Todos os dias eu vejo, estupefata, as manifestações em Atenas. Estive lá, em julho do ano passado, e pude acompanhar de perto estas caminhadas, as vigílias em frente ao parlamento, os confrontos com a polícia. Conversei com dirigentes partidários, sindicalistas, estudantes. Em cada um deles pude perceber a clareza de tudo o que acontece no país. Submetido a um governo de vende-pátrias, o povo grego tem visto, desde 2004, a consolidação de um estado de inanição do próprio estado, mergulhado em dívidas, contraídas a revelia do povo mesmo.
Baseados em megalomaníacos projetos de recuperação da pomposidade das olimpíadas, o governo aprofundou a crise econômica, pegou empréstimos de vários bancos europeus para construir estádios, fazer reformas em outros, e sempre com a mesma velha cantilena de que tudo isso se reverteria em benefícios para o povo. Nada disso aconteceu. Alguns embolsaram grana, obras faraônicas foram feitas e o povo agora tem de pagar por isso.
Naquele 2010, quando lá estive visitando o magnífico estádio olímpico, tudo o que pude ver foi vazio e silêncio. Nada acontece por lá. Tudo está entregue às moscas. Já o povo sobrevive no mesmo velho diapasão dos povos dos países periféricos e dependentes. Poucos empregos formais, muito emprego temporário no turismo, muita informalidade. A Grécia é um país incrível, cheio de belezas, berço da história ocidental. Seu potencial turístico é grandioso, mas ao que parece, poucos podem usufruir de toda essa riqueza.
Nas ruas, pode-se perceber um movimento organizado muito forte. O partido comunista é bastante agregador e tem sido uma ponta na lança dos protestos. As passeatas organizadas pelos sindicatos também mostram a força dos trabalhadores visceralmente articulados nessas organizações trabalhistas. Há ainda um movimento da juventude, não ligada a qualquer partido ou organização, que também se expressa nas ruas de forma muito radical e há igualmente um outro movimento de populares que se integra numa ou noutra coluna, simplesmente porque sente-se indignado com tudo que acontece. Nas análises que consegui colher naqueles dias de peregrinação pelas entidades o que aparece muito claro é que estes movimentos que se juntam nas ruas ainda não eram capazes de se unir num único projeto de nação. Cada grupo disputa seu ponto de vista e muitas vezes as manifestações acontecem de forma separada, só se juntando ao final, na Sintagma, a praça central em frente ao parlamento.
Lá dentro, é o que se vê na televisão. Completamente indiferentes ao clamor das ruas os deputados seguem decidindo por mais empréstimos para saldar as dívidas do país, feitas sem que o povo pudesse opinar. Mais empréstimos que significam a completa submissão do país às receitas impostas pelos organismos financeiros. Cortar despesas, apertar os cintos. E tudo isso só vale para os trabalhadores. Ao observar os ternos bem cortados dos deputados que se sucedem no plenário, pode-se perceber que no bolso deles nada está doendo. Mesmo na Rede Globo, onde as notícias são pasteurizadas, é impossível deixar de perceber as contradições que saltam, gritantes.
Ontem (28/06), depois de mostrar as imagens violentas dos choques entre os manifestantes e a polícia, e informar que o parlamento havia aprovado as novas medidas recessivas, Fátima Bernardes leu mais uma notícia, com um sorriso: “A aprovação do novo pacote animou os investidores estrangeiros e a bolsa de Nova Iorque teve uma subida de 6%”. Bom, para qualquer observador de nível médio, essa informação vale mais do que mil análises. Enquanto as gentes gregas se debatem entre suas diferenças e toda a desgraça que se abate sobre elas, os investidores, banqueiros, empresários, os tubarões, lambem os beiços e se preparam para mais um banquete com comida alheia.
Nos meus ouvidos ainda ecoa a voz de trovão de um velho militante comunista, daqueles que ainda enche os olhos d água ao lembrar dos velhos tempos de revolução popular, da grande a figura de Alexandros Panagulis, o inesquecível lutador grego que, em 1968, tentou matar o ditador Georgios Papadopoulos. “Eu não queria matar um homem, e sim um tirano”, dizia. Naqueles dias havia um projeto, um sonho, que, hoje, se perdeu, até porque os que comandam se dizem socialistas. Há desesperanças, há tristezas, mas há luta, muita luta.
Nas ruas de Atenas, os jovens e os trabalhadores saem de casa, todos os dias, com o seu kit básico de revolta: lenços, máscara contra gás (muitas feitas de modo bem artesanal), pedras. Mas o que se vê é que as ruas se enchem, os conflitos se fazem, e nada muda. A elite que domina o país, a classe política que faz as leis, todos seguem fazendo o que bem entendem sem que a revolta se transmude em mudanças reais. A esquerda democrática pede novas eleições, acredita que pela via institucional as coisas podem mudar. Mas, há uma grande parcela que já sabe que mudam as moscas, mas a meleca segue igual. Há que refundar a Grécia. O desafio é unir esses lutadores num projeto de nação. E isso, ao que parece, longe está... longe está...
Enquanto isso, vamos assistindo a toda essa tristeza.