sexta-feira, 7 de abril de 2017

Beirando o mar



Hoje fiz um caminho pouco comum. Coqueiros e Itaguaçu, bairros do continente que margeiam o mar. É sempre como um descanso para a alma. A água calminha, as pedras apontando para o céu. Na tarde emburrada, de nuvens cinzentas, as cores do outono assomavam em plena beleza. Pela janela do ônibus, vislumbrando o mar, as imagens enchiam os olhos e vinha àquela paz docinha, que só existe no coração de quem ama demais essa cidade. E na ponta de areia parecia ver – eu e minha mania de ver os mortos – os pescadores do tempo de Othon D´Éça, trançando suas redes, mascando tabaco e falando das lidas do mar. 

quarta-feira, 5 de abril de 2017

O qilin, protetor da bondade


No mercado Pan Jia Yuan


No templo em Xian


Na cidade Proibida

Quando em 2013 passei alguns dias na China, fui perseguida o tempo todo por uma figura em especial, uma espécie de dragão, com enormes chifres e rosto feroz. Para todo lugar onde eu olhava, lá estava ele, representado em escultura ou em pintura. Como eu não falava chinês o jeito foi ficar perguntando à mocinha de uns 28 anos que nos acompanhava como guia. Sabia que não era o dragão clássico, que se vê também representado comumente em vários espaços. Alguma coisa nele me chamava e era muito forte. Por onde passava eu registrava sua figura e o abraçava.

Sou apaixonada pelos povos originários e seja onde for que eu vá imediatamente minha curiosidade se volta para as origens. Imaginei então que se aquele animal me perseguia e me chamava a atenção era porque tinha a ver com o passado remoto da China. A garota que nos guiava não sabia dizer. “Deve ser um deus antigo, coisa que agora não faz mais parte da nossa cultura”. Mas aquilo me encafifava. Se não fazia mais parte da cultura porque ele estava em todo lugar? 

Na visita que fizemos à cidade proibida, memória do tempo imperial chinês, lá estava ele, nos beirais dos palácios, em estátuas espalhadas pelo jardim, por tudo. E nas ruas também o víamos, misturado ao tradicional dragão. Espantou-me ver que a garota não sabia dizer o que ele significava ou mesmo seu nome.  

Em Xian, quando andávamos pelas ruas da cidade fortificada, nos deparamos com um templo magnifico, totalmente dedicado a ele. Naquele passeio estávamos sozinhos, sem guia, e por isso não foi possível a comunicação. Mas era óbvia a reverência que se via por parte das pessoas, visto que o templo era muito bem cuidado e tinha bastante incenso. Ou seja, não eram poucos os que ali acorriam para reverenciar o estranho animal. Logo, certamente era um ser sagrado.

Foi também por puro acaso que passeando pelas ruas de Pequim nos deparamos com um imenso mercado popular. Era o fascinante mercado Pan Jia Yuan, um gigantesco espaço da genuína arte tradicional e popular chinesa, misturado a um animado e diversificado brique, no qual se vendiam desde bonecas quebradas, lembranças de Mao, até as mais finas joias. O pavilhão, é claro, estava totalmente fora dos circuitos turísticos. 

Pois ao adentrar pelos seus portões mergulhamos na China mais verdadeira. Na praça estavam os vendedores avulsos, cada um com seu banquinho e  antiguidades de todos os tipos. Tranquilos e sorridentes eles nos convidavam para sentar e apreciar as coisas, com calma. Não importava que a língua verbal não fosse compreendida – de novo estávamos sem guia - o corpo falava, a mímica, a gente se entendia. Impossível descrever a beleza que explodia ali. O mercado, na sua concepção mais antiga. O olho no olho, a conversa, o regateio, tudo na paz.

E foi ali que, de novo, encontrei o estranho dragão. Estava em todos os lugares e era vendido em profusão, de madeira, de jade, de plástico, feito em tudo quanto era material. Não era possível que aquele animal não fosse algo muito importante para os chineses. Como no mercado praticamente só havia chineses, e muitos era bem velhinhos, eu tive de arriscar ser compreendida. Precisava saber o que era aquele ser, que já me tomara por inteiro.

