sexta-feira, 8 de agosto de 2008

sorriso de deus

E então a natureza nos convida a ser feliz...

“Se é pra cachaça, não dou!”


Eu sou uma observadora das ruas. Gosto de ficar parada, olhando como as pessoas se comportam, e existe uma situação que me incomoda demais. É a postura dos motoristas quando pessoas empobrecidas pedem uns trocados nos sinais de trânsito. É batata. Nove em cada dez não dão moedas para o povo pobre. No mais das vezes fecham a cara e acabam de cerrar os vidros para sequer ouvirem a súplica. Outro dia perguntei a um cara porque ele não dava dinheiro e ele respondeu de forma ríspida: “isso é pra tomar cachaça”. E, claro, como um bom pequeno burguês ele tinha de dar lição de moral. Cachaça para gente empobrecida é coisa nefasta. Uísque no final da tarde não, mas cana? Por que afinal, esse povo não vai trabalhar?

Pois no início de semestre aqui na universidade federal eu vejo cenas semelhantes acontecerem. Garotos e garotas idiotas, que se submetem aos trotes - mais idiotas ainda - ficam nos sinais de trânsito pedindo trocados. Todo ano a cena se repete apesar de o trote ser proibido. Pois é incrível como a postura dos motoristas muda. Nove em cada dez abrem o vidro, sorridentes, e buscam rapidamente as moedas nos bolsos ou no porta-luvas. Entregam o dinheiro, felizes, e ainda fazem piadinhas inocentes. “São os universitários, tão bonitinhos”. Perfeito! Para as garotas de rosto corado e garotos criados a toddy não há problema nenhum em dar dinheiro. São estudantes vivenciando o trote. Mas, para os feios, sujos e malvados, ah..não! Esses vão beber cachaça.

Mas, se os motoristas imbecis não sabem, os trocados que eles tão alegremente dão aos idiotas que se submetem ao trote, vão parar todinhos na caixa registradora do Bar da Nina, onde os veteranos ficam enchendo a cara de cerveja às custas do trabalho de pedintes dos calouros. Ah tá, mas tudo bem. São estudantes. Podem encher os cornos à vontade. Os empobrecidos não. Estes têm de enfrentar a miséria, a humilhação, o nojo, de cara!

Não é sem razão que abomino a classe média, essa raça intermediária que sonha em ser burguesa e vive arrotando caviar apesar de comer cardosinhas. É uma gente que não tem compaixão, não tem consciência de classe, não se acha trabalhador e pensa que estará sempre livre da miséria. Mal sabem que no mundo capitalista para que possam viver à larga, outro tem de morrer. E seguem, com os vidros fechados, torcendo o nariz para a pobreza. Até que ela os encontre...

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O que é afinal, a autonomia?

A Bolívia está de novo a arder. Há dias de um referendo histórico, a direita e a ultra esquerda se unem em uma série de protestos, o que mostra quão difícil é fazer mudanças radicais na vida das gentes. A grande questão que divide os bolivianos hoje é a da autonomia. Com a decisão da nova Constituição de estabelecer a autonomia para as comunidades indígenas, a elite branca das regiões mais ricas do país decidiu que também quer autonomia. Mas, afinal, o que diferencia uma autonomia (a dos povos originários) da que quer a elite branca? Talvez esse seja o nó que precisa ser compreendido e que quase ninguém explica.

Sem qualquer sombra de dúvida, o pano de fundo de toda essa guerra passa pela questão étnica, mas não só no que diz respeito ao aspecto cultural, folclórico. O problema é, fundamentalmente, político e econômico. Pois então vamos trilhar os caminhos da história para chegarmos até os conflitos de hoje.

Desde a invasão espanhola que os povos originários, vencidos, foram relegados a condição de gente de segunda classe. Por terem uma organização da vida completamente diferente da que foi trazida e imposta pelos invasores, sempre foram tachados de preguiçosos, inúteis, sub-raça, etc... Mesmo entre parte daqueles que se dizem seus defensores este mito subsiste e não é à toa que as idéias que hegemonizam as políticas indigenistas ou são integracionistas ou de isolamento tutelado.

O mexicano Hector Diaz-Polanco, num livro bastante revelador chamado “La cuestión étnico-nacional” dá uma visão clara destas correntes que hoje disputam as mentes e os corações das nações. A primeira delas é a da integração. Nesta, a idéia que vigora é a da completa irrelevância do modo de vida dos povos originários. Sua organização política, econômica e produtiva é considerada primitiva, atrasada, sem chance de vingar no mundo capitalista. Então, a melhor saída é a integração. Os originários adentram ao mundo branco, capitalista, e podem disputar um lugar ao sol na senda do progresso. Nada mais que a mesma lógica colonial na qual o que é diferente precisa ser eliminado. Já a outra corrente busca o isolamento dos povos em mundos idealizados e tutelados. O modo de vida dos povos autóctones é visto como algo a ser preservado e a ênfase fica calcada na questão cultural. Garante-se reservas protegidas pelo Estado e ali, os povos originários podem ser o que são, sem se contaminar pelo mundo capitalista.

