sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Os negros e a chibata



Não, não vi o vídeo. Apenas a imagem se repete na minha linha da vida o tempo todo. O homem negro sendo espancado por dois seguranças, enquanto aparentemente uma mulher incentiva. Hoje é o Dia da Consciência Negra e a situação se reveste de especial perversão. É assim aqui, nos Estados Unidos, na Europa, em qualquer lugar. Ser negro é ser alvo. Aqui em Joinville uma mulher, eleita vereadora, também teve a vida ameaçada, porque cometeu a ousadia de ser petista e negra.  

Negro não pode falar alto em nenhum lugar. Porque matam. Negro não pode andar na rua de noite. Porque matam. Negro não pode ter carro bom. Porque matam. Negro não pode olhar feio pra ninguém. Porque matam. Negro não pode se arvorar a ser político. Porque matam. Negro tem que ficar no seu lugar. E que lugar é esse? O da sombra. Negro tem de olhar baixo, tem de ser silencioso, servil. Negro não pode ostentar, nem dar risada alto. Tampouco pode estar na rua depois da meia-noite, nem andar de boné ou de capuz. Negra tem de se comportar, não pode circular em loja chique. Negra tem de se contentar com emprego ruim e aceitar. Essa é nossa sociedade, que é nascida da violência, do estupro e do tráfico negreiro. Hoje, temos na presidência uma criatura abjeta que cristaliza essas práticas, que incita a violência, o estupro, o racismo. Então, os desgraçados acreditam que não tem a menor importância matar, socar, violentar. Fazem tudo à luz do dia, diante das câmeras e postam nos seus perfis. Está tudo permitido. Fazem isso com os negros pobres em maior medida, mas, não se enganem, ninguém está salvo, nem o otário que hoje dirige a Fundação Palmares. Nem ele. Porque ser negro é ser alvo. Essa é uma verdade que ninguém pode negar. Como ultrapassar essa cerca, de ser uma sociedade que mata negros? Como superar essa chaga aberta? Reforma e Revolução. Atuar agora, na luta pela redução de danos, mas também pavimentar o caminho da revolução. Porque é preciso viver agora. É preciso existir sem medo agora. É preciso poder brincar na rua agora, ser vereadora agora, circular nos lugares agora.  

Mas, ainda também é hora de fazer os desgraçados largarem a chibata, como um dia os marinheiros liderados por João Cândido fizeram ao ocuparem o encouraçado Minas Gerais, no Rio de Janeiro. "Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira... Vossa Excelência tem o prazo de 12 horas para mandar-nos uma resposta satisfatória..." Assim falava já como almirante, o marinheiro comandante da revolta acontecida em 1910, João Cândido, com os canhões apontados para o palácio, no que ficou conhecido como a Revolta da Chibata. Vários navios aderiram. Os negros em luta enquanto na praia, o povo acompanhava, maravilhado, o balé dos navios amotinados. Os negros, armados, definindo sua história e a dos que viriam depois. João, que era um homem viajado, sabia da história do Encouraçado Potenkin, quando os marinheiros russos deram início ao que depois virou a revolução. Ele sabia que era preciso atacar e atacou. Foi vitorioso.  

É fato que depois da revolta o governo matou muitos dos amotinados, prendeu, demitiu, todo o kit básico da resposta do poder. Mas, a chibata nunca mais voltou. É assim que se avança.  

No Brasil, segue sendo necessária a revolta da chibata. Outra vez, outra vez e outra vez. Até que um negro e uma negra possam simplesmente ser em qualquer lugar do país.  

Viva o Dia da Consciência Negra. Uma consciência de revolução! Viva Zumbi, Dandara, Tereza de Benguela, João Cândido, João Gama, Maria Firmina, Carolina de Jesus, e tantos outros.  

Estamos juntos, agora e amanhã.