Foi difícil, mas enfim consegui saber. O animal era chamado de “xilin”, com a grafia em chinês “Qilin”. Era, de fato, uma criatura mítica, oriunda das memórias mais antigas. E sim, era um elemento do sagrado mais profundo da gente do leste asiático. Então, como sempre acontece, lá estava eu de novo encontrando as raízes originárias do sagrado das gentes. Foi um encontro abissal.
Ele está em todas as partes porque os mitos ainda sobrevivem nas gentes, mesmo depois de tanto tempo de esquecimento, visto que com o fim do império e com o advento da revolução comunista, a religião foi apagada. Só que como sempre acontece, os elementos míticos não são coisas que se destroem assim. Eles vivem na memória histórica, na memória afetiva, no DNA.

O Qilin é uma criatura quimérica conhecida não apenas na China, mas em outros lugares do leste da Ásia. Queimar incenso para ele é pedir prosperidade, serenidade e felicidade. As primeiras referências a esse ser datam do século V antes de Cristo e há lendas que contam que o imperador Wu de Han chegou a capturar uma dessas criaturas vivas. 

Há os que dizem que ele é a estilização da girafa, que apareceu na China na dinastia Ming e que foi considerada pelo imperador como uma criatura mágica, capaz de gerar grande poder. Essa parece ser uma boa origem para o mito visto que o Qilin, apesar de seu aspecto feroz, é vegetariano, como a girafa. E também contam as senhoras no mercado que, mesmo sendo grandes, os qilins têm a capacidade de andar na grama sem perturbá-la e sem machucar qualquer ser vivo. Também dizem que sua voz é serena e auspiciosa, quase como o tilintar de sinos. Por isso, sua presença nas casas é sinal de desejos de paz e tranquilidade. 

A mitologia igualmente registra que os qilins tem a capacidade de discernir entre aqueles que são bons e maus, por isso sua figura aparece bastante em cenas de julgamento. Ser abençoado por um qilin é sinal de que se é bom e eles só ficam nas casas daqueles que conduzem sua vida pelo bem. Estando na moradia, o qilin é também proteção, pois podem ficar ferozes se a pessoa que eles abençoam é ameaçada.

As lendas dizem que os qilins só aparecem em corpo vivo para as criaturas muito bondosas, como apareceram para o mítico imperador Amarelo (Huangdi), que é considerado uma divindade dos tempos antigos. Também há registros de que foi um qilin quem previu o nascimento de um dos maiores sábios chineses: Confúcio. 

Saí do mercado com um qilin, é obvio. Comprei-o em jade de uma senhora bem velhinha, que o abençoou diversas vezes, e hoje ele mora na minha casa no altar dos meus afetos.  Por vezes, à noite, sinto-o respirar e caminhar pela habitação com seus passos de lã, mas ainda não o vi em carne e osso. Talvez porque ainda tenha que batalhar muito para chegar ao topo da bondade.

De qualquer forma é bom saber que o qilin guarda minha morada e meu espírito. Os deuses antigos de todos os povos tem em mim um altar. 



segunda-feira, 3 de abril de 2017

O fim do estado de direito, ou quando a ditadura do capital mostra a cara


Houve um tempo em que pareceu possível acreditar que no capitalismo haveria a possibilidade de existir um “estado de direito”. Ou seja, uma organização da vida amparada em leis e direitos, valendo para todos. O tal do contrato social. E assim, os estados garantiram leis de amparo ao trabalhador, benefícios para os velhos, as viúvas, as crianças e os doentes, regras de convício social. Alguns países até conseguiram chegar a algum nível dessa proposta, mas todos do centro do sistema. Até porque quem estuda sabe que, no capitalismo, o centro só é rico justamente porque tem uma periferia empobrecida da qual ele tira tudo o que pode. 

