sábado, 30 de maio de 2015

Edvilson, um professor









Esse texto é uma crônica de ficção. Mas poderia bem ser a história de cada um dos professores e professoras que acamparam na Alesc, na luta por vida digna.






Acordou cedo o garoto. Na verdade pouco dormira, e não era por conta do chão duro da Assembleia Legislativa, onde estava acampado junto com outros colegas professores. O que lhe martelava o cérebro era a impotência. Estava ali, há dias, revezando as noites, numa luta sem fim. Parecia absurdo que um professor tivesse de fazer tudo aquilo para ter um salário digno. Acreditava que isso era o mínimo que se poderia esperar de um governo.

A barra do dia ainda não surgira e ele estava à janela. Uma gota de lágrima teimava em aparecer no canto do olho. Lembrava-se da mãe, cujo sonho maior era vê-lo formado professor. Pensou que era bom ela não estar mais. Assim, não veria sua angústia nem sua dor. Nascido e criado no morro da Costeira, Edvilson era só mais guri talhado para vida nenhuma. Morando num barraco, vendo a mãe lavar roupa dia após dia, sem que soubesse do pai, ele andara beirando o mundo do tráfico. Zezão lhe havia prometido um tênis da Nike se ele se dispusesse a levar alguns pacotinhos para o asfalto.

Naqueles dias a ambição do "ter" chegou a fazer cócegas. Mas, o riso de cristal da mãe foi mais forte. Ela desejava mais do que tudo que ele fosse professor. Tinha trabalhado numa casa de família na qual uma das moças era professora. E sempre lhe encantara aquela profissão. “É bonito ensinar os outros”. Era só o que queria para seu guri. Por isso não poupava esforços para que ele frequentasse a escola. Nada lhe faltava. O uniforme limpinho, a merenda, os materiais. “Tu vai ser professor”. E ele nunca ousara outra coisa. Quando nas tardes de inverno ele fazia os deveres perto do fogareiro improvisado com madeiras recolhidas na rua, podia perceber a alegria da mãe, observando-o desenhar as letras grandes e harmônicas.

Nunca lhe sairá das retinas a alegria que viu nos olhos dela, quando, já formado no magistério, passou no concurso estadual. Seria professor de escola pública. Iria garantir que outros guris, como ele, encontrassem um caminho para além das vidas predeterminadas pela pobreza. Como acreditava na educação. Amava Paulo Freire e descobrira há pouco tempo Simón Rodríguez, dois monstros da arte de educar. Com eles andava, buscando transformar as vidas dos seus pequenos.

A mãe morrera no segundo ano depois que ele entrou para o magistério estadual. Morreu feliz. Tinha encaminhado o filho e ele encaminharia outros tantos. A vida fizera sentido. Maria nunca soube como era, de fato, a vida de um professor. E Edvilson nunca lhe tirara o gozo. Escondia dela as noites no sindicato e não lhe contara sobre a luta pelo piso nacional que o governador não queria pagar. Para Maria, a vida dele era um paraíso e, no hospital, onde ela lutava contra a tuberculose, ele só contava das alegrias da sala de aula, com a gurizada. Ela se deliciava. “Valeu a pena, né, filho? “ E ele acenava que sim.

Agora, na janela, depois de mais uma das tantas greves em luta por salário digno e condições de trabalho reais, ele vislumbrava o rosto da mãe nas brumas da noite que ia embora. Olhou para os colegas que ainda dormiam nos colchonetes improvisados e sorriu. Maria estava certa. Tinha mesmo valido a pena. Na escola ele fazia a diferença e ali, com aqueles companheiros também. Pavimentava uma estrada que haveria de ser bonita. Um educador é mais que um professor, ensinando para além da matéria do programa. E aquela luta era pedagógica. Os alunos o apoiavam, traziam cartazes nas passeatas, discutiam a educação, aprendiam que a escola pública, ainda que tenha sido criada apenas como um ritual, num arremedo de educação, pode ser revolucionária também. Basta que existam educadores assim, como aqueles que caminhavam com ele em mais uma greve da educação catarinense.