A vaca emburrada


Tenho a mania de juntar coisinhas, pequenas e singelas lembranças dos lugares por onde andei. Com isso vou enfeitando o que chamo de “altar dos meus afetos”. Pedrinhas, pedaços de pau, bonequinhos, enfim, mimos. Com a doença do pai, eles foram sendo sistematicamente eliminados. Faz parte da agitação do fim de tarde, um desesperado mexe-mexe. Aí, as mãozinhas vão pegando os meus recuerdos e arrancando cabeça,  tirando pedaços. Um a um eles foram desaparecendo. As lembranças vivem apenas na minha cabeça agora. Uma das poucas coisas que ainda conservo à vista é um pequeno altar com meu São Francisco, o quilin (antiga divindade chinesa), e um presépio que fica montado o ano todo porque eu definitivamente amo essa hora do nascimento do meu jesusinho. Nesse presépio, que é bem estranho – com os personagens meio desproporcionais - tem uma vaca, que, por supuesto, devia estar na manjedoura. Ela é gozada, grande demais diante das outras peças - como o camelo que é minúsculo - e tem uma singularidade: a cara da vaca parece emburrada. Virou então uma referência para todos nós na casa. Assim, quando temos de clamar por algum milagre a gente chama: “santa vaca emburrada, rogai por nós”. E ela ajuda. É nossa santinha.  

Pois hoje o pai danou de mexer no presépio e eu meio desesperada porque também não dá pra falar pra não pegar, que aí mesmo é que ele pega. E puxa o são José, e puxa Maria, e pega as ovelhas, e olha o camelo, e muda os reis magos de lugar. E eu só rezando pra ele não pegar a vaca emburrada. Mas, não deu outra. Pegou. E vira pra cá, e vira pra lá. Até que... pimba. Lá se foi a vaca emburrada para o chão. Ai jesuzinho... Já era a minha santinha. Fiquei estaqueada. Esperando. Quando ele finalmente se acalmou e deixou meu presepinho fui ver o que havia restado da vaca, caída embaixo da poltrona. Pois para minha surpresa lá estava ela, intacta. Milagre.  

Essa minha santa vaca emburrada é forte mesmo. Aleluia.



terça-feira, 17 de novembro de 2020

Eleição x Revolução



Como sempre, depois das eleições, a gente acorda meio atordoada. É de lei. A gente entra no processo sem esperança, a gente sabe que as eleições são definidas pelo poder econômico, que há pouca consciência crítica e tal, mas, no andar da carruagem dá aquela animadinha. Quem sabe, dessa vez? Quem sabe, um milagre? Então, a derrota das pautas da esquerda nos traz de volta ao mundo real. 

No campo institucional praticamente não há espaço para as propostas de mudança estrutural. É uma completa ilusão. O conservadorismo é a regra, o sistema se mantém intacto. Algumas pequenas vitórias aqui e ali levantam a moral, mas é só uma musculação da esperança, porque, de fato, mudam muito pouco o estado das coisas. Ser um vereador de esquerda, por exemplo, numa Câmara qualquer, ajuda a denunciar, a inspirar a consciência de classe, a alfabetizar politicamente, mas tem pouca interferência na vida das cidades. Os projetos da direita, que definem as cidades, passam, e ponto final. Há, óbvio, avanços, na medida em que colocam temas que não seriam colocados, mas é tudo. No que é estrutural, os inimigos vencem.

Isso nos leva ao ponto: só uma revolução pode efetivamente colocar o mundo “patas arriba”. Não há outra escapatória. As tentativas institucionais, como na Bolívia, na Venezuela, mostram que as conquistas são poucas e que as reformas estruturais caminham com exasperante lentidão, além de serem sistematicamente atacadas. Já Cuba, que botou a elite reinante pra correr, avançou muito e só não avançou mais porque está bloqueada e isolada no mar do capitalismo. Só que lá houve mudanças na estrutura. E como disse um otário aí, lá eles “só” têm educação, saúde e segurança de qualidade e universal.  Isso não é bolinho. Foi conquistado no braço, revolucionário.

