sábado, 5 de outubro de 2013

Micaela Bastidas – mulher rebelde



Era 1745 na vastidão do Peru. Terra de incas, os filhos do sol.  No povoado de Tamburco, em Abancay, departamento de Apurimac, nascia Micaela Bastidas Puyucahua, uma guria mestiça que iria marcar com sangue e coragem a história da gente peruana. O pai, Manuel, tinha sangue espanhol, mas a mãe, Josefa, era inca da gema. Esta mistura fez de Micaela uma linda mulher de traços fortes e cabelos ondulados, uma “zamba” que, para as gentes de Abancay significa alguém com características distintas a dos andinos, mestiça. Mas, ao logo de sua vida, mostrou que –apesar do sangue espanhol - era verdadeiramente uma mui digna filha de Tawantisuyo, a grande nação do povo dos Andes.

E foi em Tamburco que ela cresceu, um povoado rural, pequeno, pobre, mas rota de passagem dos viajantes que circulavam pelo país em lentas mulas na penosa jornada de carregar mantimentos e produção de um lado para o outro. Foi correndo por aqueles pastos e observando a crescente pobreza das gentes que ela desenvolveu seu aguçado senso de justiça que mais tarde iria se transformar em lenda.

A história de Micaela se mescla com as grandes lutas de libertação da América Latina quando, em 1760, ainda jovenzinha, casa-se com José Gabriel Condorcarqui, cacique de seu povo e descendente do último Inca, Tupac Amaru, morto em Cuzco no ano de 1572. É ele quem vai incendiar as paragens peruanas na revolução que ficou conhecida como a “revolução de Tupac Amaru II”. 

Naqueles anos do final do 700, a exploração dos trabalhadores indígenas era uma coisa insuportável. A colônia fazia seus estragos, rapinava riquezas, escravizava os seres. Já tinham passados quase duzentos anos desde a invasão e os povos originários estavam começando a despertar da letargia. Rebeliões tinham sido feitas ao longo desses anos, mas todas tinham sido esmagadas. A mais recente, em 1760, justamente o ano do casório de Gabriel e Micaela, fora liderada por José Santos Atahualpa, buscando restaurar o reino dos Incas. Esta última fez os espanhóis ficarem de cabelo em pé, porque perceberam que, nas comunidades indígenas, algo muito poderoso começava a se fortalecer: o desejo de liberdade. Aparte isso, também os criollos (gente nascida na terra, mas com sangue espanhol) estavam insatisfeitos com a coroa em função dos altos impostos. Caldo perfeito para mais confusão.

Por conta destes dois elementos incendiários, Tupac Amaru acabou liderando uma revolução vinte anos depois, em 1780. Homem letrado, já cacique de seu povoado, o descendente do Inca já estava impregnado dos ares rebeldes que vinham da França, dos Estados Unidos e do Haiti. Seu primeiro ato revolucionário foi acabar com as obrajes, espécie de fábricas onde os índios eram explorados até a morte, ganhando miseráveis salários. Seu propósito era ir até Cuzco, destruindo todas estas formas de opressão e instaurando um governo indígena. Não foi à toa que em poucos dias já tinha juntado mais de 10 mil índios no seu exército. E, nessa caminhada até o “umbigo do mundo da nação do Tawnatisuyo”, ele ia libertando todos os escravos.

Durante o pouco tempo (cinco meses) que durou a revolução de Tupac Amaru, Micaela Bastide esteve a seu lado. Por várias vezes comandou as tropas e não foram poucas as suas ações como chefe de governo. Seu corpo forte e esguio era visto, manhã cedinho, a cavalgar pelos povoados, arrebanhando gente para a guerra. Ela era quem administrava as provisões, mobilizava os destacamentos e administrava as terras liberadas pela revolução. Era considerada a facção mais radical do movimento. Quando Tupac Amaru vacilava no seu avançar sobre Cuzco, era Micaela quem o impulsionava, seja pessoalmente ou através de cartas que lhes fazia chegar amiúde. Por várias vezes se mostrou mais estrategista do que ele como, por exemplo, quando intuiu que a união com os criollos não ia dar em boa coisa. A história o comprovou. Esperando por um levante das gentes de Cuzco, Tupac Amaru demorou a entrar na cidade. Isso fez com que as tropas reais se rearticulassem e o derrotassem em março de 1781. Cuzco não foi conquistada e tudo se perdeu. Numa de suas cartas a Gabriel, Micaela escreveria: “Chepe, chepe, mi muy querido: bastantes advertencias te dí”. Ela nunca confiara nos brancos e tampouco nos criollos. Sempre acreditou que entrando na cidade, venceriam. Gabriel não lhe deu ouvidos.