Mas, como a ideologia e a propaganda sempre foram fortes, houve muita gente que acreditou na falácia de que se trabalhassem muito, também chegariam a ter as maravilhas que se apresentavam na velha Europa ou nos estados Unidos. Riqueza, consumo desenfreado, amparo, saúde. Uma bobagem. Isso nunca seria possível num país dependente. Poderia chegar para um grupo bem pequeno de pessoas, pois como diz o teórico Gunder Frank, os países dependentes também conseguem algum nível de desenvolvimento, ainda que seja o desenvolvimento do subdesenvolvimento. E é só. Não há como garantir direitos para todos, pois assim o capitalismo deixa ser o que é: um sistema de exploração.

Assim, na América Latina, quando a revolução cubana iluminou todo o continente com uma proposta diferente da do capitalismo, os que estavam no controle do mundo trataram logo de abafar o perigo. Foi assim que se impôs a ditadura cívico/militar em todo o continente, de cima abaixo. O único direito que tinham os latino-americanos era o de ficarem calados, senão a morte vinha a galope, ceifando a vida dos que se insurgiam.

Nos anos 80 do século passado veio a tal da “democratização”, que foi uma distensão lenta da mão dura militar, passando o comando apenas para o braço civil. A ditadura já não era necessária, o tempo havia passado, Cuba seguia isolada e o sistema capitalista havia desenvolvido mecanismos de sedução que encantavam as pessoas, atraindo-as, sem a necessidade de um governo tão opressor. A liberdade raiou na América baixa, trouxe de volta os exilados, e abriu um tempo de eleições diretas. Votar era possível de novo. Voltava o direito. As pessoas podiam se expressar, fazer oposição, lutar por direitos trabalhistas, aposentadoria, moradia, transporte. Parecia que o “bem-estar” teria uma chance por aqui. Veio uma nova Constituição. A lei haveria de garantir o direito de todos.

Mas, que engano. A lei não vale para todos. Ela é uma construção histórica de uma determinada classe. É a classe dominante que elege seus representantes, e estes fazem as leis. É também a classe dominante que escolhe os juízes das cortes que julgam com base numa lei que sua própria classe fez.  E se a lei é um feito da classe dominante, o que podem os trabalhadores esperar? Que ela sempre se volte contra eles. Sempre. Mas, na euforia da democracia, as pessoas preferem se enfeitiçar pela ideologia do direito para todos.

A vida real nos mostra que não há direitos para os pobres. Eles não têm moradia, nem saúde, nem educação, nem amparo, nem previdência. Tudo é aparência de direito. A lei só existe para ser usada contra os pobres. São eles os que enchem o sistema prisional a partir de condenações por “crimes” tão prosaicos como ser companheira de um traficante e estar com ele na hora da prisão, roubar um pão, passar um cigarro de maconha para o marido na cadeia, carregar vinagre durante uma manifestação. Coisas assim. Claro que bandidos há, mas eles são a minoria. Aí estão as pesquisas para provar. A lei é feroz contra os pobres. Já os ricos, bem, esses tem bons advogados que torcem e distorcem a lei. Que o diga o jovem Thor, que não é um deus, mas filho de um que era: Eike, o superempresário. Matou um homem e saiu de boa.

Pois o sistema capitalista agora está tão seguro de si que já começa a pouco se importar com manter a aparência de um estado de direito. O poder está nas grandes corporações, que são transnacionais. Não estão nem aí para parecerem boazinhas. Querem tomar a vida dos trabalhadores até a última gota e arreganham os dentes. O direito? Ah, que se lasque. As leis? Que se mudem ao nosso bel prazer. É a ditadura do capital em sua meridiana clareza.

Em nível internacional isso começou devagar, com o império estadunidense afogando o direito, ainda meio tímido, escondendo-se por trás de mentiras. Foi assim na invasão do Afeganistão, feita a partir da queda das duas torres gêmeas. Era o terrorismo e tinha de ser combatido. Onde estavam os barbudos?