O dia brotou por trás do Mocotó e Edvilson misturou-se a algaravia dos que acordavam. De pé para mais um dia de luta.  

Uma mirada no paraíso






Então, de repente, tudo fica gris. O outono perde suas cores e a beleza parece se esconder sob as nuvens. Chove, e chove e chove. Dias e dias sem sol, pessoas ligeiras sob os guarda-chuvas, caras amarradas, roupas molhadas, sapatos encharcados. Mau humor. As dores ficam mais doídas e quase falta o ar. Na televisão as notícias de enchentes, vendavais, deslizamentos, aprofundam o mal-estar. Essa dura e difícil convivência do humano com a natureza. 

 Até que, depois de uma tenebrosa tempestade, o dia amanhece. E um raio de sol fura o dia. Está frio, mas a simples luminosidade solar faz parecer que tudo ficou "patas arriba". Os passarinhos cantam loucamente e até as corujas, notívagas, se demoram no muro, celebrando a manhã. Os cachorros saltitam atrás das borboletas e os gatos esticam as patinhas, preguiçosamente. E a gente mesmo salta da cama depressa para aproveitar cada segundo do sol. Há roupas para lavar, janelas para abrir, tapetes para bater. A vida se movimenta dentro e fora de casa. 

A chuva finalmente parou. Como por encanto estamos diante do dia como um navajo diante de seu território: beleza ao lado, beleza em cima, beleza embaixo. A vida é um caminhar na beleza. São esses momentos únicos nos quais se tem a exata dimensão de que somos, de fato, seres fadados à beleza, como ensina esse esplendoroso povo do norte. 

A vida se enche outra vez de cor. O cotidiano assume outra face. Fica quase sagrado. As flores que, teimosamente, ainda se dependuram nos vasos dizem: sobrevivemos. E se mostram em radiosas cores, vaidosas, como a rosa do principezinho de Exupery. Os frutos que resistiram no pé vicejam e se entregam, prontos para a oblação. Sempre haverá uma mão para colher e uma boca sôfrega para sorver o doce da laranja e o azedo do limão. Outras árvores se mostram em gestação. Há vestígios de que os frutos logo brotarão. As ameixas apontam. Num vaso improvisado dentro de um balde de plástico, as mudas vicejam, como meninas nas manhã de abril. Estão verdes e fortes. Bem logo serão adultas, parideiras de gostosuras. 

 No jardim mal-arranjado e muito pouco planejado, as plantinhas vão encontrando caminhos para se espalhar e a terra inteira se move em um balanço bruxólico, bem comum nesse lugar. Sob a terra até as minhocas parecem dançar em meio a compostagem que transforma todo o orgânico em vida outra vez. Folhas velhas, cascas, frutos caídos do pé, se transformando. Nada morre. Tudo vibra. E aquele que sofria por um amor perdido, ou aquela que chorava por uma dessas dores da vida, se coloca de pé. O que era lágrima vira riso, porque a dança da vida outra vez principiou. Essa vida ordinária, cotidiana e aparentemente igual, que esconde maravilhas, assoma, agigantada pelos raios de sol. 

O mundo recomeça seu giro depois da borrasca. É tempo de calmaria. A natureza ensinando que as coisas são assim mesmo, seja fora ou dentro da gente. Vez em quando tudo vira um turbilhão, aguaceiro, vendaval e a gente perde o pé, arrastada pela ventania. Mas, passado um tempo, ainda que estejamos feridos e lacerados, as águas baixam e o sol volta a brilhar. Somos irremediavelmente fadados à beleza. Nada podemos fazer para mudar isso. Nenhuma dor, nenhuma cicatriz impede que nossos passos sigam a trilha do encanto, esse átimo de segundo que pode valer uma vida. Um momento feliz. Que pode ser essa manhã depois da chuva. Essa visão do paraíso que nos toma inteira. Depois, pode vir a dura peleia do dia, as lutas políticas, o ódio, a perda, a solidão, o desamor, qualquer coisa. Mas, se a gente espiou esse jardim secreto da beleza, uma única olhadela, já estamos salvos.





