sábado, 29 de julho de 2017

Ratos de Esgoto

Escrito em 1990, esse pequeno conto narra a realidade das famílias que ocupavam as margens da Via Expressa, na entrada de Florianópolis. Um tempo de intensa luta por moradia. Esperidião Amin era o prefeito, logo substituído pelo seu vice Bulcão Viana. 


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Nos barracos da Via Expressa o clima é de aparente calma. Algumas pessoas estão sentadas em frente das casinhas, espantando o calor. No boteco, improvisado no barraco do Zé Pedro, os homens tomam a pinga do fim de tarde, fazendo hora para não voltar para casa. O trabalho já foi duro e, agora, aturar mulher e filho, é “dose pra leão”, diz Antoninho, um branco azedo, conhecido na comunidade por viver brindando com sopapos a sua mulher Otávia.

            Carlos Alberto também passa pelo boteco. É ali que fica sabendo das fofocas. Como ele trabalha de servente de pedreiro na ilha, fica fora o dia todo. Dentro do bar a discussão está acirrada. Todos falam sobre os ratos que andam competindo com as pessoas pelo espaço na favela. Euzébio, um negro forte, de voz arrastada, diz que é preciso fazer uma cruzada: “vâmo pegá uma turma e saí por aí matando tudo que é rato que a gente encontrá”. Todos têm uma ideia brilhante e falam sem parar, esquentados pela pinga. Enquanto isso, dois ratos enormes passam pra lá e pra cá, indiferentes à discussão, roubando açúcar do saco que fica sob o balcão.

            Carlos lembra os dois filhinhos, que já foram mordidos por rato, e a raiva vai tomando conta. Ele sai do bar e vai em direção à sua casa, um amontoado de tábuas velhas, coberta com pedaços de telha e lona preta. Ritinha está sentada no degrau da porta. Um filho no chão e o outro no colo. Em volta da casa, um valo fedorento deixa passar todo o esgoto que vem dos apartamentos do lado contrário à Via Expressa. Rita tem os olhos arregalados na escuridão. Está com medo.

            - Trouxe vela? – pergunta com a voz firme, sem ternura.
            - Trouxe! – responde secamente o garoto, que já é homem apesar dos 18 anos apenas. Ele entra e acende a vela. Só aí Ritinha se mexe. Bota os filhos na cama e vai preparar a comida para o seu homem. Estão casados há dois anos. Ela tinha 15 e ele 16. Duas crianças que se agarraram, com medo de ficar sós na vida. Sem pai nem mãe ela só tinha um destino: virar puta. Mas ele, que há muito tempo a espiava convidou-a para morar junto. Ela aceitou. Gostava dele, era carinhoso, bom, trabalhador. Quando ela teve o primeiro filho, estava com medo, e ele ficou o tempo todo do seu lado, vigiando, enquanto a parteira Maria lutava para tirar de dentro o guri que teimava em não sair.

            A vida até que corria tranquila por ali, mas agora tinha os ratos que andavam roubando a paz no barraco.
            - Será que ele não pode fazer nada – rumina a menina, enquanto mexe devagar uma mistura de arroz, feijão e macarrão branco.

            Carlos está estirado na cama. Também pensa nos ratos. Sabe que Rita tem medo, mas ele não dá conta de matar todos eles. Bem que queria, mas eles são muitos, aparecem sem que se possa fazer nada. Devia ser por causa da sujeira que tem ali, o esgoto, e o lixão lá atrás. Já tinham reclamado na prefeitura, mas nada fora feito. Era preciso que eles fizessem uma limpeza geral.

            Rita está de costas, perdida em pensamentos e Carlos olha fixo para sua bunda. Gosta dela, ainda mais quando estão na cama. Bem que ela podia não ficar tão emburrada.
            - Semana que vem vou puxar um rabicho do poste de luz, então ponho luz aqui em casa e compro uma televisão. Ela vai gostar – pensa feliz.

            Na madrugada, quando já estão deitados, Rita ouve um gemido fraquinho. Por um segundo, sente-se morrer.

            - São os ratos – assombra-se.