No Afeganistão. Então borá lá, vamos pegá-los. O mundo inteiro caiu nessa mentira deslavada e o Afeganistão foi destruído para alegria da indústria militar.  Depois foi a vez do Iraque, e a mentira das armas químicas. Em nome da salvação dos iraquianos, borá lá destruir as armas químicas que podem ser ameaça ao mundo. Mas, pera aí, não há provas! E quem precisa de provas? Basta que alguém – do centro – grite que tem armas, e tem. E lá foram os países centrais ocupar o Iraque, provocando destruição e morticínio. Dane-se o direito internacional. Afinal, quem decide o que é direito são os grandes. 

A América Latina volta ao foco

A América Latina pós ditadura parecia não fazer parte dos planos dos EUA. Mas, na verdade, fazia sim, só que com as coisas acontecendo de outra forma, no modo “suave”. Os primeiros sintomas de que a parte baixa da América sofreria outra vez o peso do império apareceram em 2002, quando a Venezuela viveu um golpe de estado. Hugo Chávez comandava o país fazendo coisas incríveis, como eleições gerais, plebiscitos, Constituinte, falando em socialismo. Deu o alerta vermelho. Era preciso parar o caudilho.

Então, veio o golpe, desta vez sem canhões, mas com a mídia. Através da televisão se formou um consenso de que Chávez tinha que cair. Era um ditador. Como assim, ditador? O que mais fazia era ouvir o povo. Ainda assim o golpe foi dado, pois interessava ao capital tirar o país do petróleo da mão dos “comunistas”. Mas, o golpe furou. O exército ficou com Chávez, o povo cercou o palácio, ocupou as ruas, exigiu o respeito à Constituição. Eles tinham feito a nova carta e não abririam mão dela. Foi uma derrota para os gringos.

Os países centrais viram que na Venezuela o buraco era mais embaixo. Resolveram então comer pelas beiradas. Se não tinham conseguido derrubar Chávez, derrubariam seus aliados, limpando a área e isolando a Venezuela, mantendo a campanha midiática sempre contra. E quais foram as armas? O arremedo do direito. As leis viradas de cabeça para baixo, para servir aos interesses dos poderosos.

Começou no Haiti, em 2004. O ex-padre, Jean Arisitide, foi enredado num jogo de mentiras, acusado de comandar um esquema de cocaína. Não bastasse isso, o parlamento se extinguiu obrigando o presidente a governar por decretos. No meio disso tudo “apareceu” um grupo rebelde, devidamente armado pelos EUA. Estava definido cenário do golpe.  Acuado, Aristide fugiu e o país foi ocupado por tropas leais aos EUA. Estão lá até hoje. Espaço estratégico no Caribe, de frente para a Venezuela. O golpe ainda seguia a velha cartilha de criar grupos rebeldes e desestabilizar pelas armas. Sem o presidente, usaram o “direito” para ocupar o país com tropas da ONU, levando a “democracia”. A ocupação está lá até hoje, só causando mal, impedindo o Haiti de seguir com as próprias pernas. Apesar de o mundo interior pedir a desocupação, os invasores seguem surdos. 

Em 2009, ainda por conta da “terrível ameaça” que era o Hugo Chávez, inventaram um novo tipo de golpe de estado. Não mais com canhões, grupos rebeldes ou milicos, mas no parlamento, tudo “dentro da lei”. Em Honduras, alguém – da classe dominante – gritou que o presidente estava rasgando a Constituição por querer ouvir o povo num plebiscito. E pronto. Estava dado o motivo para derrubar o mandatário. Sequestrado, ele ainda conseguiu se exilar na embaixada brasileira. Mas o golpe seguiu seu curso, pisando em todas as leis. Sem direito à defesa, Zelaya caiu. Golpe suave, patas de lã. O direito patas arriba. 

Em 2012, outra vez o novo golpe. Desta vez no Paraguai. Lugo, o presidente eleito, foi acusado de ser o responsável por um massacre de camponeses. Acusação sem cabimento, mas imediatamente aceita pelo parlamento. De novo, pisando em todos os ritos, os parlamentares, em parceria com o judiciário, mandaram embora o presidente, sem que ele pudesse se defender. E a América Latina viu, surpreendida, o judiciário atuar politicamente, sem base legal. 