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sexta-feira, 29 de maio de 2015

O golpe da reforma agrária



Vem aí um livro que promete balançar o coreto da pacata Florianópolis. O trabalho de pesquisa do autor, Gert Shinke, fruto de uma investigação que durou mais de dois anos, revela a maior fraude fundiária levada a cabo no Brasil, sob o manto de uma suposta reforma agrária. 

Subvertendo totalmente a generosa proposta de distribuição de terras para quem nela trabalhasse, para agricultores sem-terra,  o que aconteceu em Santa Catarina foi uma anterreforma agrária e, segundo Gert, " uma fraude colossal com terras públicas em Florianópolis, especialmente durante o período da ditadura civil militar". Tudo foi documentado e os arquivos foram sistematicamente estudados pelo autor. 

A Editora Insular, de Nelson Rolim, topou o desafio de colocar à luz esse trabalho que promete ser glicerina pura. 


O lançamento acontece no dia 2 de junho, terça-feira, às 19h, no Auditório do CFH, da UFSC. O filho de João Goulart, presidente deposto pelo golpe, João Vicente Goulart fará uma conferência. Ele falará sobre a conjuntura pré-golpe de 64 e a proposta de Reforma Agrária do presidente Jango.  
Evento imperdível. Com posterior sessão de autógrafos com Gert  Shinke.

PROMOÇÃO: Editora Insular e CFH-UFSC

APOIO: Comissão de Direitos Humanos da ALESC; Escola do Legislativo da ALESC e Coletivo Catarinense Memória, Verdade, Justiça

Sobre buquê de cebolas




Por José Newton Tomazzoni




Diversas vezes eu escrevi sobre o amor. Coisa linda escrever sobre o amor. Assunto fácil, cheio de leveza. Mas também polêmico, sempre pronto a várias interpretações, peixe escorregadio...Em todas essas vezes eu pude usar todo o rigor da interpretação racional. Brinquei com as palavras. Eu podia. Falava de um pássaro que voava em outros horizontes.

Hoje é diferente. Ele pousou sobre mim. Abriu suas asas dilacerantes e acolheu minha totalidade de sentido: “Estou aqui, sinta, vou revirar seu mundo de cabeça para baixo.” Eu estremeci. Sempre estremeço quando ele chega. Também amei. Sempre amo quando ele pousa.

Mas o pássaro é danado, gênio forte, indomável. Inútil qualquer resistência. Sei disso, já o conheço. Somos como aqueles velhos amigos que se encontram de vez em quando para uma cerveja. Brindamos a vida, falamos do cais adormecido e, outra vez, voltamos para nosso mundo sério e opaco do gabinete, do escritório, da vida diária.

O cenário era um bar: ela estava na minha frente. Altar. Lugar da hierofania. Com ela assim tão perto já não havia mais necessidade de rezar o Pai-Nosso, pois o reino já tinha chegado. Eu falava da beleza, da poesia, do apenas vislumbrado. Citei Fernando Pessoa, Cecília Meirelles, Mario Quintana...Todas essas distrações dos deuses. Movido pelo mesmo pássaro que um dia pousou sobre eles, eu a enchi de poesia. Falei sobre o mistério. Como é possível que um beija-flor possa parar no ar? Milagre. Como na historia do Eduardo Galeano (que agora não lembro onde li) eu também fiquei impotente diante da imensidão: “Vovô! Me ajuda a olhar?” Não suportei ver tanta beleza sozinho.