Assim que a ressaca da eleição, esse véu de maya, só aponta um caminho. Esse caminho pode parecer inexistente, nebuloso, inalcançável. Mas, uma olhadinha na história e a gente já percebe que ele pode aparecer assim, do nada, no meio da bruma, nos mostrando que ainda que não tivéssemos percebido, ele estava lá. Daí a necessidade de formar as colunas de combatentes. Preparar e preparar, pois quando o vento dissipar a cortina, temos de estar prontos para caminhar, combater e vencer.

Acordei triste, mas já me animei e tal qual Morgana, a bruxa celta, já estou de pé, na beira do lago, esperando a barca.



domingo, 15 de novembro de 2020

O sistema é bruto



No mundo capitalista o espaço reservado ao pobre é o da servidão. Quem aceita isso vai arrastando a miséria. Quem não aceita, toma porrada. Não há concessões. Passeatas, protestos, manifestações, tudo o que envolver reivindicação, trabalhador, gente pobre, é enfrentado na bala. A polícia não arrega. E nós, no Brasil, tivemos provas bem concretas nos últimos anos, quando as passeatas dos apoiadores do atraso – os riquinhos e a classe média - eram protegidas pela força bruta, e até fotos eram sacadas com os soldados, “amigos da paz”.  

Quando a noite cai, tudo o que acontece nas comunidades de periferia, nas favelas, nos bairros empobrecidos é bandidagem. E a polícia se compraz em entrar atirando. Aqui em Florianópolis, dia desses, mataram um menino de 12 anos. “O que um guri desses estava fazendo na rua a essa hora?”. Meia noite de uma noite quente. Deveria estar no teatro?  Ah, mas era uma comunidade pobre e nela, para a força, tudo que se move, de noite ou de dia, é bandido. E há que combater o tráfico. E quando a comunidade em luto se rebela em protesto, mais balas, mais porrada. Para que o medo siga grande e imobilize. 

Nos beach clubes de Jurerê, praia da elite, a droga rola solta. Mas, lá, não chega a força matando tudo que se move. Não. Lá estão os jovens brancos, sarados, criados a toddy, embriagando-se com champanhe, dando lucro aos bares da moda. Ali tudo é permitido: cocaína, heroína, boa-noite cinderela, estupro, o que for. Nada está fora da lei. Não há pé na porta, não há tiroteio, não há combate ao tráfico. Não. Traficante? Bandido? Esse tem cor e tem endereço certo. Não vou nem falar nos donos reais das drogas, né? Que certamente não são os gurizinhos da favela. Esses não têm aviões, nem salvo condutos presidenciais. Eles são apenas vendedores, um elo fraco da corrente.  

O sistema é bruto e existe para foder com a maioria. Uma pequena parcela dessa gente, luta. Outra parcela, bem grande, aceita a servidão, seja por medo, por desconhecimento, por puro cansaço. Parece que se mantiver a cabeça baixa e aceitar a migalha, poderá viver em paz. Mas, não. Isso é ilusão. Mesmo o que se ajoelha vai ser pego, mais hoje, mais amanhã. Pode estar na rua numa “hora imprópria”, pode ser confundido com alguém, pode ter a cor errada, no lugar errado. Pode estar com a roupa errada ou segurando um guarda-chuva. O sistema não poupa ninguém, se for da classe trabalhadora.  

Então, a única saída é enfrentar o bicho. Na porrada mesmo. No protesto, na manifestação, na batalha nas ruas. Porque quando muitos se juntam contra a minoria, acontecem coisas fabulosas, como a revolução russa ou a revolução cubana. O sistema tem um poderoso braço de propaganda, que engana, que mente, que esconde. Então, a parada é dura, dura mesmo. Mas, há que quebrar esse espelho de mentiras. E mudar as coisas. O sistema é bruto, mas podemos ser mais. O que ocorre é que não há escolhas. Quem luta pode morrer, mas quem não luta também. Então, qual vai ser? Que sejamos capazes do grito dos zapatistas. Já basta!  

Que viva o povo em luta! 

Que nossas noites tragam a primavera.