quinta-feira, 23 de maio de 2013

Transpondo o São Francisco



Apesar de todas as vozes que gritam contra mais um crime ambiental, o governo federal segue as obras de transposição do rio São Francisco, esse imenso manancial de vida e de beleza que percorre o norte de Minas e se vai até Pernambuco. O argumento para a obra é de que levará água para os pobres, mas, na verdade, o objetivo é oferecer água para o agronegócio, grandes fazendeiros e indústrias. Com a “mexida” nas águas, como dizem os sertanejos, o velho Chico corre risco de secar. As gentes ribeirinhas fizeram sua luta. Foram derrotadas. A obra já está quase 50% terminada.  Para aqueles que se debruçam no cais do rio, espichando o olho para o profundo das águas, resta o medo de que tudo vire lenda, assim como as histórias de encanto que soem acontecer nas margens feiticeiras.

Eu mesma tenho a minha. Foi lá, na beira do rio, que conheci uma mulher que não era gente. Era orixá. Vivi minha adolescência na beira do São Francisco, na cidade de Pirapora, bem no ponto em que o gigante aquieta suas quedas e permite o navegar. Naqueles dias – e ainda hoje - era comum, ao final da tarde, as gentes passearem pelo cais, a ver o pôr do sol, coisa mágica. Assim, todos os dias eu pegava a magrela e, pedalando, percorria o cais, desde as duchas (pequenas cachoeiras), onde ficava o Xangô (um bar), até o final, lá onde descansavam os “gaiolas”, grandes barcos que navegam o rio, ainda movidos a carvão. Bem no final era a zona do meretrício, lugar proibido para as mocinhas “de bem”. Mas, eu, sempre fui curiosa e distraída. O rio me encantava e eu descia, descia, descia... Quando dava por mim, já estava em meio às pequenas casas de luz vermelha.

Foi lá que conheci Lucinha, uma linda negra pernalta, de riso solto e gestos largos. Era como uma flor de manacá, fresca e cheirosa. Lavava roupa para fora e passava o dia inteiro nas pedras do rio. “Tem problema não, branquinha. A gente fortalece os músculos e não cria barriga. Olha só... É só encolher o estomago... Sempre. A barriga não se cria”. Não ligava de morar na zona e não dava bola para fuxico. “Me deito com quem eu quero. Ninguém me paga as contas”. Gostava de ficar na calçada, ao fim do dia, com sua bacia de mangas ou tamarindos, repartindo, generosa, com meninos e gurias curiosas. Depois, banhava no rio e secava ao sol, como as roupas que lavava. “Têm dias que eu queria deitar na água e ir até Juazeiro, boiando. Será que existe céu? Conheci minha mãe não, acho que sou filha do cão”.

Hoje, pensando no destino do velho Chico  lembrei-me daquela moleca, poucos anos mais velha que eu. Tão negra, tão linda, tão cheia do espírito do rio. Onde andaria? Que teria sido feito de sua vida? Ainda posso ouvir sua risada de cristal enquanto corria pela areia da praia perseguindo um pássaro qualquer. Nossa amizade fugidia, de alguns minutos ao pôr do sol, de compartilhamento de frutas e pequenos sonhos se quedou lá, na beira do grande rio. O bom e velho São Chico, forjador de belezas em mim. A Lucinha, orixá das águas, força viva da natureza, deve andar por lá, de músculos duros e barriga sarada. Com certeza acompanhou as passeatas, os protestos, na luta pelo seu mundo. E espia o rio, assustada, todos os dias, com medo de perdê-lo.  Porque ela sabe...

Enquanto vejo as fotos das máquinas, rasgando a terra, criando canais artificiais, desviando o rio, desfigurando o gigante,  assoma a tremenda impotência de saber que o crime vai se dar. A despeito de toda a luta das gentes. O rio vai secar, e Lucinha nunca mais poderá ir boiando até Juazeiro...
 

A colônia ainda vive, aqui e lá



Chile. Era madrugada e um pequeno grupo saía em direção a El Tatio, um dos pontos mais altos da região da quebrada de San Pedro de Atacama, no deserto chileno, onde ficam os famosos gêiseres. Havia chovido na noite anterior e as estradas estavam ruins. O guia que levava o grupo era um legítimo representante dos Likan Antay, o povo atacamenho, originário do lugar. Seu nome: Getúlio. Homem de poucas palavras, com aquele silêncio pesado que precede tempestades, típico das gentes do Atacama que veem a cada dia seus espaços sendo tomados por empresários europeus.