            Corre para a vela, acende e joga a luz sobre as crianças. O maiorzinho dorme na cama com eles, está bem. A pequenina está num berço improvisado com restos de cadeiras. Quando a luz da vela chega ao bebê, ela sente o terror invadir o seu corpo. Um rato está grudado na cabecinha que a criança mexe devagar, com um choro miúdo. Nesta hora o medo se vai e Rita avanço no rato com as duas mãos, puxa com força, tentando tirá-lo da cabeça da filha. O rato resiste, finca os dentinhos. O bebê chora, Rita também, mas não larga o bicho. Pega um pedaço de pau que está no chão e bate. O rato solta a criança e a mulher geme baixinho enquanto levanta a filha e a encosta contra o peito, as duas chorando. Na cama, o marido e o filho sonham.

            Quando o dia chega Carlos encontra Rita sentada, com a filha no colo, chorando mansinho.
            - O que foi? - pergunta. Ela conta, sem soluços, o choro caindo salgado e quieto. Ele fica puto, não vai trabalhar. Pega uma pá, e sai para limpar o terreno.

            - Hoje acabo com esse lixo – resmunga entredentes. Os restos de esgoto estão por toda a parte. Ele se enfia no meio da merda, da sujeira, e vai cavando uma vala em volta do barraco. Depois, entra em casa e vai tirando tudo o que tem para fora. Limpa cada canto, tira tudo o quanto é papel velho, pano sujo, tudo. Rita assiste assustada aquela faxina toda, mas não diz nada. Esperava por isso, queria isso.

            Já vai longe o meio dia quando Carlos termina a limpeza. Vai à venda, compra veneno para ratos e espalha em cada cantinho da casa.
            - Cuida pras crianças não tocá – orienta a mulher.

            Passam dois dias inteiros sem que apareça qualquer rato. Carlos puxou o rabicho do poste e agora tem luz na casa. As coisas vão melhorar, pensa a mulher. Mas naquela tarde, o marido chega doente. Tem dor de cabeça e muita febre. Rita se apavora e chama a sogra. Levam-no para o hospital, pois nenhum remédio acaba com a dor. Lá, o médico diz que não é nada, só um problema de estômago, e manda de volta pra casa. Mas a dor não vai embora, e ainda tem o vômito, a febre alta.
            No outro dia, volta de novo para o hospital. Mais um pouco de remédio para estômago. Aquilo não estava certo. Carlos enfraquece, perde o prumo. Rita se apavora e leva para outro hospital, afinal, já se iam três dias naquele sofrimento e aquele homem era tudo o que ela tinha.  
  
            No Hospital Regional, outro médico examina e manda internar. É grave.
            - O que ele tem? – indaga a menina. A pergunta fica sem resposta.
            - Vamos fazer alguns exames – diz o médico.
            Três dias depois o garoto está morto. Diagnóstico: Leptospirose. Uma doença causada por ratos. Carlos deve ter se contaminado quando limpava as valas do esgoto em volta da casa. A urina do rato, em contato com alguma ferida, fora a sua sentença de morte. Isso, aliado ao descaso da saúde pública que não se importa muito quando o paciente é pobre e preto.

            Na Via Expressa, durante o enterro do menino (tinha só 18 anos), o clima era de revolta. Tinham um morto naquela batalha dura contra os ratos, e era um deles, gente. Ritinha, agarrada aos dois filhos, já não chorava mais. Tinha medo. Desses medos mudos de quem nada espera. A casa estava limpa, a vala também. Já não tinha ratos a morder cabeças. Mas, até quando? Os esgotos continuavam correndo no meio da comunidade. Os ratos voltariam. E quando isso acontecesse, Carlos não estaria mais ali.

            Naquela noite, a primeira sem ele, a vizinha trouxe uma televisão, “que é pra menina se distrair”. Na hora do jornal, o prefeito da cidade falava de um novo projeto. Era a construção da marina na Barra, “onde os barcos vão poder atracar sem problemas, com muito mais conforto”, ressaltava a cara branca no vídeo.

