o grupo RBS abriu campanha contra a UFSC por conta do corte de verbas publicitárias, mas isso, por si só, não explica a desaparição da universidade dos meios de comunicação. Existe uma infinidade de jornais do interior, rádios, portais na internet que não são aproveitados com eficácia. O que aparece para quem está fora dos muros é a impotência da gestão em se pronunciar, o desprestígio para uma instituição tão importante como a UFSC e, fundamentalmente, a vitória de uma formação de opinião errônea sobre a universidade. Paradoxalmente, a UFSC, ao priorizar uma comunicação oficialista acaba indo contra a própria gestão. Ou seja, é um desastre.

Na política pública de comunicação desenvolvida durante anos pelos trabalhadores da comunicação a lógica era definitivamente outra. Havia o entendimento de que se havia um problema na instituição, a universidade deveria ser a primeira a divulgar, apontar e dialogar na busca de soluções. O contato era direto e rápido com o problema e com a sociedade. Não se atuava na defensiva, justificando-se depois que o assunto era levantado desde fora, a partir de denúncias, inclusive, pouco críveis.  O pensamento crítico, apesar de termos uma administração que foge da tradicional direita/negócio/maçonaria, não tem tido espaço por aqui.  Muito menos a eficácia no uso das velhas e novas tecnologias. Há um apagão completo na comunicação.

Novas mudanças, velhos métodos

Sem qualquer discussão com os trabalhadores da Agecom, a proposta da nova gestão foi criar uma estrutura separada de assessoria à gestão, atuando desde o gabinete, com a Agência de Comunicação desempenhando papel absolutamente secundário e sem conexão cotidiana com o trabalho feito na reitoria. A assessoria, comandada pela professora do Curso de Jornalismo, Tattiana Teixeira, acabou centralizando todo o trabalho e definindo, em mão única, uma nova linha de comunicação, com ênfase nas mídias sociais e na informação ligeira. Mas, pelo que se percebe, tampouco isso está funcionando. O facebook da UFSC, por exemplo, tem pouco mais de 10 mil seguidores, num universo de mais de 50 mil pessoas, e ali não há qualquer interação. A página da Agecom, na mesma rede social, tem 56 curtidores. Descrédito na informação?

Segundo Tattiana, a proposta de assessoria própria nasceu da equipe que realizou o trabalho de transição, da qual faziam parte ela, Paulo Liedke, Carlos Righi e Itamar Aguiar. O relações públicas Paulo Liedke, que assumiu a coordenação da Agecom por um curto espaço de tempo, confirma, mas problematiza. "A equipe sugeriu que a gestão tivesse uma assessoria, mas em nenhum momento se falou em perda de espaço para a Agecom. Pelo contrário, era para atuar integrada com a agência, jamais no modelo de subordinação como está atualmente". Seria como a experiência vivida no período do reitor Diomário de Queiróz, quando houve um trabalho sistemático de acompanhamento das ações da gestão, especificamente, mas tudo feito por profissionais da agência. Paulo chegou a apresentar, quando ainda na direção da Agecom, uma proposta ao Fórum de Planejamento de Gestão, na qual havia justamente a sugestão de aprofundar a política pública de comunicação com a criação de um conselho de comunicação e o fortalecimento da Agecom. Tudo foi ignorado e ele mesmo foi exonerado do cargo. Na gestão de Roselane, a agência perdeu toda a sua autonomia e, junto com ela, qualquer iniciativa de potencializar uma comunicação capaz de chegar à comunidade. Tudo vem de cima.

Agora, passado pouco mais de um ano de gestão, desde o dia 8 de novembro, a comunicação sofreu alterações, com a nova linha sendo ainda mais fortalecida, o que parece um contrassenso, visto que os resultados são ineficientes. Pois, a administração da UFSC criou um cargo específico, com status de direção, para coordenar não apenas a Agecom, mas  toda a comunicação da instituição. Para tanto, acabou tirando o cargo de outro trabalhador técnico, do Centro de Eventos, espaço que também perdeu força. O novo cargo, de Direção Geral de Comunicação, está ocupado pela professora Tattiana Teixeira, que já dirigia a assessoria do gabinete, bem como a própria política que agora é respaldada e premiada pela gestão. No cargo, ela deve concentrar o comando da assessoria do gabinete, a Agecom, a TV UFSC e a Coordenadoria de Design e Programação Visual. Sobre isso tampouco houve qualquer anúncio por parte da reitoria e nem sequer a divulgação do fato. Tudo aconteceu internamente, numa prática bastante questionável do ponto de vista da democracia institucional. Os trabalhadores foram pegos de surpresa e, ao que parece, tampouco poderão intervir na política que já vem pronta do gabinete. Preocupa também o fato de a TV UFSC, justamente agora que se abre para além do cabo, cair nas redes de uma comunicação do estilo chapa-branca. Será um grande retrocesso.

