Tive a minha primeira grande briga com o pai em 1977. Ele havia partido para Minas Gerais e eu não o perdoava por ter nos deixado sozinhos em São Borja passando tudo o que passamos. Um ex-sócio nos acossando e tentando nos tirar tudo o que tínhamos e a vida da gente se esvaindo. Naquele mesmo ano, logo depois da partida do pai, o meu avô Dionísio morreu e eu não conseguia me conformar com tanta desgraça. Eu culpava o pai e dizia que nunca mais iria falar com ele.
O pai fora embora para Minas Gerais porque em São Borja não havia chance alguma de conseguir um emprego. Ele já tinha passado dos 40 anos e ainda carregava a marca de ter sido “cupincha” do Jango, o presidente deposto pelo golpe. Depois que a Rádio fechou, por conta da censura do governo golpista, ele havia montado um pequeno negócio com um amigo. O negócio falira e não havia o que fazer. Para nós, foi um baque. A vida ruía e eu não me conformava que ele tivesse nos abandonado. Naqueles dias terríveis era esse o sentimento, mas na verdade ele partira para que nós pudéssemos ter um futuro.
Depois que o vô morreu vimos o oficial de justiça chegar a casa e ir levando tudo o que havia dentro dela. O ex-sócio do pai o enganara fazendo assinar um documento no qual ele entregava até nossa casa. Começamos então a nos preparar para ir para Minas. Lembro que minha mãe decidiu ir até a biblioteca pública da cidade para doar todos os nossos livros. “Pelo menos os livros ele não vai levar”, ela dizia. E para lá partiram caixas e caixas dos livros amealhados por toda uma vida. Acho que nunca chorei tanto na vida como naquele dia. Chegou um momento em que nem cama havia, dormíamos sobre nossas poucas roupas. Quando fomos para Minas, no final de janeiro de 1978, só levamos algumas mudas de roupa e a máquina de costura da mãe. Mais nada. Toda uma vida se acabava.
Lembro que fiz a viagem certa de que ao chegar a Minas iria buscar meu caminho, pois não ia perdoar o pai. Fomos de São Borja a Porto Alegre e de lá até a estação da Luz em São Paulo. De São Paulo seguimos para Belo Horizonte, carregando nossas malas e a máquina. Chegando à capital mineira pegamos um trem para Pirapora, destino final. Lá pelo meio da viagem o vagão onde estávamos pegou fogo. Foi um furdunço e tivemos que mudar de vagão. Lá fomos nós carregando toda aquela tralha e ainda tivemos de terminar a viagem em pé, no corredor, porque não havia lugar. Foi uma odisseia.
Lembro como se fosse hoje aquela manhã de fevereiro quando o trem parou em Pirapora. Ainda estávamos na correria de tirar as malas e a máquina de costura do vagão quando vi o pai, nos esperando na estação. Estava magrinho e pálido, com uma roupa puída, retrato acabado da dor da ausência de mais de um ano. Então, todo o rancor que eu havia alimentado naquele ano se apagou. Corremos todos para os seus braços, esquecidos de toda a dor. E tudo que eu havia ensaiado para dizer foi abandonado. A gente precisava de cuidado, mas ele também. E a gente recomeçou, agora todo mundo junto.
Esta história me veio assim porque quis o destino que o pai viesse terminar a vida aqui, comigo. Tenho cuidado dele, pego pelo Alzheimer, há seis anos. E são incontáveis as vezes que eu olho pra ele e vejo aquela imagem de homem perdido e só, que ele apresentava na plataforma da estação. E exatamente como naquele dia, eu abro os braços e o aconchego junto ao coração. A diferença é que daquele fevereiro nós partimos para a vida, e, agora, daqui, o caminho é o fim. Não é fácil acordar todos os dias vendo meu pai desvanecer. E ali, bem pertinho, a ceifadora à espreita, me encara sem piedade.