            Foi só aí que Rita chorou. Chorou de medo, de dor, de solidão. Ela, menina, entregue aos ratos, não tinha nenhum portinho onde ancorar. Seu único porto estava agora enterrado. Não tinha mais ninguém. E enquanto uma menina amansava sua dor lá para os lados da Via Expressa, a cidade continuava a brilhar, longe, além da ponte, fria e bela...


            Pouco tempo depois a polícia derrubava todos os barracos da Via Expressa, que era para deixar a cidade com cara bonita para os turistas. Nem ratos, nem gente, nada mais assomava no espaço. Era só um verde artificial, de grama nova, que perdura até hoje.


sexta-feira, 28 de julho de 2017

Ódio aos indígenas: até quando?


Não bastou exterminar centenas de etnias, roubar as terras, escravizar, matar, destruir a cultura. Parece que nunca basta. Todos os dias, os povos originários precisam recomeçar a luta contra o preconceito e a ignorância. De cinco milhões na época da invasão, hoje mal chegam a um milhão e ocupam apenas 12% do território nacional. Muitos já perderam grande parte dos seus costumes e saberes, precisam garantir as forças para não morrer, para conseguir um mínimo de território onde possam ser quem são. Outros, na força da luta, uma luta renhida, conseguiram demarcar terras, nas quais tentam viver. 

Eu disse, tentam! 

Porque a guerra contra eles ainda não terminou. Todo dia é um 1500. 

Pois nesse domingo está sendo chamada uma reunião no colégio da comunidade de Enseada de Brito, Santa Catarina, para discutir o que chamam de mais uma “invasão indígena”, referindo-se a presença de um grupo Guarani na terra do Morro dos Cavalos. A terra que é dos Guarani desde os tempos imemoriais. 

Ocorre que ali na Enseada desde há tempos vem sendo travada uma luta contra os Guarani por gente que tudo o que quer é rapinar a terra. E, esses, insuflam a comunidade contra os índios, os quais poucos conhecem de verdade. Resta o preconceito e todas as simbologias construídas durante séculos de discriminação e inverdades. 

O mote da reunião é que os índios estão pondo em risco a água da comunidade. Como se os índios não fossem os poucos nessa bola azul chamada Terra que cuidam, de verdade, do ambiente. 

Pois domingo agora, eles já chamaram até a imprensa para denunciar a “invasão”. Seria engraçado se não fosse trágico. Quem são os invasores? 

É certo que o tempo passou e que é preciso encontrar formas de viver em paz, índios e brancos. Mas é certo também que o problema não está no índio. As pessoas precisariam conhecer a cultura originária, entender como funciona, como se move no mundo, compreender seus mitos, sua forma de ser. Fosse assim, muito do ódio se dissiparia. 

Mas, sabemos, a questão não é só a ignorância. O não saber. Aflora também a rapinagem, o espírito predador dos que apenas querem a terra para especular. Onde hoje tentam sobreviver os Guarani, há quem veja prédios, condomínios, empreendimentos rurais. Negócios, lucros. E nessa ambição, vão contaminando mentes e corações contra aqueles que só querem seguir vivendo suas vidas na terra que é deles por direito. 

As campanhas de ódio contra os Guarani do Morro dos Cavalos não são de hoje. O que surpreende é que passado tanto tempo, ainda não tenha sido possível uma convivência harmoniosa por parte dos moradores da cidade. Os índios não são monstros de sete cabeças. Eles só vivem de maneira diferente. Compreender isso já é um bom passo para o entendimento. Tomara que o povo de Enseada seja capaz. 

