No Vale do Reis ainda vivem os artesãos fazendo o que faziam há cinco mil anosA primeira coisa que vem a mente quando se entra nas tumbas do Vale dos Reis, em Luxor, é a destreza do artesão que construiu tanta beleza. As paredes são cobertas com as histórias dos reis e a sua relação com os deuses. Cenas da vida cotidiana, da coroação, da morte, enfim, toda uma linguagem que nos carrega até 3.300 anos atrás. Tudo segue vívido e claro, como se não houvesse passado tanto tempo. E, andando pelas redondezas, se percebe que ali estão eles, os artesãos, vivendo quase que do mesmo jeito que há cinco mil anos, talhando nas pedras as coisas dos homens e dos deuses.
O Vale dos Reis fica no sopé de uma montanha que tem clara formação piramidal, e certamente por isso o lugar foi escolhido para abrigar os corpos dos reis, uma vez que essa forma é sagrada para os egípcios. Ali estão enterrados os faraós de três dinastias, a 18,19 e 20, formando um conjunto de 62 tumbas. As mais famosas são as de Tutmés I, do grande Ramsés II que reinou por 67 anos e foi responsável por mais de 30% dos magníficos templos que existem no Egito, e a de Tutankamon, o faraó menino, cuja tumba foi uma das últimas a ser encontrada. Conta Abdelaziz, que trabalha há anos como guia, que quase toda a riqueza descoberta naquelas tumbas foi roubada há muitos séculos. Como era costume levar para dentro das tumbas os objetos amados pelos faraós, assim como coisas da vida cotidiana, pois se acreditava que no mundo dos mortos eles haveriam de precisar disso tudo, sempre existiram os saqueadores de tumbas, que podiam ser ladrões comuns como até mesmo sacerdotes de outros faraós.
Nos tempos contemporâneos foi a vez dos arqueólogos europeus que andaram pelo Egito fazendo escavações fazerem o papel dos ladrões. A Pedra de Roseta, por exemplo, que deu a chave para a decifração da escrita hieroglífica, está no Museu de Londres, a famosa cabeça da rainha Nefertite está em Berlim e a magnífica Barca de Horus, da tumba de Ramsés III está no Museu do Louvre. ”Nós, egípcios, temos muito apreço pelos arqueólogos que descobriram muitas dessas riquezas, mas entendemos que elas são do Egito e não deveriam estar em outros museus”. A tumba de Tutankamon, uma das últimas a serem encontradas, só escapou da ação dos ladrões porque estava praticamente escondida do lado de outra, maior, que centralizou a cobiça. Por conta disso, hoje, pode-se ter uma ideia do tanto de riqueza que havia nas tumbas. A de Tutankamon, considerada uma das menores do Vale dos Reis – ele reinou apenas nove anos - enche várias salas no deslumbrante Museu do Egito.
Cada tumba que se visita com reverente respeito no vale é um universo completo da vida egípcia que já vicejava como civilização desde a cinco mil anos atrás. Como se acreditava na ressureição, a cidade dos mortos sempre foi muito bem pensada. Cada vez que um faraó assumia o trono, os sacerdotes e artesãos começavam a fazer a tumba, pois tudo tinha de estar preparado para quando chegasse a hora de baixar ao mundo das trevas. Geralmente os desenhos que enchem as paredes das tumbas dizem respeito a cenas da vida do faraó, representação de suas batalhas, do seu dia-a-dia, dos seus inimigos e da sua relação com os deuses. Também estão gravados nas paredes os amuletos e sortilégios do famoso Livro dos Mortos, que encerrava todo o saber sobre o outro mundo. Os desenhos são magníficos e as cores surpreendentes. Também é digna de nota a habilidade dos artistas e artesãos, capazes de cinzelar na pedra as cenas mais belas. “Hoje se sabe que quem fez esse trabalho não era escravo. Eram artesãos famosos que tinham como missão de vida retratar a caminhada dos deuses e do faraó. Era um ofício sagrado, era uma oferenda aos deuses. E os descendentes desses artistas seguem aqui, nessas casas, fazendo o que sempre fizeram”, conta Zizo.
A tumba de Ramsés III guarda uma adorável surpresa. Ali se vê pela primeira vez a representação de uma guitarra, o que mostra que a tataravó do violão já existia por aquelas terras do baixo Nilo. Também ali se pode ver claramente a visão de céu e de inferno que tinham os egípcios. O inferno é cheio de gente atada em árvores, prisioneiros da dor. E o paraíso é retratado como um grande jardim. Nada muito diferente da visão cristã, o que mostra que as religiões parecem ter vindo de um mesmo centro. “Também há semelhança com a ideia de paraíso do Islã. No mundo antigo, os mortos tinham de passar por nove degraus até chegar ao paraíso e só os bons chegavam até o final”.
Também as rainhas tinham o seu Vale de tumbas que igualmente revela toda a riqueza da cultura egípcia. São um total de 100 tumbas da dinastia 18 e 20. Como o Egito teve 30 dinastias é certo que ainda há muita coisa para ser encontrada, por isso a cidade de Luxor parece um imenso museu aberto, no qual sempre está acontecendo alguma escavação. Numa primeira vista parece uma coisa meio desorganizada e suja, mas logo se percebe que é a vida antiga que assoma em cada canto da cidade. Uma mistura inquietante do mundo dos mortos com os dos vivos, de cultos ancestrais com a beleza do Islã, de passado e de futuro. Tudo ali tem a cor ocre dourada do deserto e é preciso se despir completamente dos pré-supostos ocidentais para poder fruir com profundidade toda a beleza que as retinas são capazes de capturar.
O Vale dos Reis e das Rainhas, muito mais do que mostrar a caminha dos reis, ou seja, dos dominadores, é um momento raro de comunhão com os perdidos da história, os artistas, os artesãos, os construtores, aqueles que fizeram real a possibilidade de aquela cultura atravessar o tempo e chegar até nós. São o trabalho cotidiano e as habilidades artísticas daquela gente que se fizeram imortais. Seus nomes não estão escritos nos cartuchos dos templos, mas são eles os que saltam das pedras a nos contar histórias de milhares de anos atrás. Sem eles nenhum faraó teria sobrevivido.