segunda-feira, 12 de março de 2018

Sempre é tempo de aprender



A vida é mesmo uma coisa mágica. Vivo isso todos os dias com meu pai. Aos 86 anos ele agora vive uma fase de esquecimentos. Mas, ao mesmo tempo, surpreendentemente, ele também aprende coisas novas. Durante toda sua vida nunca foi uma pessoa preocupada com o ambiente. Nunca teve isso isso incorporado ao seu viver. Homem comum, trabalhador, da casa para o trabalho, honesto e cumpridor. 

Agora, vivendo na minha casa, ele passou a observar os costumes da nossa vida. Temos uma vida simples e regradinha nos cuidados com a Pachamama. Lixo reciclado, plástico com plástico, lata com lata, papel com papel. Temos também um bom pomar e uma composteira que produz minhoca e terra boa. Observando, ele reparou que todo o material orgânico a gente deposita lá no fundo, perto da horta, e passou a fazer disso também a sua rotina.

Dia desses levei pra ele uma banana, para que comesse antes de dormir. Já era umas nove e meia da noite. Ele agradeceu e eu sai. Dali a pouco o vi passar pela cozinha em direção ao pátio, com seu passinho arrastado e levinho. Carregava a casca de banana na mão. 

- Onde vai, pai. Já é noite!
- Vou colocar a casca lá onde tem que ser. 

E se foi pelo escuro na direção da composteira. Pois agora ele faz dessa prática um ritual sagrado. Guarda todas as casquinhas para espalhar no lugar das minhocas. E volta feliz, fazendo o sinal de positivo.   




domingo, 11 de março de 2018

30 anos de amizade




Conheci essas duas num março de 1988 e lá se vão 30 anos.

Uma delas vislumbrei na porta da sala de aula, no Curso de Jornalismo, com seu cabelo enroladinho e roupa hippie. A conexão foi imediata. Iriamos partilhar juntas toda a aventura de estudar jornalismo, lendo e discutindo texto pelas noites a fio, com pipoca e chimarrão. Vez em quando ainda meio bêbadas, chegando das domingueiras do Clube 15, depois de nos esbaldar na lambada. Desde aquele março vivenciamos belezas e dores, sempre juntas. Passamos por amores, viagens, noitadas de samba e cumplicidades. Brigamos, ficamos sem falar, mas a amizade sempre foi maior que a zanga.

A outra entrou na minha casa pela mão de um companheiro que morava comigo na república do Itambé. Namorou com ele, terminou, mas seguimos amigas. No primeiro dia em que a vi, não gostei. Carinha de entojada e filha de militar. Pacote perfeito para a exclusão. Mas, não sei por que cargas d´água, acabamos acertando os ponteiros e nunca mais nos separamos. Enfrentamos tormentas e alegrias. Ela é a única pessoa no mundo que me procura quando está transbordando de felicidade. Uma qualidade ímpar. Brigamos, ficamos sem falar, mas a amizade sempre foi maior que a zanga.

Todas duas têm suas diferenças e dessemelhanças. Por vezes já se estranharam entre si, mas nossa unidade sempre prevaleceu. O tempo passa e a gente segue se acompanhando, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Vivemos longe, mas estamos perto.

Ontem encontrei essa foto, de um dia de 2004, quando elas vieram conhecer minha casinha, a primeira e única, meu cafofo, o sonho de uma vida inteira, conquistada com a dificuldade de sempre na vida de um trabalhador. E só foi possível, paradoxalmente, depois de uma demissão. Com a grana da rescisão, ergui a casinha.  Foram elas as primeiras a encher de boas energias minha morada. Talvez por isso tenha tanta alegria aqui.

Nesse março celebramos 30 anos de amizade verdadeira, dessas que não se quebra. É uma vida inteira, uma vida de partilha e de comunhão. Com elas, aprendi e ainda aprendo, todos os dias. Com elas, a vida fica leve. Com elas, pretendo seguir até que a ceifadora venha me levar. Porque juntas sempre somos melhores.

