Quando no começo dos anos 2000 surgiu o Fórum Social Mundial em contraponto ao Fórum de Davos já nas primeiras edições uma coisa ficou bem clara: estavam em disputa ali duas concepções de luta. Uma, que apontava a possibilidade da convivência pacífica com o sistema capitalista (o capitalismo humanizado) e outra que negava veementemente isso, mostrando que é impossível um mundo melhor dentro do capitalismo.
Com o andar da história, o que se viu foi a vitória da primeira visão. A recusa ao poder, o democratismo, as lutas segmentadas e particularistas, a proposta de inclusão, o ecologismo sem dentes. Isso foi se impregnando nos movimentos sociais e acabou sendo o mote para a ascensão dos chamados “governos progressistas” que se seguiram. Novos nomes para uma velha receita: o liberalismo. E no campo político a socialdemocracia. Essa falácia de mais isso e mais aquilo, como se fosse possível vencer o sistema apenas com uma pitada de “mais”. Ora, um sistema tem de ser rompido, destruído, demolido, para que surja o novo.
As pautas radicais sumiram do mapa. Apenas a Venezuela de Chávez ousou um pouco mais, aproximando-se da proposta cubana de autonomia e socialismo. Mas, o Chávez morreu e o que se seguiu foi a mesma velha tentativa de caminhar na corda-bamba acendendo vela para deus e para o diabo ao mesmo tempo. Romper com o sistema não está nos planos. Cuba segue solitária, capengando.
Aqui no Brasil tivemos a experiência dos 14 anos de PT no governo federal. E por ali tampouco tivemos propostas de mudança das estruturas. Apenas a ideia liberal de mais isso e mais aquilo para os pobres. Mais isso e mais aquilo para os grupos particulares. O sistema incólume. Banqueiros lucrando, fazendeiros ganhando, aposta na inovação, reformas contra os trabalhadores, recusa da auditoria da dívida, frouxidão com as igrejas caça-níqueis. Nada de novo no front.
Aí veio o bode na sala. A experiência bolsonara, fruto do cansaço dos trabalhadores, do avanço das pautas morais e da desinibição da direita. A política dominada por temas tangenciais enquanto que as grandes questões nacionais ficaram de lado. E, enquanto os bandos se digladiavam nas redes sociais, o governo ultraliberal foi passando tudo o que era de interesse da classe dominante local e internacional, com o apoio seguro do legislativo federal. As centrais sindicais se apagaram e restou a uns poucos sindicatos combativos a luta pontual e singular. Os trabalhadores foram se adequando à ideologia dos “novos tempos” e das “novas formas de emprego”, sem organização e sem luta. As perdas foram grandes e continuam anestesiando a maioria.
Agora vêm aí as eleições outra vez. E na população vai crescendo a ideia de que é preciso tirar o bode da sala, o que é óbvio. Sacar do governo aquele que personifica o mal. A proposta é singela: sair do ultraliberalismo e voltar para o liberalismo. Apenas isso. Nada mais profundo ou radical a ponto de não importar que se façam alianças de conciliação de classe. Chegamos ao absurdo de ver lideranças populares irem aos Estados Unidos pedir ajuda a Biden para garantir a democracia tupiniquim. Essa mesmo foi de cair os butiás do bolso. Nada de falar em recuperação do Banco Central ou de auditoria da dívida, ou de revogação das reformas que aniquilaram com os trabalhadores e os velhos. Não importa que haja acordos com banqueiros, fazendeiros e até com o embaixador dos Estados Unidos. Tudo vale para tirar o bode da sala. “Depois a gente vê”. Bom, já vimos esse filme.
Assim que o dia dois de outubro não reserva surpresas. Pelo menos não para os trabalhadores. Ao que parece os brasileiros simplesmente tirarão o bode da sala, entregando um cheque em branco para os liberais.
Há uma longa estrada de reconstrução das lutas para os trabalhadores e o primeiro passo talvez seja reconhecer que a ideia do “capitalismo humanizado” venceu, e que ela não é boa. Mas não é mesmo. Ideologias como a do empreendedorismo e a do faça-se a ti mesmo pelo mérito estão aí mostrando suas chagas, suas rachaduras. Não há saídas dentro do capitalismo. É da natureza do sistema se expandir e ir destruindo tudo ao seu redor. Não há como humanizá-lo. Não há.
Essa compreensão é fundamental para que as lutas voltem a se fazer por propostas definitivamente radicais, que mudam a vida, para melhor. A vida de todos e não só de alguns. A eleição poderá tirar o bode, mas, será suficiente?