Assim, vencidos, os líderes rebeldes foram aprisionados. Entre eles estão Gabriel (Tupac Amaru), Micaela, e seu filho Hipólito. No mês de maio do mesmo ano todos são supliciados na Praça Maior da cidade. Micaela, Gabriel e o filho chegam arrastados por cavalos. Irão sofrer todas as torturas possíveis. O primeiro a morrer na forca é Hipólito, diante dos pais. Mas, antes, lhe arrancam a língua. Micaela fica impávida. Depois, vários outros rebeldes vão sendo mortos nas mesmas condições de crueldade, muitos são parentes, amigos. Micaela é a penúltima. Sobe no cadafalso com a mesma altivez que lhe valera a formosura. Tem a língua arrancada e depois, como não morre em seguida, os carrascos ainda lhe aplicam golpes no estômago e no peito. O filho mais novo, de nove anos, assiste a tudo. Será levado depois, prisioneiro, para a Espanha. 

O último a morrer é Tupac Amaru. O cacique revolucionários é amarrado a quatro cavalos que são postos a correr em direções opostas para que o corpo do índio seja esquartejado. Os cavaleiros esporeiam os bichos, eles arrancam e o cacique não se parte. Por várias vezes é feito o mesmo procedimento e Tupac Amaru não se parte. Os espanhóis desistem e desamarrando-o o esquartejam a golpes de machado, sendo suas partes espalhadas por várias regiões do Peru.  Dizem que nessa hora sagrada, em que o corpo do inca resistiu, uma chuva grossa caiu do céu. 

Talvez seja por isso que até hoje, quando chove no Peru, as gentes originárias se ponham a sorrir. Lembram o tempo em que Tupac Amaru incendiou de novo a caminhada para a liberdade, junto com Micaela. Lembram que sempre é possível enfrentar a violência, o terror, o medo. Sorriem e seguem, porque há ainda muita estrada para caminhar. O povo de Tawantinsuyo ainda não entrou em Cuzco. Vai entrar, e vai ser como queria Micaela. Isso ainda vamos ver!!!

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Mobilização indígena em Santa Catarina

Atividade foi no Morro dos Cavalos. Vieram comunidades Guarani de todo o estado.

 

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Lavando roupa na sanga


Eu era pequena, mas lembro bem. Lavar a roupa, na casa da minha vó, tinha significado de aventura. Quando ela começava a recolher a trouxa, a gente já se preparava. Na pequena casa de madeira alaranjada, onde ela vivia com meu avô, na comunidade de João Arreghi, não tinha água encanada. Daí que a simples tarefa de lavar a roupa não podia ser realizada ali mesmo.Era preciso fazer uma longa caminhada até a “sanga”, que era como todos chamavam a pequena nascente que brotava no meio do descampado. O olho d´água vertia e formava um pequeno lago, todo cheio de pedras redondas. A água era tão clarinha que se podia ver o fundo, bem como toda a vida minúscula que pululava por ali.

A “sanga” era o espaço da alegria e do espanto. Nos dias de calor - que era o tempo das férias – não havia nada melhor do que aquelas tardes a farfalhar no riacho, inventando brincadeiras, tentando capturar os peixinhos pequenos que dividiam a água com nossa balbúrdia. E a imagem da minha vó, revirando as toalhas no gesto típico da lavadeira de rio, nunca saiu das minhas retinas. Era uma cena de beleza, de força, de domínio. Ao longe, meu avô acenava, vez em quando, entretido na tarefa cotidiana de cuidar das taipas que cercavam o arroz. Mais tarde, se reunia com a gente, para a merenda, que ele mesmo preparava e levava, para saborearmos enquanto a roupa quarava ao sol. E assim, depois de toda a festa da lavação, no final da tarde, voltávamos com as bacias cheias, e tudo era pendurado no varal atrás da casa.

Quando a noite descia e acendiam-se os lampiões de gás, a gente jantava ouvindo o cricrilar dos grilos, enquanto a brisa quentinha fazia esvoaçar a roupa. Ela secaria devagar, misturando vento, orvalho e depois o sol da manhã. Talvez por isso tivesse aquele cheiro bom, num tempo em que ninguém sonhava com amaciante. Era uma vida dura, a dos meus avós, mas recheada de pequenos espaços de ternura. Meu avô era a criatura mais doce que eu já conheci e os verões na sua casa fortaleceram em mim esses sentimentos.

