No dia 8, as mulheres vão marchar em todo mundo
Assisti dia desses um filme indiano chamado Sairat. Dolorosa representação parcial de um país que ainda trata a mulher como uma coisa, unicamente para ser usada pelos homens, seja como mercadoria de troca ou como objeto sexual. O filme é novo, mas aponta para a quase impenetrável lógica das castas ainda em vigor. Quem nasce pobre só pode conviver com os pobres e quem nasce rico, com os ricos. Podem até usar alguns espaços em comum, como é o caso da universidade, espaço no qual começa o drama de um jovem casal. Mas, isso não significa que possam se misturar.
O filme narra a paixão de dois estudantes, ela filha do cacique local, ele, filho de um pescador. Como é comum aos jovens de hoje, eles pouco se importam com as convenções e proibições. Mas, quem diz que o resto do mundo não? O fato é que o pai da moça já tem um pretendente para a filha, escolhido por ele, segundo suas necessidades, não as dela. E ele vai fazer de tudo para impedir o romance. Não vou aqui narrar as peripécias do casal para viver seu amor, as dificuldades pelas quais passa, a fuga, o enfrentamento com seus próprios preconceitos e valores arraigados.
O fato é que o filme termina e a gente fica em estupor. Não consegui nem chorar. Foi como receber um golpe no estomago, dois, três, sei lá. Fica-se sem fôlego, sem ar. Dane-se que seja o século XXI. Nenhuma mulher pode decidir seu destino se o pai e toda a família – no seu lado masculino – não quiser. E a gente que vive nesse lado do mundo se estarrece.
Mas, basta que a gente se ponha a pensar e já podemos ver que essa apropriação das mulheres não é uma coisa que acontece na longínqua Índia, apenas. Não. Ela está aqui, bem do nosso lado, quando um namorado mata a namorada porque ela decidiu terminar, ou um ex-marido mata a ex porque ela se separou e quer voltar a ser feliz. As cultura se diferenciam, mas essa ideia de que a mulher é uma coisa, uma coisa com um dono, se mantém. E olha que não é só no capitalismo não. Nos sistemas regionais de poder que existiram antes do capitalismo global, a mulher também era peça de troca, tal e qual. Jogada para cá e para lá segundo os interesses dos pais e dos maridos. Nem a chamada “revolução sexual” mudou o panorama. Afinal, ser livre para transar com quem se quer não significa liberdade mesmo. Pode-se acabar com um tiro na cara, apenas por que algum macho alfa se arvore no direito de “possuir”, como uma coisa, a mulher.
Nas guerras, como as que vivenciamos bem agora, no oriente médio, são inumeráveis os casos de estupro de mulheres e até de meninas nas aldeias, nos campos de refugiados. E não apenas no “oriente selvagem”, como afirmam alguns. Não. Nos países europeus, aonde as mulheres chegam fugindo do terror, elas são obrigada a “servir” aos agentes de imigração, aos policiais, aos guardas. Nas prisões de qualquer país, as mulheres são estupradas e violadas quando bem querem seus algozes. Seus corpos são espaços de abusos de toda ordem. E quando elas se alçam em luta, unindo-se e protegendo-se, como fizeram as curdas, quando podem, os inimigos as violam para provar que não há escapatória.
É por isso que, de certa forma, a mulheridade é uma coisa que extrapola a classe. Pois mesmo na classe alta, no mundo dominante, as mulheres também estão em risco e podem sofrer violências, abusos e violações. Então é comum que assome esse sentimento de sororidade quando qualquer mulher no planeta é atacada, ainda que em outros espaços elas venham a ser adversárias ou inimigas. Parece ser algo que está no DNA. Não dá para não se sentir irmanada a qualquer mulher que venha ser violada na sua dignidade. Nessa hora é o corpo que se expande e se torna útero, disposto a acolher, como mãe, qualquer que seja a mulher em risco. Pelo menos é que o percebo entre as mulheres que vivem ao meu redor. Não sei se na classe dominante o sentimento é mesmo.
De qualquer forma, é óbvio que na classe trabalhadora o índice de violência contra a mulher é bem maior, porque as mulheres estão em maior vulnerabilidade. E não é só a violência sexual. É justamente a violência de classe. A dependência econômica, a falta de um lugar seguro para morar, a necessidade de cuidar dos filhos, a dura batalha para sobreviver, o jugo dos patrões, as pressões para ser tal e qual o sistema quer, tudo isso é lenha na fogueira para a violência e para o sentimento de que a mulher pode ser tomada como coisa, tanto pelo homem como pelo sistema dominante.
É por isso que essa é uma luta que precisa ser travada com muito mais intensidade no campo da política. Não é só um assunto de mulher. É um assunto humano. Assunto de todos. Tem de adentrar em todas as esferas e em todas as cabeças.
Tenho plena convicção de que num outro sistema de produção da vida, a mulher fatalmente encontrará um novo lugar. Esse é um processo em construção. Se no mundo antigo a mulher era coisa, se no mundo das grandes civilizações pré-colombianas a mulher era coisa e se no capitalismo a mulher segue sendo coisa, a luta que vem se travando desde os tempos mais remotos já garantiu as condições materiais para a mudança.
É chegado o tempo de poder ser mulher, e sem medo. Seja aqui, na Índia ou na Conchinchina. Isso passa não só pela sistemática luta por direitos e contra a violência– que é, e sempre será, insuficiente no capitalismo - mas também pela construção de uma nova sociedade. Sem isso estaremos sempre no espaço da redução de danos. E nós merecemos bem mais do que isso.
Agora, nesse 8 de março, as mulheres de todo o mundo estão organizando uma marcha, unificando gritos, lutas, desejos, esperanças. Será um dia em que cada uma de nós estará unida em coração e mente, na construção desse mundo novo. Enfrentar a violência, destruir o capitalismo, esse é o caminho. Não podemos querer só mais justiça, mais respeito. Mais isso ou mais aquilo. O “mais” significa que ainda estaremos dentro do paradigma que queremos destruir.
Queremos um mundo no qual possamos ser mulher, sem medo, sem opressão, sem exploração, sem violência. Um mundo de justiça, de corpos livres e riquezas repartidas. Um mundo socialista, ou com qualquer outro nome, desde que nele esteja contido todo o ideário dessa generosa proposta de bem-viver.