Na Van seguia um animado grupo composto por brasileiros, chilenos, e um espanhol. Colocávamos nossa vida nas mãos daquele homem, pois o caminho era absolutamente invisível, tamanha a espessura da neblina. Nada se via e só o que se sabia era que de num dos lados da estrada se abria um precipício. Getúlio seguia impávido, conhecedor que era das milenares veredas.

Então, houve um estrondo e o carro caiu num buraco, pendendo para o penhasco. Pânico geral. Mas, todos saíram bem e Getúlio começou a tirar o carro da fenda. Foi aí que o espanhol surtou. Começou a gritar, xingando o índio de irresponsável, acusando-o de colocar sua vida em risco, e outras barbaridades impublicáveis. Getúlio ouvia com impassível paciência enquanto, sozinho, lutava para tirar o carro da vala. Dava para tocar o desprezo que o espanhol tinha pelo homem enlameado a sua frente. Os demais ouviam estupefatos.

Quando o carro saiu do buraco, a histeria do europeu obrigou todo mundo a voltar para a vila. Ele fazia ameaças e impedia o carro de subir a montanha. Para ele, o acidente era culpa de uma natural “burrice” de Getúlio. A situação foi tão tensa que todos decidiram descer e se livrar do cara, prometendo voltar na madrugada seguinte, sem o espanhol.

E assim, no outro dia partimos pela mesma estrada, com o mesmo motorista, vivendo a mesma aventura da neblina fechada. Lá em cima, a maravilha dos gêiseres pode ser vivida sem alardes. Na hora do almoço, comendo sanduiches preparados por Getúlio, pudemos conversar. “Esse povo é assim, acha que ainda manda por aqui”, disse ele. “Pensam que somos sua colônia. Não somos mais!”. Estava indignado, mas tranquilo. “Nosso trabalho é esse. Temos de aturar muita coisa”.

Voltamos crentes que estávamos livres do espanhol. Não estávamos. Ele tinha dado parte de Getúlio, na chefatura dos “carabinieri”, acusando-o de quase matá-lo. Fomos todos dar declarações, afirmando que o espanhol era quem tinha colocado todos em risco com sua histeria. Getúlio cuidara de tudo e sabia andar por aquelas estradas de olhos fechados.

Em São Pedro de Atacama é comum encontrar estrangeiros. Tudo parece ser deles. Na rua principal, os bares e restaurantes já não são mais dos locais, que sobrevivem na periferia da vila. No geral, os turistas, muitos desses tipos, tal qual o espanhol da excursão, fazem discursos sobre a América Latina, gostam de segurar indiozinhos no colo, visitar os pobres, percorrer favelas. Mas, quando colocados em situações limite, o preconceito assoma. É que, de fato, a colônia ainda vive, tanto em alguns deles, como por aqui mesmo, nessas terras abyayálicas. Procurando bem pode-se ver que a Espanha, por exemplo, ainda domina grande parte das terras de cá. Hoje, de um jeito novo, via empresas transnacionais. Controla minas, telefonia, bancos, comunicação, serviços estratégicos, no mais das vezes. É um novo jeito de colonizar, de manter sob o cabresto as gentes da grande américa. Governos latino-americanos há que ainda se submetem e baixam suas cabeças para esses interesses, espanhóis ou não. Mas, pessoas como Getúlio também há, que apesar do silêncio diante da agressão, sabem que essa terra tem dono. E que, um dia, por força da luta, tudo vai mudar.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Mulher no mar

Vinda da cidade de Campinas, São Paulo, Juliana Regazoli, ao chegar em Florianópolis, logo se apaixonou pelo mar. Na vivência com as gentes da praia do Campeche viu a possibilidade de compreender o espetacular universo da pesca de canoa à remo, até então absolutamente masculino. Nunca qualquer mulher entrou no barco para remar. Ela enfrentou o desafio, o medo, o preconceito e se foi ao mar. Conheça essa bonita história de amor de Juliana com o mar e a ancestral profissão da pesca.