Mas a beleza sempre está acompanhada da tristeza. Os chineses sabem disso: há sempre o yin e o yang, positivo e negativo. Ela escutou estarrecida, sem entender nada. Mais do que isso: sua resposta foi: “Zé! Você precisa voltar ao mundo real, viver mais” Que pena. Não entendeu nada. Não leu Mario Quintana. Não leu Nietzsche. Não se apaixonou por Fernando Pessoa. Confundiu o real com o empírico, historicidade com temporalidade. Vive somente do real. Se tivesse amado Novalis ele a ensinaria o óbvio: “A poesia é absolutamente real. Esta é minha filosofia: Quanto mais poético, mais real”. Mas ela não amou. Eu falei pássaro, ela entendeu pedra.

Essa história me lembrou uma outra acontecida há mais de um século (não é curioso que nada há de novo sobre a terra?) Ele, homem das alturas, pássaro louco amante das torrentes e dos abismos. Ansioso arqueólogo da alma. Ela, mulher segura, experiente, sabia o que queria, racional. Ele propôs a beleza, a leveza e a ternura mas ela não pode aceitar. Beleza, ternura e leveza só sobrevivem na intempérie, no turbilhão, na arena trágica e bela do mundo da fantasia. A fantasia é a forma mais profunda de realidade. Mas é preciso muita coragem para embarcar nesse assustador e enorme talvez.

A história que contei é a história de Nietzsche e Lou Salomé. Ele disse: “Vem comigo! Por onde ando os caminhos são solitários sim, mas há tanta beleza que você corre o risco de explodir como um vulcão em atividade. Vem comigo! Nada aqui é seguro, eu sei, mas terá um ganho: você brincará com beija-flores e sorrirá a cada manhã. Dê-me as suas mãos. Vamos colher morangos e brincar com os girassóis. Você sentirá a brisa fria no rosto. Ficará calada como se estivesse ausente- nós vivemos é das ausências – e mergulhará no sentido de todas as coisas”. Ela respondeu: “Bobo. Volte ao mundo real. Desça a sua montanha e aprenda a viver.” Foi embora e preferiu Freud.

Certamente você já ouviu falar de Nietzsche. E de Salomé? Você já tinha ouvido falar nela? Claro que não. Ela só ficou para a história por causa de Nietszche, esse ingênuo que via o mundo do alto da sua montanha. Que estranho isso não é? Que ele tenha sobrevivido ao tempo...eterno. No entanto, ela....

Nietzsche morreu louco e não poderia ser de outra maneira. Como manter a sanidade em um mundo que prefere somente a opacidade do real? Como se manter são em meio a essa multidão de seres racionais em procissão louvando e canonizando a experiência, como se ela por si só nos ensinasse o caminho do arco íris? Como manter a normalidade diante da aceitação subserviente do que apenas aparece, o mundo que é? Ele não vivia o mundo que é. Ele vivia o mundo que não é: “Eu agora amo somente a terra dos meus filhos, no mar mais distante”. Por isso explodiu. Sua música interna era bonita demais. Seu corpo não suportou. Quis compartilhar essa melodia com a humanidade, mas ela preferiu o arrastado grunhido unifônico que abafa todo tipo de sentimento humano. Tentou desesperadamente indicar os caminhos do coração. Não foi possível. Riram dele como sempre fazem os eternamente corretos.

Li em algum lugar sobre uma história de um namorado que deu um buquê de cebolas para sua namorada. Ela ficou indignada e jogou-lhe o buquê na cara. Tola. Não entendeu nada. Nunca viu “O carteiro e o Poeta”. Não se deliciou com “A festa de Babete”. Não levou a sério a advertência da Adélia Prado: “Aquele que entende só o que é falado ou escrito, não entende coisa alguma. A letra mata”. Ele disse: “Você é diferente de todas as outras. A elas eu dei buquê de flores, mas você não é como as outras. Você é de outra substância”. Que pena que ela não leu Pablo Neruda (Quem não leu, leia “ode à cebola”, quem sabe poderá perceber a leveza que pode morar num buquê de cebolas).