Amo vocês...  Feliz “Bodas de Pérolas” para nós... 30 anos, não é bolinho!



Uma noite no Campeche



Capela São Sebastião, no Campeche. A missa terminou, mas boa parte das gentes não foi embora. E, pelos caminhos, outras pessoas chegavam. Vinham para um encontro importante demais: um encontro com a história. Dentro do salão foram se agrupando. Famílias inteiras, cheias de expectativa e orgulho. Amigos se encontravam e trocavam abraços. Crianças corriam e alguns moradores, bem velhinhos, vinham amparados por filhos e netos. Aquela seria uma noite de lembranças e de belezas. A comunidade viva do Campeche vinha reviver suas velhas histórias.

O responsável por tudo isso é Hugo Adriano Daniel, nascido e criado nas veredas do Campeche, que, agora, professor de história, decidiu que era chegada a hora de registrar para a eternidade a vida pulsante que deu origem ao bairro. Mas não aquela história fria, de documentos e datas. Sua opção foi pela memória das gentes. Na conversa com os mais velhos do bairro, ele foi desenterrando a história viva, essa que é feita do sangue e do suor de homens e mulheres que, na força do braço, constroem o mundo. E a teia de vida tecida por Hugo se materializou num livro, que foi apresentado a todos.

Por uma hora Hugo Daniel mostrou velhas fotos e foi tecendo a colcha de lembranças. Lugares, pessoas, causos. E da boca foram brotando nomes, datas, histórias engraçadas, histórias tristes. Muitos dos personagens ali estavam, cerimoniosos, ouvindo suas próprias histórias com reverência. E Hugo foi apontando e agradecendo um a um, uma a uma. E a comunidade respondia com palmas, risos, gritos e lágrimas. Seu Erasmo, velho comerciante na loja de quem quase todas as famílias do lugar se abasteciam, o primeiro ônibus, o padeiro que deixava o pão nas sacolinhas que ficavam penduradas nas portas das casas, a dona Nicota, os cantores da festa do Divino.

O tempo passou num átimo, e quase ninguém se deu conta, mergulhados que estavam no Campeche de antes. As origens do bairro, a raiz de quase todos os que ali estavam.

Poucas vezes na vida pude viver algo assim. Uma comunidade inteira abraçada em si mesma, se reconhecendo e reconhecendo sua própria história. Ali estava o gurizinho que sujava os pés em bosta de vaca nos potreiros do bairro, agora recompondo os caminhos que foram apagados pelo asfalto e pela expansão imobiliária. “Não podemos deixar que nos tirem a memória”, insistiu. E suas conversas com os velhos agora imortalizando a história.

O livro “Campeche – um lugar no sul da ilha” é uma história de amor. E nas suas páginas saltam personagens inesquecíveis, histórias para guardar no fundo da memória e para serem contadas aos filhos e netos. Porque uma comunidade só pode avançar se lembra de si mesma, de suas raízes. O Hugo desenterra cada uma delas, deixa à flor da terra. E, assim, garante que a lembrança seja o adubo capaz de manter forte o fruto.

O Campeche é um bairro de luta, um bairro jardim, um lugar onde a vida simples, do jeito açoriano, ainda resiste. E quando a gente vê o que viu ontem, fica cada vez mais claro de que a história e a cultura local seguirão preservadas e protegidas, porque vivem na memória.

O lançamento do livro do Hugo, editado pela Insular, essa editora da ilha, do Nelson Rolim de Moura, o Nelsinho, que insiste em acreditar nos escritores locais, foi um desses momentos estelares, inesquecíveis. Bem do jeito campechiano, com refrigerante e bolo, com riso de criança, com o passo lento dos velhos, com a alegria daqueles que se conhecem e se amam. Uma noite para ficar guardada nas retinas. Um momento que fortalece e une todos os que seguem vivendo nesse bairro e cuidando dele.

Foi bonito demais! Obrigada Hugo.