SOS Campeche Praia Limpa

O Movimento SOS Campeche praia Limpa nasceu de uma indignação, de ver, no verão, o esgoto escorrendo para o mar. Naqueles dias de final de dezembro, um pequeno grupo decidiu que se alguém estava jogando esgoto na rede pluvial, era preciso que fosse parado. E a primeira ação foi encher de sacos de areia as saídas de esgoto no rio Rafael. O lugar era quase invisível, pois o mato e a sujeira já tinham tomado conta do rio, que sequer se podia ver. Mesmo assim, o povo adentrou pela vala, buscando as saídas. E encontrou. Então, as gentes foram enchendo os sacos de areia e formando uma barreira. A partir desse dia o grupo só fez crescer. Cada domingo era uma ação direta. Sacos e mais sacos de areia nas embocaduras dos canos, discursos, informações aos banhistas, caminhadas com faixas e cartazes. Depois, o SOS começou um longo trabalho de identificação de cada saída de esgoto e construiu mapas, os quais foram entregues às autoridades. Não haveria de ser só um protesto de verão. Por isso, quando o verão se foi e com eles os banhistas, o SOS seguiu seu trabalho, devagar e sempre. Fez reunião com a Casan, discutiu a rede de esgotos, pediu fiscalização. E lá veio a Casan, mais tarde, fechando as saídas clandestinas, sempre orientada pelos mapas do SOS epela presença dos lutadores. Mas, o trabalho não ficou por aí. Começaram as articulações com a Associação dos Pescadores e com a Floram. Cada dia um passo. Trabalho de formiga, incansável e imparável. Nessa semana, junto com os pescadores, o SOS conseguiu levar o intendente, Edir Gonçalves, para a uma reunião no rancho do seu Getúlio. A proposta era limpar os rios do Campeche, desassorear, deixar o curso d´água à mostra, para que pudesse respirar, ser visto, correr livremente no seu curso, sem o peso da sujeira e do esgoto. Hoje o rio Rafael, que mais parecia uma vala malcheirosa, recebeu um trato, ficou livre da sujeira, a água brotou. Está suja ainda, muita sujeira estava ali atravancando o caminho, mas pode ser que volte a correr limpinha. É uma primeira vitória, pequena, singela. Mas, para quem é campechiano, ama esse lugar e viu nascer mais esse braço de luta no bairro, o que fica é um sentimento oceânico de alegria. Porque quando a comunidade viva se une e luta, as coisas acontecem. Parabéns ao grupo SOS Campeche Praia Limpa. Isso é só o começo. A luta segue. Viva o Campeche.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

De tristezas e alegrias


Sim, ando triste. Mais que triste. Tristíssima! Não fosse assim, não seria humana. A vida pesa. E, de fato, surpreende-me que alguém possa dormir bem à noite. Há coisas demais que provocam dor. As guerras na África, a destruição do mundo árabe, a morte de carroceiros pela polícia, o assassinato de meninos negros nas comunidades de periferia, o massacre de trabalhadores sem-terra, o assassinato de líderes populares, as guarimbas na Venezuela, os pacotes de maldade do Temer, a condenação de estudantes em Honduras, os horrores nos acampamentos de refugiados, o racismo em todas as partes do mundo, o ódio aos pobres, as caçadas aos animais e às gentes, os dramas familiares que me consomem, a destruição do Morro do Lampião, a demora do Plano Diretor, a exoneração do Daniel, as guerras do tráfico nas quais pobres matam pobres, a impunidade aos ricos, o machismo que mata mulheres, homossexuais, travestis e trans, a prisão de Rafael Braga. E por aí vai...

As coisas tristes saltam na nossa cara, sem compaixão. E pesam. Por isso, por vezes, encarranco com as pessoas que parecem "felizinhas" o tempo todo. Como isso pode ser possível? Sempre quis compreender. Eu, desde bem pequena, sou prisioneira da melancolia e, por vezes, quando a alegria me assalta, envergonho-me. Não me parece justo!

Os tempos que vivemos não perdoam a tristeza. São como deuses implacáveis exigindo felicidade, paz interior, espíritos apaziguados. Eu não lhes dou essa oferenda. Tenho esse freio na boca, com o gosto do fel que a raça humana produz, dia após dia. Sou como as carpideiras que se estraçalham diante do morto, num convulsivo choro, barulhento e estridente. Seus gritos não são teatro. São a desesperada não-aceitação do que é tido como normal. Minha tristeza é isso: carpideira, inconforme.

Sim, a vida me exaspera e eu me rasgo a alma. Não tenho poder contra os vilões do amor. Não posso resolver os problemas do mundo, nem sequer os meus, tão prosaicos. Sou como um seixo na beira do lago, vergando ao sabor do vento, na inescapável impotência. E as lágrimas são como lavas, escorrendo e queimando, tão destrutivas quanto a dor que procuram aplacar. A tristeza não tem fim, como já dizia o poetinha. Então, o que nos salva?