Acho que foi isso que aconteceu com Nietzsche. Ele deu um buquê de cebolas para Lou Salomé. Ela preferiu buquê de flores...Normal demais, comum demais. Tinha mesmo que se apaixonar por Freud.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

A democracia representativa representa quem?





Acompanhei cética as votações no Congresso Nacional, embora atenta aos gritos de todos os lados que saltavam no facebook. Uns comemoravam vitória por terem sido derrotados o voto distrital e a doação de empresas para a campanha política. Muitos foram as postagens tirando sarro do presidente da casa, deputados Eduardo Cunha. Mas, ao final, quem riu por último foi ele. Manobrando, como um bom conhecer dos trâmites legislativos, perdeu um anel, mas ganhou muitas mãos. Aprovou a doação de empresas aos partidos.

Não vejo aí nenhum absurdo. É pão comido. Qualquer um que conheça o sistema político brasileiro sabe como funciona a democracia representativa em vigor. Os deputados, na sua maioria, não representam a vontade popular. Eles representam a vontade dos grupos de poder, ou grupos econômicos que os elegeram. São eleitos para isso: para defender as pautas dos grupos em questão.

O presidente da Câmara mesmo informou ao Tribunal Superior Eleitoral que gastou seis milhões de reais na sua última campanha para deputado.  Entre seus financiadores estão bancos, empresa farmacêutica, mineradoras e construtoras. Ora, a quem ele vai defender no Congresso? A esses interesses. Quem financia é dono do deputado ou do senador. E tudo é bem transparente. Está tudo registrado no TSE. Sendo assim, era mais do que óbvio que a doações de empresas não poderia ficar de fora. São elas que movem o motor da vida nacional e decidem tudo sobre a vida da maioria da população. 

Observem o número de deputados classistas que temos hoje no Congresso. Pouquíssimos vêm dos sindicatos ou dos movimentos sociais. Sua ação dentro do legislativo é meramente ritual, no sentido de denunciar, gritar e espernear. Não há como vencer quando num universo de quinhentos e poucos, os representantes da maioria não chegam a 30. É só fazer a conta simples de diminuir.

Pela casa legislativa, onde os deputados e senadores são empregados dos grupos econômicos e de poder, os trabalhadores, a maioria das gentes, só têm vitória quando ocupa as ruas. Não há coisa que essa gente mais tema que o povo unido e organizado. Por isso não é à toa que quando as multidões chegam perto do Congresso eles imediatamente chamem a repressão. É o medo. Profundo medo. 

Agora, se lá dentro está tranquilo, todo o resto é encenação. Ninguém convence ninguém com discurso. Os votos já estão dados. Basta que se saiba a quem eles servem. Por cada um e cada uma que lá está serve a algum grupo. É a tal da representação. Logo, ninguém fala por si. Ou falam pela política do partido ou pelo grupo que os financiou. Simples assim. 

Resta a nós compreender a quem cada um representa. Bancos, construtoras, farmacêuticas, latifundiários, empresas multinacionais. No geral, os interesses muito pouco tem a ver com os da maioria da população como saúde de qualidade, previdência digna, educação libertadora. O foco são as benesses que podem advir para os grupos de sempre. Ao povo, vez em quando se joga uma migalha, quase sempre por conta de lutas gigantescas. Por isso que se realmente queremos que siga existindo uma democracia representativa aos moldes da nossa, é preciso que se tenha muito claro quem financia os caras.

Há outros tipos de democracia, como a cubana, por exemplo, na qual os representantes saem da base mesmo, das comunidades, e são eleitos por conta do seu trabalho cotidiano no seu lugar de moradia. É outro modelo, bem diferente, com seus problemas e contradições. Algo que poderia ser mais bem conhecido, em vez de se ficar apontando o dedo, chamando de ditadura comunista. Não é. Nem ditadura, nem comunista. Por que o comunismo é uma etapa da vida política na qual estaria abolido o estado e todos os bens seriam repartidos. Isso ainda não aconteceu, nem em Cuba, nem na história. O que há em Cuba é todo um processo de discussão comunitária e popular, que ainda precisa ser mais aprofundado, mas que acaba não apresentando o que se vê por aqui, com um deputado defendendo mais uma empresa do que a comunidade que o elegeu.