Em entrevista, a professora Tattiana afirma que a nova política vem para melhorar a comunicação, e reconhece que havia problemas. Mas, segundo ela, a separação entre a comunicação da gestão e a informação institucional dá mais agilidade ao processo e a Agecom pode seguir fazendo o trabalho de contato com a imprensa e os releases da instituição. Também alegou que se o Jornal Universitário não estava mais sendo feito era porque a própria equipe da Agecom havia decidido que não tinha mais como produzi-lo, uma vez que todos os terceirizados foram suprimidos do quadro. "Agora, com essa nova estrutura, vamos realizar um fórum e discutir com a comunidade sobre o que fazer com a comunicação", disse. Tattiana acredita que é hora de avançar para novas experiências e não tem dúvidas de que a comunicação vai ser mais eficaz. Mas, se considerarmos a política de "fóruns" da gestão, já se pode ver que não avançará um milímetro do que já está definido.

Como jornalista na UFSC e integrante do quadro da Agecom durante mais de uma década, apesar do otimismo da nova diretora, vejo com preocupação a forma como a comunicação da universidade vem sendo tratada e os rumos que toma. Numa instituição como a UFSC - e numa gestão diferenciada - os processos e decisões não deveriam ser tocados sem a participação de todos os profissionais. Tampouco pode ter uma comunicação oficialista, que retrate apenas a gestão. Há um universo de pensares, fazeres e gentes que precisam de espaço para se expressar. Esse espaço tem de ser o da comunicação pública. A Agecom já cumpriu esse papel de conter as opiniões divergentes e divulgar a vida que brota desde a instituição. Agora, o que se vê é o velho jornalismo chapa-branca se fortalecendo, atuando na defensiva, sem diálogo com os profissionais que atuam na comunicação, como se eles não fossem capazes de aportar ideias e propostas eficientes. Como se fossem apenas mão de obra para uma política que se formula desde fora, nos altos escalões, sem que a participação interna seja levada em conta. O nível dos profissionais que hoje estão na agência de comunicação da UFSC permite que eles sejam muito mais do que "fazedores de release". Também se observa muita restrição na divulgação de temas polêmicos, como foi o caso da 30 horas para os TAES e a desaparição da cobertura cotidiana da vida da UFSC na página da instituição na internet. 

Assim, não se trata de ser contra esse ou aquele colega que, por questões que lhe são particulares, decidiram trabalhar com essa concepção de comunicação, com a qual, obviamente, não concordamos. Há nesse texto não uma crítica pessoal, mas uma análise da gestão Roselane/Lúcia, que se pauta por uma quase in/comunicação com a comunidade externa e pela ausência do diálogo e do respeito com os trabalhadores, jornalistas ou não, da Agência de Comunicação. Se a gestão entende que um professor do Curso de Jornalismo é mais indicado para comandar os destinos da Comunicação, está bem. Mas, seria de muito bom-tom que os trabalhadores, que lutaram uma vida inteira para garantir o respeito ao seu fazer, fossem ouvidos, consultados, escutados nas suas demandas. Segundo a professora Tattiana, em reunião recente com a equipe da Agecom, não encontrou nenhum descontentamento. Pelo contrário, diz, as pessoas estão bem contentes com as mudanças.

Mas, nesse processo há que se problematizar. É bastante comum na UFSC a política do medo, principalmente quando há um controle acirrado da informação desde cima, como está sendo feito agora. Importante lembrar que alguns trabalhadores ligados à Agecom estão sofrendo processos administrativos ou sindicâncias e isso também leva a um certo receio de se expor. Nesse sentido, a "alegria" dos trabalhadores precisa ser relativizada.

Agora, resta ver o que vai acontecer. Se a Agecom repetirá a velha estratégia redutora de misturar comunicação institucional com espaço de ensino do Curso de Jornalismo,  se a Direção Geral de Comunicação permanecerá com uma política oficialista, ditada de cima para baixo, se continuará calando as opiniões críticas por não oferecer espaços de expressão. Se assim for, seguirá sendo uma postura antidemocrática, não esperada por quem se elegeu formulando um discurso que se contrapunha ao histórico autoritarismo vigente na UFSC. Um autoritarismo que, paradoxalmente, a não ser pelo período pontual de Rodolfo, sempre respeitou os trabalhadores da Agência de Comunicação, hoje reduzida a um espaço de produção de notinhas e releases ao estilo da comunicação empresarial.

O tempo das reportagens e da contextualização da vida política brasileira e universitária está sepultado. Há um equivocado foco nas mídias sociais, com a aposta na informação ligeira e incensatória, que tampouco funciona. Com isso aprofunda-se o fosso entre a universidade e a sociedade. Assim, um projeto comunicativo que não se comunica é a derrota, não só da gestão, mas também da UFSC, no campo da constituição da opinião pública. Falta pensamento crítico na comunicação da UFSC.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Pérola - trançando vida

Programa Pobres e Nojentas no Mercado 3 - Entrevista com a cabeleireira Pérola, personagem da vida de Florianópolis. Mulher, guerreira, que trança a vida nos cabelos e na valentia.