Outro poeta, mais popular, anuncia: “felicidade não existe, o que existe na vida são momentos felizes”. E é assim mesmo, Odair. Eles chegam, num átimo e nos fazem plenos. São como relâmpagos, um risco de luz. Pode ser uma greve geral, um projeto que começa, um programa de rádio, uma fruta madura na manhã, um beijo cálido, um sindicato que se ganha.

Hoje foi assim. No ônibus, em meio a toda a tristeza das gentes que voltam para casa depois de um longo dia de exploração, deixei que o olhar se fosse pela barra da rua, perdido, esperando nada. Então o vi. Um desses bonecos que ficam em frente às borracharias. Feitos de plástico, com tubos que parecem braços e que dançam pela força do vento que é insuflado neles. Não sei por que, mas esses bonecos me dão uma alegria inexplicável e intensa. Aquelas carinhas estranhas, meio quadradas, e aqueles braços numa dança alucinada. Aquilo é tão esfuziante, tão engraçado, tão alegre.

Sempre fico feito uma pluma ao vento quando vejo um desses bonecos dançantes. Toda a tristeza se vai, tudo é esquecimento. Só vem aquela vontade louca de ficar, tal qual o boneco, mexendo os braços, alucinada, com aquele riso bobo. É meu momento estelar.

Não sei quem foi o maluco que inventou esses bonecos, mas se alguém souber, por favor, diga-lhe: essa estranha criatura feliz me arrebata do porão e, por um segundo, vive em mim toda a alegria do mundo. É por essas e outras que os humanos ainda são capazes de me surpreender.   


terça-feira, 25 de julho de 2017

La Constituyente vá!


Essa é uma semana movimentada na Venezuela. No próximo domingo, dia 30, acontecem as eleições para a formação de uma nova Assembleia Constituinte que pretende enfrentar a grave crise que se abate sobre o país e aprofundar o poder popular. A campanha tem sido intensa, muitos são os candidatos que concorrem representando setores da sociedade e também regiões do país. A intenção é garantir a maior representatividade possível.

Os políticos de oposição, que são os responsáveis pela guerra econômica e pelas “guarimbas” (trancamento violento de ruas e incêndios a prédios públicos) decidiram não participar do processo e seguem buscando construir espaços paralelos de poder, sem muito sucesso. Chegaram a organizar até um plebiscito consultando a população sobre a saída de Maduro e conseguiram mobilizar sete milhões de pessoas, o que não avança muito no número de votos que têm garantido na disputa com o chavismo. O resultado, que não tem qualquer valor oficial, não surpreende, afinal, a política na Venezuela sempre foi bastante polarizada e a participação intensa. De qualquer forma, a capacidade de organização da oposição mostra que a disputa continua dura, com tem sido desde sempre na luta de classes vivida pelo país a partir do aparecimento de Hugo Chávez.

Hoje, as guarimbas que chegaram a colocar fogo em um hospital infantil e vários prédios públicos, arriscando a vida de centenas de crianças, já começam a ser rechaçadas com vigor pela própria população. O medo está esgotado. Nas ruas, não são poucas as ações de enfrentamento com a exigência do destrancamento das ruas e as protagonistas são as mulheres. Elas saem dos carros, arregaçam as mangas e retiram as barreiras das ruas além de darem lições de moral nos guarimbeiros. Na última semana uma tentativa de incêndio no prédio da TV pública VTV foi imediatamente rechaçado pelos trabalhadores que colocaram, literalmente, os guarimbeiros para correr. Os grupos seguem com trancamentos surpresa nas ruas do centro da capital, mas ninguém se arrisca fazer uma guarimba nas comunidades de periferia, onde o bolivarianismo é forte. E é justamente nas comunidades onde a campanha para a Constituinte tem sido mais intensa. Ali, as pessoas estão preocupadas em garantir a vida na Venezuela, vida boa para todos, sem marcha atrás.