Há ainda a democracia participativa, como a da Venezuela, na qual, constitucionalmente, o poder popular está acima do poder do executivo, legislativo ou judiciário. E qualquer lei aprovada no legislativo pode ser revogada se o povo quiser, se tiver capacidade de organização e reivindicar um plebiscito. São instrumentos da democracia participativa que, legalmente, impedem que coisas como as que se vê no Brasil aconteçam impunemente. 

Infelizmente para nós, no Brasil, a democracia que conseguimos constituir até agora é essa. A democracia do voto, geralmente dominada pelo poder econômico. Quem tem mais dinheiro faz a melhor campanha, quem tem mais dinheiro leva mais votos. E quem não tem dinheiro raramente chega a ocupar um cargo desses, a não ser quando acontecem algumas conjurações cósmicas ou a conjuntura se apresente de tal modo movimentado, com um ou outro movimento popular em alta. Mas, isso é raro.

Nesse sentido, o que acontece na Câmara por esses dias é só a expressão dessa triste realidade. A democracia brasileira representa os interesses dos grandes, dos poderosos, da classe dominante, do poder dominante. É inelutável? Não! Como falei antes, se as gentes se organizam e crescem, garantem uma vitória aqui ou ali. O melhor mesmo seria mudar tudo, o tipo de estado, o tipo de democracia que, como bem dizia Lenin, sempre precisa de um adjetivo. Aposto na democracia participativa, de organização popular. Isso é possível. Mas ainda há muito para caminhar...

Enquanto isso, eles vencem. 


quarta-feira, 27 de maio de 2015

Central de Penas Alternativas

Entrevista com Larissa Gomes Bez, psicóloga, sobre o trabalho de acompanhamento das penas alternativas na cidade de Florianópolis. Entrevista à elaine tavares, no Programa Campo de Peixe. Rádio Comunitária Campeche.

 

Na chuva, com a força da luta


Ato dos trabalhadores públicos municipais em Florianópolis, em greve desde o dia 14 de maio. Uma greve bonita, com uma mobilização massiva. Sob a chuva, milhares de guarda-chuvas fizeram a dança da unidade. E sob os guarda-chuvas, as gentes, em luta por um serviço público de qualidade.


segunda-feira, 25 de maio de 2015

Novos migrantes em Florianópolis


















O Haiti, hoje

O grande jornalista Marcos Faerman contava uma história engraçada, mas que lembra bem o que quero ilustrar aqui. Ele dizia que, naqueles anos de chumbo da ditadura militar, quando ele via entrar na redação um guri cabeludo ou uma guria descolada, com sandálias e bolsa de couro, já vaticinava:  vai dar bom! E não dava outra. Era os "hippies", por seu compromisso com a vida e com o amor os que se constituíam os melhores contadores de história.

Uso esse exemplo para falar dos migrantes que chegaram do Haiti. Se são haitianos, são bons. Não pode haver dúvidas. Afinal, foi nessa pequena ilha no meio do Caribe que aconteceu a primeira revolução feita totalmente por negros escravizados nessa nossa grande Abya Yala. E foi esse povo que gestou a liberdade que, depois, incendiou todo o continente. 

Depois de amargar mais de 200 anos de escravidão, os negros do Haiti se levantaram em rebelião, numa luta que durou 12 longos anos e na qual conseguiram derrotar os brancos locais e até uma expedição francesa. Jacobinos negros. Homens e mulheres que, animados pela revolução que acontecia na França, decidiram que era hora de balançar bem alto o pavilhão da liberdade. E foram esses valentes os responsáveis pela única revolta vitoriosa de escravos em toda a história da humanidade.