Em 2016, foi a vez do Brasil. Depois de uma cruzada midiática, a presidenta Dilma foi a julgamento no parlamento mais corrupto dos últimos tempos. Acusada de dar pedaladas fiscais, uma prática comum em todos os governos, ela é tirada do governo. Sem argumentos sólidos, sem provas, sem nada, os parlamentares aprovam o impedimento em nome de deus, das mulheres, dos filhos, do cachorro. De novo, as leis parecem não valer absolutamente. Antes, várias pessoas ligadas ao PT também já tinham sido presas com base em delações, sem provas sólidas, apenas por pura “convicção”. O judiciário assumiu a patranha, com ações midiáticas, que transformaram um juiz em herói nacional, ainda que ele siga atuando contra o direito.

Agora, em 2017, a Assembleia Nacional da Venezuela, comandada pela direita, também decidiu pisar na lei, seguindo a mesma lógica. Simplesmente recusou-se a acatar decisões judiciais e ainda decidiu não reconhecer o presidente eleito como presidente legítimo, elevando-se acima de todos os poderes. E quando a justiça do país finalmente decidiu atuar e deslegitimar a Assembleia golpista, o chamado “mundo livre” saiu em defesa dos que haviam pisado na lei. Ou seja, ao que parece, o certo agora é não levar em conta o direito, se esse direito for o que determinar a classe dominante. Isso é a ditadura do capital mostrando-se em meridiana clareza.

Na semana que passou, os senadores do Paraguai, ligados ao presidente, que é um megaempresário, decidiram fazer uma reunião secreta para simplesmente mudar a Constituição. E lá foram eles, de costas para todos os ritos legais, remendar a carta magna para garantir que alguns dos candidatos à presidência pudessem propor uma reeleição. Entre eles, Fernando Lugo, o que fora deposto pelo golpe de 2012 e que agora aparece como virtual vitorioso numa próxima eleição. Assim, em nome dessa possibilidade ele se junta aos ex inimigos para garantir a eleição. 

Ontem, no Equador, fecharam-se as urnas para mais uma eleição presidencial. Acirrada. Disputa entre o oficialismo e a direita tradicional. Venceu Lenín, candidato de Rafael Correa. A direita, como está sendo praxe, não reconhece a derrota e insiste na denúncia de fraude. Muita água ainda pode rolar no Equador, inclusive, golpe. 

Tudo isso feito de maneira tranquila, como se sair do caminho da lei fosse agora coisa natural. E o pior que é. Não há qualquer lei capaz de barrar os interesses do capitalismo em sua nova fase de acumulação. Aquilo que aparecia como uma concretude, o tal estado de direito, não existe mais. A ditadura do capital mostra-se sem máscaras e sem qualquer prurido. 

Os países da América Latina estão sob riquezas muito cobiçadas. Petróleo, gás, ouro, prata, nióbio, lítio, água. Tudo isso precisa ser explorado sem que as empresas precisem se incomodar com protestos ou contratos que lhes diminuam os lucros. Por isso é preciso apoderar-se de tudo, sem levar em conta as leis. São tempos de anomia, sem regras, a não ser a que é a melhor para os poderosos de plantão e que são ditadas conforme a ocasião.

Então, o que parece muito claro é que há uma orquestrada tentativa de recuperar os governos minimamente incomodativos. Digo minimamente porque não há em qualquer deles grandes projetos de mudanças estruturais. O máximo que alguns governantes fazem é garantir alguns direitos sociais via políticas públicas, amaciando os trabalhadores para a aceitação da exploração. A Venezuela é a que parece avançar mais na garantia de direitos à maioria, por isso é a mais visada e mais atacada.