De qualquer forma o dia 30 não deverá ser tranquilo. A oposição mais violenta, comandada por Leopoldo Lopez, vai agir e esperam-se atos de terror. Desde o dia 20 de julho a MUD, que congrega a maior força de oposição comandada por Henrique Capriles, convocou uma greve geral, incentivando o desaparecimento de produtos das prateleiras e chamando a população para parar o país, impedindo assim que as eleições aconteçam.

Também convocou um “governo de unidade”, que nada mais é do que a proposta de um golpe. Ou seja, eles criam um gabinete de governo paralelo e comandam a greve, visando a derrocada do presidente. A greve foi chamada para a última sexta-feira e conseguiu garantir vários pontos de trancamento de rua. Houve dois mortos nos enfrentamentos, mas o movimento da oposição não chegou a ser massivo. Como já se viu, há certo esgotamento das ações violentas. De qualquer modo é certo que essa semana haverá mais alguma tentativa de barrar a eleição e não será na paz. A MUD segue apostando numa saída não eleitoral, pois sabe que não tem maioria.

No campo do chavismo as coisas também não são um lindo céu azul. Há divergências e grupos em disputa. A diferença é que mesmo aqueles que estão mais à esquerda e criticam o governo de Nicolás Maduro sabem que com a oposição no poder a Venezuela volta na história. Então, preferem o silêncio e fazer a disputa por dentro, tentando ganhar o maior número de cadeiras na Constituinte para fazer avançar as políticas mais radicais.

Segundo a análise do economista Nildo Ouriques, o principal nó na divisão das forças chavistas é a política econômica que tem sido levada pelo presidente Maduro e que, segundo ele, é a que alimenta a oposição. Maduro seguiu apostando na conta de capital aberto, sem tocar nos banqueiros. “A conta de capitais abertos permite que o sistema bancário pegue as divisas petroleiras e coloque tudo fora do país. Isso provoca a inflação e todo esse caos econômico. O governo tinha que ir para cima dos bancos. E não vai”. Nildo insiste que o governo Maduro não tem uma estratégia econômica para fugir do poder dos bancos, prefere manter o acordo com a elite, mantendo-a endinheirada e não consegue dar um uso produtivo para as divisas por causa do rentismo. Então é um círculo que precisa ser rompido.

Outra divergência entre os chavistas reside no fato de que Maduro não chamou um referendo para decidir se ia ou não à Constituinte. É fato que a Constituição atual permite que o presidente, com seus ministros, decida, mas essa nunca foi uma prática do chavismo. A posição mais previsível era de que a população fosse primeiro chamada a decidir sobre isso, como sempre foi no governo de Chávez. Maduro considera que a situação de guerra que o país atravessa foi a que levou a uma decisão assim, mas, de qualquer forma, há quem não concorde. Ainda assim, a aposta agora é garantir que a Constituinte saia e a vida siga, com a população conquistando mais poder.  

O fato é que enquanto a população se organiza para não permitir que retorne ao poder o grupo apoiado e financiado por Washington, a batalha midiática contra a Venezuela segue a todo vapor. Os meios chamam de ditadura um país que mais faz eleição na América Latina, senão no mundo. Pois na Venezuela ainda quem manda é o povo. E se isso é uma ditadura, ela é bem mais democrática que a ditadura do capital na qual quem manda é um pequeno grupo de endinheirados.

Por isso que quem vai dar a direção sobre para onde vai o processo bolivariano é a população. Não tem sido fácil nesses anos todos acossada pelo ataque direto e implacável do imperialismo. Golpes, guerra econômica, violência. Todas as armas contra o poder popular estão sendo testadas por lá. E a população tem resistido. Agora, é mais uma prova. Está mais do que claro, pela análise das falas da oposição, que a tática é derrubar Maduro pela violência. Ninguém quer paz no grupo da elite, até porque não são eles os que estão nas ruas fazendo o combate. Não são eles os que tombam. Seus jatos estão sempre à postos para tomar o rumo de Miami. Já para a gente venezuelana, não há ir e vir para os Estados Unidos. A vida dela é ali mesmo, na Venezuela de Bolívar. E, com ele, assim como com a memória de Chávez, seguirão construindo a liberdade.