Os primeiros negros chegaram ao Haiti em 1517, 17 mil almas roubadas de vários pontos do continente africano. Vinham servir de mão de obra para o colonizador europeu. Ali passaram pelas maiores atrocidades e tanto que, aos poucos, reunidos no culto vudu, juravam destruir os brancos e tudo o que possuíssem. 

No 700, com a revolução assomando pelas ruas de Paris, o Haiti, que era uma possessão francesa, também ensaiava os passos de liberdade. Em 1791 começaram as primeiras rebeliões. No 22 de agosto, na noite da tempestade, os negros começaram a agir. Num levante de massas incendiaram as fazendas e tomaram as cidades. Foram 12 anos de lutas encarniçadas até que em 1802 o Haiti foi declarado independente.

O preço dessa avassaladora vitória contra os brancos continua sendo cobrado até hoje. Mas, ainda assim, nunca ninguém poderá apagar esse fato da história. É por isso que a um povo que foi capaz dessa saga heroica só se pode fazer reverência. Cada haitiano é marcado por essa gesta que influenciou a luta pela liberdade em toda a América Latina. Nunca é bom esquecer que foi do Haiti que Simón Bolívar recebeu as condições para voltar à Venezuela e retomar a luta que acabou tirando dos espanhóis todas as colônias. Também temos nossas dívidas com esses irmãos e irmãs.

Assim, quando o ônibus chegado do Acre, repleto de haitianos e alguns senegaleses chegou à Florianópolis, o sentimento que aflorou foi o da alegria. Agora, passados tantos anos, poderemos, como povo latino-americano, retribuir tudo o que a gente haitiana aportou de bom para que nossos países também pudessem desfrutar da sonhada liberdade. E, aos senegaleses expressar nosso respeito pela história de resistência durante o longo tempo da escravidão. 

É por conhecer essas histórias e ter muito claro a importância do Haiti para a libertação de toda a América que provoca profundo pesar as palavras eivadas de preconceito que se expressam - em liberdade - pelas redes sociais. 

O migrante negro e pobre é ruim

A cena é dramática. Um ônibus inteiro de gente sem rumo, olhar assustado, boca seca, coração aos saltos. Pessoas que saíram de seus lugares de nascimento, não porque estivessem a fim de conhecer o mundo ou fazer aventuras. Criaturas impelidas a caminhar, porque onde nasceram ou está devastado pela guerra, ou tomado pela miséria extrema. Gente que não tem outra escolha a não ser andar. Pessoas tomadas pelo desespero e pela pulsão da vida. Hoje, aqui, em Florianópolis, são os haitianos e os senegaleses que chegam, acuados, mas podem ser quaisquer outros povos acossados pela cobiça de uns poucos, como acontece nos países da África, do oriente médio ou da Ásia. São os fugitivos da fome, da morte, do medo.

Como esses homens e mulheres que hoje aportam na capital catarinense, séculos atrás vieram os italianos, os alemães, os japoneses. Gente que fugia da fome na Europa e embarcava animada pela promessa de boas terras e vida abundante. Vinham povoar o grande Brasil,alavancar o progresso da antiga colônia portuguesa. Quando aqui chegaram encontraram não a terra boa que esperavam, mas o lugar de outros: os índios, os quais tiveram de enfrentar e matar para poderem conquistar o sonho da boa vida.  E assim, muito da prosperidade dos imigrantes se fez em cima da morte do povo originário.
Nos dias de hoje, os migrantes empobrecidos chegam sem promessas e sabedores de que aqui a terra já tem dono. Já aportam em desvantagem. Não poderão matar ninguém para tomar suas terras e muito menos contar com as benesses governamentais. Tudo o que podem ter é um colchão para dormir até que encontrem algum emprego, se conseguirem. 