Mas, se a regra é burlar e pisar nas leis, o que os graúdos não pensaram é que ela pode ser usada também pelas gentes. Se nada mais vale, então pode tudo, inclusive o enfrentamento violento com as forças governistas e entreguistas. A revolta dos liberais no Paraguai foi bastante clara. Diante da sandice dos senadores, de todas as cores, inclusive Lugo, as pessoas entenderam que o que menos estava importando naquele prédio era o destino das gentes. Apenas interesses eleitoreiros, políticos e financeiros de um pequeno grupo que estava decidido a assaltar o poder. O freio para o vale-tudo foi a violência do grupo que protestava em frente ao Congresso. Portas quebradas, fogo, destruição total. “Que se vayan todos”, inclusive Lugo, que cedeu ao fisiologismo. Não foi uma revolta "popular", é claro. Marcadamente o protesto era do grupo opositor. Liberal. Mas, tem agregado gente de todas as tendências que não aceita ver os acordos feitos por cima. 

Como diz uma velha canção camponesa, “o risco que corre o pau, corre o machado”. Se a lógica do poder é pisar nas leis ou legislar em causa própria, esse feitiço pode virar contra o feiticeiro. Sem normas, sem qualquer contrato que garanta uma paz social, as gentes farão o que precisa ser feito. Romperão as correntes com a violência necessária. Então, será a revolução.

Por isso, não espantaria de maneira alguma se as classes dominantes dos países da América Latina, devidamente orientadas pelo império, voltassem a apelar para o direito, justamente para controlar a anomia que criaram. Um direito duro, mão de ferro, visando garantir a paz que tanto gostam. A do cemitério. 

Mas, enquanto isso, a história, com as gentes que a fazem, vai caminhando. Quem sabe? ... 

Paraguai e os desacertos da política eleitoreira


Há certa esquerda, no Brasil e na América Latina, que desgraçadamente desconhece a palavra e a prática da autocrítica. Nunca comete erros e suas verdades são mais verdade que a das gentes. Vários exemplos podem ser dados aqui no Brasil. A incapacidade de entender o grito das ruas no junho de 2013, quando milhões saíram a se manifestar por tudo quanto era coisa. Não era apenas a direita, havia ali uma multidão de pessoas desorganizadas, mas com demandas, querendo ser ouvida. 

Também podemos contabilizar os equívocos das campanhas de Haddad, em São Paulo e Freixo, no Rio, praticamente surdos diante das demandas reais da população. Enquanto as pessoas sonhavam com um atendimento médico de qualidade eles ofereciam ciclovias. Já a direita de nova cepa, a dos CEOs, atuava nesse nicho prometendo coisas que a maioria andava a sonhar. Venceu. 

Agora no Paraguai também assomaram as gentes numa revolta semi-organizada. O senado reuniu-se a portas fechadas, em acordo de partidos, numa sessão considerada irregular, para aprovar uma emenda à Constituição que garantiria a reeleição, não apenas de Cartes, o atual presidente, mas também de Lugo, o que foi deposto num golpe em 2012 e atualmente é o favorito nas pesquisas. Participaram da reunião senadores do oficialismo colorado, da frente Guasu, disidentes do Partido Liberal e representantes do Unace.

O grupo de pessoas que se reuniu em frente ao Congresso e colocou fogo no mesmo era formado na sua maioria por militantes do Partido Liberal, que são contrários à emenda porque tanto Lugo quanto Cartes são seus inimigos. Foram eles que comandaram os atos que levaram ao incêndio e a morte de um de seus militantes, numa invasão ilegal da polícia à sede do Partido Liberal. O jovem foi morto dentro do partido. Mas, entre eles também estavam pessoas comuns, desorganizadas, cansadas dos acordos feitos por cima, às escondidas das gentes. A população não é burra. Sabe como a política funciona. Apenas aparentemente não liga porque está mais preocupada com seus dramas cotidianos, que ninguém ali naquelas casas acarpetadas resolve. 

Ainda ontem, a frente que Lugo representa, Frente Guasú, lançou uma nota dizendo que não compactuava com os atos de violência e vandalismo praticados na noite de sexta e que esperava que o povo decidisse pela reeleição para que Lugo pudesse voltar ao poder, que lhe foi tirado por um golpe parlamentar. Ocorre que depois dos protestos em frente ao Congresso alguns parlamentares resolver agregar a sua aprovação da emenda, a proposta de fazer a mesma passar por um plebiscito. Mas isso ainda não está confirmado, porque parece que outros senadores não querem que seja assim. O povo tem de estar de fora.

