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A cidade é coisa que se nos vão tomando. De repente, quase sem que percebamos, alguma parte dela nos é tirada para sempre. E ainda que exista, não cabe mais em nós, nem nas nossas memórias afetivas. Anos atrás era impensável ir ao centro e não sentar na ponta do mercado público, gritando por um chope ao Marcelo ou ao Neto, no Bar do Alvim. Hoje, aquela ponta amada já não me diz nada. E não consigo sentar ali, porque sei que não tem mais Alvim, que o Mosquito não vai sentar trazendo alguma notícia bomba e nem o Ubby vai passar com seus poemas. Não há mais. Não há nada a não ser um chope ruim e garçons desconhecidos.
O próprio mercado se gourmetizou. Sua copa genérica, tomando todo o espaço com as cadeiras Coca-Cola e aquela infinidade de gente puxando a gente para um prato de comida de 40 reais. Tão fora da ordem. Não sei. Não gosto. Passo por ali, olho com olhos de ontem e choro, sempre choro.
Ainda assim o centro é um espaço mágico, porque outros espaços vão se abrindo para nós. Gosto de seus caminhos intricados, das ruelinhas, do sobe e desce das calçadas mal havidas, das gentes que ainda insistem em viver ali e daquele universo tirar seu sustento. As trabalhadoras do sexo, os ambulantes, os cantores, os pintores. Com eles faço a via sacra, parando ali para comprar algum badulaque dos haitianos, dos africanos, dos equatorianos, dos lageanos. Paro para ouvir o canto doce de uma mulher que acompanha um violeiro na entrada do ARS, dou um trocado para as estátuas vivas, afio um canivete de unha no moleiro, pego um sapato no sapateiro. O centro me completa.
Agora que perdi o mercado achei outro espaço para meu nada fazer. É um quiosque que fica bem na em frente da saída do terminal. Ali podemos beber um caldo de cana, uma água de coco ou uma cerveja. Depende do dia. A maioria tá na cerveja e passa do ponto. São os famosos “mamaus”. Mas não incomodam. Também têm os conquistadores passando a conversa nas senhoras solitárias e os desocupados, esperando que alguma coisa lhes caia na cabeça. Tem três mesinhas colocadas bem de frente para a profusão de gente que cruza a rua em direção ao terminal ou na direção do mercado. É como um vulcão sempre em erupção. Gente, gente e gente. De todo tipo, cores, sorrisos, amores. Gente no vai e vem da cidade.
Sentada ali me encanto com a alegria do jovem cantador que se se apresenta no vão do cruzamento. Ele tem uma pequena caixa de som, um microfone, e ali fica praticamente o dia todo cantando reggae e outras belezuras da música popular. No geral ele canta para si, poucos param, mas se diverte tanto, que deixa a gente enfeitiçada. Está sempre sem camisa e de chinelo de dedo, o corpo suado pela dança que acompanha o ritmo da canção. Ele canta e sorri para as pessoas. Parece estar pleno de felicidade. Ele me emociona. Gosto de ficar ali, vendo ele cantar. Depois, discreta, passo e dou minha contribuição. Ele agradece, simpático.
Penso que ele, como eu, deve ser um desses que insiste em viver a cidade, seja do jeito que for. A rua, livre e coletiva, existe para nós, pessoas, gente que ama a cidade. Roubam-nos quase tudo, nos tiram os lugares tradicionais, derrubam prédios históricos. Mas, a gente cava no meio do cimento, com as unhas, com o riso, com a alegria. E ainda que ninguém queira, a gente faz nascer a flor. Aquele guri cantando e dançando no vão da rua é um grito de resistência, assim como eu, lentamente sorvendo meu caldo de cana com os “mamaus”.
Eu amo essa cidade, e dela nunca vou sair.
O candidato Jair Bolsonaro tinha como mantra na sua campanha a proposta de que não iria governar nem atuar a partir de ideologias. Para muitos, isso significava que ele seria um político do tipo imparcial, sem conexões político-partidárias, sem uma filosofia própria de trabalho e sem uma definição política clara. E esses votaram nele, acreditando nisso. Um governo neutro.
Para outros essa ideia de “sem ideologia” significava simplesmente desfazer tudo aquilo que o Partido dos Trabalhadores tivesse colocado a mão. Isso porque, para esses, apenas o PT atuara na política com ideologia.