Na madrugada dessa segunda-feira foi assim. O grupo assustado encontrou repórteres, fotógrafos e toda uma sorte de pessoas para ajudar ou não. Haitianos e senegaleses vieram do Acre, por onde entram no Brasil, muitas vezes com o apoio dos traficantes de gente. Alguns deles deixam com os coiotes todas as economias de uma vida, porque acreditam que qualquer coisa pode ser melhor do que a guerra e a fome. Partem sem olhar para trás. São pessoas comuns, mas sem posses. E, por isso, sua migração é acompanhada com medo e preconceito. Bem diferente dos migrantes endinheirados, cuja chegada é saudada com o espocar do  champanhe, já que esses compram terras, casas e podem investir no lugar.

Os empobrecidos não compram nada. Eles só querem achar um modo de ganhar a vida. "Vai roubar nosso emprego", diz um. "Serão os marginais de amanhã", diz outro, e por aí vai um rosário de maldades típico do medo que o outro, diferente, provoca em quem não consegue ligar os pontos da realidade. E há aí um outros componente que não pode passar desapercebido. Os migrantes em questão são além de pobres, negros. 

E é a cor da pele que parece provocar tanta fúria. A mentalidade escravista do brasileiro comum segue intocável. Negro é sinônimo de ladrão, vagabundo, marginal. Como se isso fizesse parte do DNA. De maneira cômoda, os brasileiros, grupo constituído basicamente de migrantes, colam no negro tudo o que há de ruim. Perdeu-se na noite da história as origens do racismo, tão forte e tão cruel. Não é de bom tom lembrar que os negros foram sequestrados, vendidos como bichos, tendo seus filhos arrancados dos ventres e usados como instrumento de trabalho. Aquilo foi no passado e ninguém lembra mais. Os que sobreviveram ao massacre tiveram sua chance de "se virar". Se não conseguiram é porque não quiseram. Assim pensa o senso comum. 

E quem não é migrante?

Quando nos anos 80 do século passado um jovem padre criava em Florianópolis um centro de acolhimento ao migrante, a classe dominante olhava com desconfiança. Padre vermelho, comunista. Mas, naqueles dias, Wilson Groh não se intimidou com os rótulos que lhe colavam na cara. Junto com Ivone Perassa e outros companheiros, ele acolheu, ajudou a organizar, promoveu lutas. As gentes que vinham do interior do estado, na grande onda de migração, queriam uma vida melhor. 

Foi assim que nasceram muitas das comunidades que hoje fazem nossa grande Florianópolis. E aqueles que, naqueles dias apontavam o dedo para o padre, hoje reconhecem o seu trabalho e lhe reverenciam por ter tido a coragem de enfrentar com generosidade a chegada daquela maré de gente. Como agora, os que aqui já estavam olhavam com medo e nojo. Era uma gente pobre, aparentemente sem nada para dar. E não foram poucos os acampamentos, os despejos, as prisões. Porque as gentes ocupavam terras vazias e construíam barracos. 

Foram anos e anos de luta. Hoje, esses migrantes estão integrados à cidade. Tem suas casas, são trabalhadores, empresários, profissionais liberais. São os que fazem a capital andar. 

E antes deles vieram os portugueses, os bandeirantes, os açorianos. Cada um com suas razões. Todos buscando vida plena. Ironicamente, os reais donos das terras foram expulsos, muitos mortos, e hoje precisam novamente brigar para ocuparem seu próprio território.

Então, como a história vai assim, dando voltas, é preciso parar e pensar. Somos um pequeno gênero humano, dizia Bolívar. Que mal nos fará acolher o que chega, perdido de amor? Se cada um de nós um dia já foi um migrante, aqui ou acolá. Antes do olhar de ódio e discriminação, antes do medo de ter o emprego roubado ou coisa assim, aposte na generosidade da acolhida. Essa gente que chega de lugares tão distante, com outra língua, outros costumes, venceu uma grande batalha, que é a de continuar vivo, a despeito de tudo. Que não venham encontrar a morte no olhar de um de nós. 

Uma chance, apenas uma chance. É tudo que eles querem.