Então há aí dois pontos a pensar: Sim, foram os partidários do Partido Liberal, que é tão conservador quanto o Partido Colorado, que iniciaram os protestos. E possivelmente foram eles que colocaram fogo no Congresso. Mas, eles não estavam sozinhos. 

Em segundo lugar, é fato que todos os partidos, Liberal, Colorado, a frente Guasu e Unace estavam resolvendo a questão das eleições a partir de um grande acordão. O Liberal, mesmo não concordando, teve representantes na reunião paralela e ilegal. 

A questão que se coloca então é que qualquer dos partidos, mesmo o de Lugo, está unicamente preocupado com as eleições. O próprio golpe parece que já foi superado, com Lugo negociando até com os inimigos. Vencer a eleição é o ponto central. O povo parece ser secundário.

O que os jovens liberais colocaram em xeque, ainda que ali estivessem representando seus interesses partidários também, foi a velha prática dos partidos que não são revolucionários: seus acordinhos secretos e fisiológicos, as manobras por cima para garantir mandatos . A emenda que garante a reeleição é uma boa ideia? Sim, pode ser. Inclusive para os grupos mais à esquerda. Mas isso não podia ser decidido dessa forma, em salas fechadas, sem um debate popular. Os movimentos sociais no Paraguai estão atuando, são fortes, capazes de realizar esse debate. Então que se coloque em discussão ampla e nacionalizada. Depois, sim, poderiam discutir no senado e na câmara. Mas, a prática autoritária e desrespeitosa com as gentes é ainda uma constate na nossa América baixa.

E as lideranças de esquerda também se fazem surdas ou incapazes de entender a força popular. Na Bolívia, há alguns anos, Evo Morales, certo de que tinha alta popularidade, aumentou o preço da gasolina, sem discutir com ninguém. Levou um tranco da população organizada que saiu às ruas em atos massivos e o obrigou a voltar atrás. Ainda assim, com todos os exemplos, as lideranças não aprendem e fazem pouco caso da capacidade das gentes. As decisões ainda são feitas a partir de cima. 

Chávez foi um dos poucos líderes que colocou quase todas as grandes questões nacionais nas mãos do povo, ainda que correndo o risco de perder, como de fato aconteceu em alguns momentos. O povo, por ser povo, não é o detentor da verdade, pode inclusive ser responsável por graves retrocessos. Mas, é preciso aprender a caminhar com as gentes, formar, garantir conhecimento, garantir espaços de poder real. É uma alfabetização lenta, mas necessária. Como dizia Chávez, “melhor errar com minha gente que acertar sem que eles saibam o que está acontecendo”. 

Assim que o que aconteceu no Paraguai não foi uma revolta popular, é certo. Foi a ação de um grupo organizado, de oposição, marcadamente liberal. Mas, ali, naquela praça também estavam pessoas comuns, desorganizadas e desinformadas. Algumas até manipuladas pelo discurso liberal ou midiático. Só que isso não significa que suas demandas estivem erradas ou que devam ser desqualificadas. Não. É papel dos grupos políticos de esquerda, do Paraguai, do Brasil e de toda a América Latina, ouvir, entender e, a partir daí estabelecer políticas de formação e intervenção. A ninguém interessa ter o controle de uma massa informe, porque ela pode mudar de rumo por qualquer motivo. O que se necessita é uma população esclarecida, informada, sabedora das contradições e das possibilidades, para que possa avançar no rumo certo.

A lição que o Paraguai nos dá não é só a da possibilidade de as gentes indignadas queimarem o Congresso, mas a de que a grande política precisa ser feita junto com as gentes. Sem acordos por cima. Uma tarefa dura, Chávez bem o sabia. Mas, só assim, teremos uma nação de pessoas capazes de decidir seu destino.