Não sei se é por conta dessas imagens bucólicas da minha infância na casa do vô, mas, para mim, lavar a roupa tem um quê de ritual. Durante muito tempo vivi em quitinetes, onde não havia tanque, e aquele infortúnio pesava sobre mim. Precisou passar muito tempo até que eu pudesse morar numa casinha onde, altaneiro, o tanque ocupa espaço central. E, quando chega o domingo eu revivo todo o percurso daquele longinquo tempo em João Arreghi. Passo por todos os cômodos recolhendo a roupa que se forma em trouxa. Depois, parto com ela para o quintal, onde o tanque, transbordante, se transforma em sanga. Ali, vou vou lavando, uma a uma, as roupas, toalhas, lençóis. Girando cada uma naquele girar típico das lavadeiras de rio, batendo na pedra, destilando, na força do braço, todos os venenos acumulados. E canto, como cantam as lavadeiras. Da cozinha, meu amor acena, sorrindo, carregado da mesma ternura que permeava minha meninice.


Então, quando todas as peças estão esvoaçando no varal, eu sento e fico observando o balanço, vivo e bruxólico. Posso sentir a quentura do sol, tocando cada roupa, com numa suave carícia de amor. E elas ficam ali, atravessando a noite, para acumular orvalho, tal e qual permitia minha vó. Quando secas, posso sentir o mesmo perfume de roupa limpa, batida na sanga. Por isso me recuso ao mecanicismo da máquina de lavar. Com ela não poderia sentir a energia viva do ritual de força, de domínio, de beleza, que encerra o girar da roupa para o baque surdo na pedra. Assim que essa tarefa cotidiana se reveste de mistérios e de lembranças, todos os domingos, quando, sem que eu controle, me transformo, de novo, naquela guria serelepe, que seguia pelo descampado, para o solene ritual de lavar a roupa. E o que poderia ser um saco, vira espaço de belezas!!! 

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Novo livro saindo do forno


Recebi hoje da gráfica, o meu mais recente livro. O trabalho conta a história da freira franciscana Olímpia Gayo, que iniciou um fecundo trabalho de organização das mulheres prostituídas em Lages. Por conta disso, pagou alto preço, mas nunca desistiu da luta. Olímpia é dessa mulheres que são imprescindíveis. Para mim, que narrei essa histórica, ficaram lições de amor, de força e de consciência de classe. Na sua caminhada ela, por várias vezes enfrentou o "diabo", concretizado na inveja, na perseguição, na ameaça, e no processo capitalista de organização da vida. Segue o prefácio, escrito generosamente pela teóloga Ivone Gebara.

"Elaine Tavares tem o dom e a arte de contar histórias de mulheres apaixonadas pela vida. Mulheres que são parte da história oculta da bondade e da beleza e que atuaram intensamente para que esses valores continuassem a se manifestar nas vidas sofridas e silenciadas.

"Olímpia Gayo visita o diabo" é mais uma preciosa narrativa que revela o percurso de uma mulher que cresceu vencendo o sofrimento que a vida punha em seu caminho. Desde criança vencia o sofrimento preparando-se e lutando pela dignidade da vida de outras sofredoras e sofredores.

O texto move o coração e convida a abrir os olhos para as vidas ocultas, aparentemente sem valor, para a escória humana que somos e criamos assim como para a salvação e libertação que também podem nascer de nós. Sim, somos salvadoras umas das outras, somos a mão estendida, o abraço apertado, o sentido da solidariedade, a misericórdia vivida. Somos a voz que denúncia, que grita até que os corações de pedra comecem a palpitar de novo e ver e ouvir o mundo ao seu redor.

Conheci Olímpia num encontro de estudos em Julho de 2013 em Lages. Sua congregação religiosa me convidara para uma semana de reflexão sobre espiritualidade ecofeminista. Desde as primeiras palavras que ouvi de Olímpia, a cumplicidade nas ideias, nas visões e, sobretudo, sua forma de "sentir a dor do mundo" ecoaram em mim. Cada uma do nós, de seu jeito, vivia a paixão pela vida manifestada através de muitas formas e expressa através de muitos nomes. Tínhamos muitas coisas em comum. Enfrentamos demônios parecidos, aqueles que atingem os corpos de mulheres e querem silenciar seus gritos de liberdade.

Nas visitas e encontros de Olímpia com os "diabos" da fome, da droga, da prostituição, seu nome, que faz lembrar o Olimpo, moradia dos deuses gregos, espantava os algozes e trazia algo apaziguador, algo ao mesmo tempo celeste e terrestre.  Os diabos fugiam e se descobria sua face oculta, sua beleza, sua momentânea integridade.  No encontro de coração a coração os diabos não ficam. Abrem o espaço para o amor e a justiça. Por isso tantas pessoas marginalizadas encontraram na presença de Olímpia a força para viver, levantar-se e seguir o caminho do resgate da vida.

Ao final da leitura do livro um sentimento de profunda gratidão e beleza tomou conta de mim. Gratidão à Elaine, à querida Olímpia e a tantas pessoas que no anonimato sustentam a vida e anunciam a grandeza do amor, único capaz de curar os corações partidos e renovar a face da terra".
  
Ivone Gebara
Teóloga