Na verdade, tanto uma como a outra desconsidera e reduz o mundo originário. Uma como negação e a outra como idealização. As gentes autóctones, por mais segregadas que estejam em reservas protegidas, estão definitivamente mergulhados no mundo real, multi-étnico e multi-cultural do agora. A América Latina é hoje um espaço mestiço, misturado, de brancos, negros, originários, amarelos e azuis, regidos pelo sistema capitalista. Todas estas etnias reivindicam o direito de serem livres e autônomas, de construírem por si mesmas, neste espaço geográfico comum, em comunhão, a vida mesma. Pois é aí que entra o debate sobre autonomia.

A autonomia dos povos autóctones

Desde os anos 70 que a América Latina vem apresentando um movimento profundo das etnias subjugadas ao longo destes 500 anos. Encontros, congresso, debates e rodas de conversas foram se produzindo nas entranhas do continente envolvendo os povos originários e suas demandas. Eles saiam das sombras e passavam a reivindicar autonomia. O grande divisor de águas, foi, sem dúvida, o levante zapatista no México em 1994, fato que impulsionou toda uma retomada das lutas autóctones. Quando alguns autores vaticinavam o fim de todas as utopias, os chiapanecos, armados, tomavam cidades e lançavam seu grito: “Ya basta!”

Mas, então, o que é essa autonomia reivindicada pelos povos originários? Até onde ela ameaça realmente a idéia de Estado-nação? Até que ponto significa a balcanização do continente? Bom, no que diz respeito à maioria destes povos em luta, em nenhum sentido. A proposta dos zapatistas não é de destruir o México, ou separar-se do estado. É garantir ao seu povo, que conspira de uma outra forma de organizar a vida, o direito de fazê-la. É, na verdade, uma proposta que se contrapõe ao modo de produção capitalista e que busca a construção de outras experiências. É, principalmente, a tentativa de destruição desta forma de vida – o capitalismo - em que para que um viva outro precise morrer. A autonomia reivindicada pelos povos originários é a que lhes garanta o direito de organizar a vida do jeito que acreditam ser melhor, o que não significa retomar de forma acrítica o passado, mas de preservar aquilo que do passado pode ser preservado e avançar ainda mais no processo de construção de um mundo bom de viver, no qual possam estar em harmonia e igualdade de direitos com as demais etnias.

Por que então, esta proposta de autonomia é diferente da que quer a elite branca de Santa Cruz? Por que esta não reivindica separação. Esta quer o direito de autodeterminação que está em todos os documentos internacionais, que é o centro da doutrina Truman, que é o que cada nação reivindica para si. Porque os povos originários são aquilo que Lênin chamaria de “nações oprimidas”, ou seja, não têm direito a vida política e econômica dos seus países, são tutelados. E os ricos de Santa Cruz, desde quando não têm direitos? Desde quando são oprimidos? Pois nunca passaram por isso. Sempre foram os que mandaram na Bolívia e agora não querem saber de dividir o poder num espaço pluri-nacional.

É aí que parte da esquerda também se equivoca, ao unir suas forças contra a idéia do estado pluri-nacional, contra a autonomia dos povos originários. É quando mostra sua faceta racista, incapaz de perceber que as gentes autóctones também estão colocadas na condição de classe oprimida, portanto, parceiras na luta contra o capital. Este deveria ser o trabalho da verdadeira esquerda: juntar forças, estabelecer parcerias, unificar as lutas. Ao atuar na direção da garantia da autodeterminação e autonomia dos povos originários os trabalhadores organizados poderiam aumentar suas fileiras com aqueles que hoje estão fazendo as lutas mais esganiçadas na defesa dos recursos naturais e pela soberania dos povos. Exceto alguns grupos absolutamente minoritários, os povos originários de todo o continente não têm entre suas consignas a idéia de separação. O que querem é o direito de atuar politicamente no país e de garantir sua especificidade no jeito de organizar a vida.

É mais do que óbvio que isso constitui um problema para os governantes e para a maioria da população que está incluída no modo de produção capitalista. Mas este é o desafio a vencer. Estas são as batalhas para serem travadas agora. As de construção de um outro tipo de nação, capaz de garantir verdadeiramente direitos iguais a todos e não apenas a alguns, como tem sido. Conviver com a diferença, respeitar o outro e fundamentalmente fundar um novo modo de viver, esta é a proposta. Um modo de viver construído “desde abajo”, por aqueles que sempre estiveram à margem, excluídos da vida digna. Um modo de viver que não seja a inclusão no sistema que aí está, mas que permita o desalojamento de todas estas verdades cristalizadas de que o capitalismo é o melhor dos mundos. Neste mundo novo, anti-capitalista e anti-sistêmicos os autonomistas de Santa Cruz não querem viver. Por isso querem outra nação, por isso querem se separar. Eles não cabem no mundo novo. Mas a Bolívia é mais do que a elite predadora e vai ter de superar seus desafios.

É certo também que o governo de Evo Morales tem lá seus problemas e muitos são seus erros e equívocos, mas o que não dá para negar é que se está tentando revolver a velha forma de vida. E na comunhão com a maioria oprimida. Esse é um bônus que não dá para descartar. Os trabalhadores explorados, os informais, os mineiros, os brancos pobres, os amarelos, os azuis, todos aqueles que conformam a classe trabalhadora da Bolívia deveriam aceitar esse desafio. E fazer história, construindo um jeito novo de viver.