Bom, passados mais de 100 dias de governo o que se se percebe é que o entendimento do segundo grupo é o que está vigente. Quando Bolsonaro diz “sem ideologia” está querendo dizer sem nada que lembre ações ou pensamentos de esquerda, ou melhor, do PT. Ou seja, é um governo ideológico. Mas, não fica só nisso. É bem mais profundo. Em alguns casos, trata-se inclusive de mera vingança, como o do Hospital do Piauí que teve 100% das verbas cortadas porque lá, segundo os bolsonaristas, os votos foram 100% PT. Ora, isso é agir levando em consideração apenas a bílis. Não há aí qualquer espírito público e muito menos aquele pretenso “nacionalismo” que aparece nas propagandas do governo.
Não existe Brasil acima de tudo. Pelo contrário. O que aparece acima de todos é a proposta do capital, que quer destruir tudo o que é público para poder abocanhar lucros, e junto com ela alguns desejos da família Bolsonaro e seus mentores relacionados às suas vinganças pessoais.
A proposta de cortar verbas da educação está diretamente colada a essa duas vias. O empresariado desde há tempos vem buscando botar a mão na fatia graúda da educação. Assim, sufocar as universidades públicas abre espaço para as universidades privadas de fundo de quintal. Essas que oferecem cursos a 190 reais por mês. Não têm pesquisa, não têm extensão, não têm nada. Apenas um pretenso ensino de uma profissão. É uma ideia furada. Essas universidades não são capazes de formar bons profissionais porque qualquer profissão exige também a experimentação e a relação com o mundo externo à universidade. Os “colegiões” são apenas espaços caça-níqueis que vão enriquecer alguns e deixar milhões no limite da ignorância.
Qualquer pessoa medianamente informada sabe que são as Universidades Públicas as que são capazes de realizar pesquisas demoradas, essas que realmente mudam a vida e geram patentes. Pesquisas que resolvem problemas práticos da população. E se hoje ainda estamos capengas não é por falta de qualidade nas universidades públicas, mas justamente por conta do pouco investimento e da atenção demasiada na inovação, que não cria coisa alguma.
Há quem argumente que o governo quer acabar com a educação por raiva. É fato que há uma pitada disso sim, afinal o governo do PT investiu bastante nas universidades e isso por si só gera um desejo de vingancinha. Mas, não se iludam, a questão não é moral, nem pessoal. O que está realmente em questão é o aprofundamento da dependência tecnológica e intelectual. Os países de periferia precisam produzir matérias primas. Que deixem a ciência para os “grandes”. Afinal, esses grandes precisam vender o conhecimento para a periferia. Como vão fazer se a periferia também pensar e criar novos conhecimentos?
Por isso esse ataque às universidades públicas. Estrangular financeiramente. Fazer com que venham as greves, as paralisações, os fechamentos de curso. Tudo isso fornecerá lenha para insistir na propaganda de que só tem “balbúrdia” na universidade pública. Assim, uma imagem aleatória de uma apresentação teatral acontecida há milênios, na qual havia uma pessoa pelada, passa a ser difundida como se fosse o cotidiano das instituições. De novo, a questão moral aparecendo para encobrir o político, a ideologia. E enquanto a turba moralista se move para acabar com os “pelados” , o empresariado ri, preparando a casa para a mordida. Ora, se há pelados nas universidades são os pelados de recursos, que precisam comprar com o próprio dinheiro, os insumos para suas pesquisas, ou o giz para suas aulas.
Quem já frequentou uma universidade pública sabe que ali se expressa a sociedade no microcosmo. Tem de tudo. Tem gente estudando, tem gente curtindo, gente namorando, gente pesquisando, gente alienada, gente descolada, gente fazendo a grande política, gente fazendo pequena política. É um espaço de vida, em todas as suas facetas. Mas, é inegável que é ali o lugar onde 90% das pesquisas são produzidas, porque as privadas não aportam recursos para isso.
A universidade não é o lugar prefeito. E está longe de ser a casa do saber visto que atravessada pela ideologia dominante. Claramente não é um espaço da esquerda. Não é. Ali, domina o status quo. Então, a única coisa que se pode depreender desse ataque é única e exclusivamente a sede de lucros do empresariado do ensino. Como não estão nem aí para o Brasil, pouco importa o pouco que a universidade pública ainda consegue aportar. Há que acabar com elas também. Que as gentes paguem para estudar. Educação deixa de ser direito.
Ora, educação é direito. Está na Constituição. Então, até que mudem a Carta Magna, teremos de lutar. Algumas universidades já se levantam. Pelotas saiu na frente, outras já estão se mobilizando. Os Institutos federais também. A vida começa a ferver nos espaços que estavam aquietados. Essa vida fervente é a universidade do pensamento crítico, a universidade necessária. Que cresça. Dia 15 de maio está sendo chamado um ato nacional. E as ruas serão tomadas pelos que querem educação. Há muito para mudar na universidade, mas há que ser para melhor.