quinta-feira, 5 de março de 2015

De vitórias e derrotas ou sobre como a vida é mesmo um dia após o outro



O ano de 2014 terminou de maneira pesada para os trabalhadores técnico-administrativos em educação (TAEs) da UFSC. Depois de uma inédita greve interna, da qual saíram fragorosamente derrotados, foi preciso atravessar o deserto do recesso escolar para entrar o mês de março e, aí sim, compreender que aquilo que se configurou como uma derrota, foi, na verdade, uma vitória da categoria e da classe trabalhadora. Explico.

Terminada a greve coordenada pela Fasubra, na metade do ano de 2014, os trabalhadores da UFSC voltaram às atividades. Traziam como bônus do movimento uma importante mobilização pelas 30 horas, que é o atendimento ininterrupto da universidade, em turnos de seis horas.  Já tinham avançado no debate e nas negociações com a reitoria. Mas, para surpresa geral, tão logo acabou o movimento grevista, a reitora da UFSC, Roselane Neckel, decidiu, sem qualquer debate com a comunidade, exigir a jornada de oito horas para todos os trabalhadores. Sem considerar que, historicamente, muitos setores já praticavam as seis horas, configurando uma resistência importante nessa luta que é mundial, pela redução da jornada.  Foi uma decisão autoritária e anti-democrática que desconsiderou todo o processo de luta e mobilização dos TAEs.

Essa ação provocou grande descontentamento e a categoria, em assembleias massivas, decidiu pela greve interna. Mas, aquela seria uma greve diferente. Em vez de parar o trabalho, eles ampliariam o atendimento, abrindo ao meio-dia e à noite. A universidade funcionaria  em turnos de seis horas, de maneira ininterrupta. Foi uma decisão histórica.

A greve que se seguiu foi bonita e mobilizadora. A universidade adquiria outro frescor, oxigenada por uma nova geração que entrou disposta a não deixar morrer as bandeiras históricas. Mas a batalha que se seguiu mostrou também uma administração que - eleita com um discursos de transformação - se mostrava mais autoritária do que todas as que já haviam passado pela UFSC.

As teses da reitoria

A greve dos trabalhadores foi recebida com desdém. Imediatamente a administração disseminou a tese de que aquela greve era ilegítima, porque seria a sequência da greve da Fasubra, terminada por força da Justiça. Logo, dizia Roselane, a greve interna era ilegal. Durante todo o processo a reitora negou o movimento. Para ela, a greve não existia, ainda que as movimentações fossem intensas e visíveis.

Baseada nessa tese, corroborada pela Procuradoria da UFSC, a reitora também decidiu, de forma inédita, punir os trabalhadores com o corte de salários. Passado um mês do movimento, os salários vieram descontados, a partir de uma conta maluca que cada chefete de plantão fazia. Ninguém conseguiu saber os critérios de contagem das faltas. Assim, pela primeira vez na história, os trabalhadores tinham o salário descontado em greve, justamente na greve em que não houve paralisação dos serviços. Uma aberração de autoritarismo e falta de respeito com a autonomia do movimento.

Depois de três meses de luta e descontos, os trabalhadores se viram obrigados a encerrar a greve, após terem sido traídos pelo Sindicato que, numa assembleia, com o voto ilegítimo de aposentados, conseguiu maioria e encerrou o movimento, recusando-se a encaminhar qualquer ação para proteger os trabalhadores que estavam em processo de punição. Foi um momento de profunda dor para os trabalhadores. Massacrados pela reitoria e traídos por parte dos colegas. Não foi fácil.

Para fechar o processo, a reitoria ainda encaminhou para as fichas dos trabalhadores grevistas as anotações de "faltas injustificadas", o que, no jargão da administração é "sujar a ficha" da pessoa. Trabalhadores em estágio probatório, por exemplo, poderiam ser prejudicados na avaliação e mesmo os mais antigos poderiam ter suas progressões negadas. Era uma pá de cal no grupo de lutadores que, durante todo o tempo que durou a greve, teve de se  bater contra o autoritarismo da administração, a má vontade do sindicato e o silêncio cúmplice da comunidade universitária - principalmente dos professores.   

O tempo da justiça

A derrota do movimento tinha sido avassaladora. Sozinhos, os trabalhadores tiveram de muito batalhar para que o sindicato minimamente cumprisse sua função de defesa da categoria, até que, finalmente, fosse decidido entrar na Justiça para requerer a legalidade da greve e a limpeza das fichas, já que para os trabalhadores aquele tinha sido um movimento diferente do da Fasubra, uma greve interna, portanto legítima.

Os meses se passaram, foi feito um bazar de denúncia e arrecadação de dinheiro para os descontados, veio o natal, o ano novo, o carnaval. A universidade dormia em berço esplêndido nas férias escolares e ainda tripudiava sobre os derrotados, com um grupo de professores insistindo em defender a retomada das eleições para reitor no sistema de 70/30. Mais um golpe para cima dos TAEs, visando impedir que tivessem peso na decisão. Não bastava ter cortado os pescoços, era necessário esquartejar os corpos todos.  
Tudo parecia em paz. A administração seguia feliz, deitada nos louros da vitória sobre os trabalhadores.  Mas, no final do mês de fevereiro, passados os festejos de momo, a justiça se manifesta sobre o mandado de segurança dos trabalhadores, que discutia a legalidade dos descontos de salário.

Na sentença do juiz Diógenes Teixeira caiu por terra a tese da reitoria, sob a qual Roselane Neckel tentou alavancar sua batalha contra os TAEs. A greve era legítima e não estava vinculada à greve da Fasubra. O juiz, como já assinalavam os trabalhadores, considerou que a greve era um outro movimento, portanto, não estava sob o peso da ação judicial que encerrou a greve da Federação.  Perdeu, Roselane.

Vencida essa etapa e sendo a greve um direito dos trabalhadores, igualmente sem conexão com o movimento anterior, a reitora teria de amargar outra derrota política: as fichas dos trabalhadores teriam de ser "limpas" por força da lei. Se a greve era um movimento ilegal, as faltas que pudessem decorrer delas não era injustificadas. A lei garante ao trabalhador o direito de lutar. Logo, uma falta de greve é uma falta justificada. Roselane teria de voltar atrás na decisão de "sujar" a ficha dos grevistas. Perdeu!

O juiz ainda definiu que o corte de salário era facultado à administração - uma decisão política, portanto - mas que não poderia passar dos 10% . Como muitos trabalhadores tiveram descontos que passaram dos 50%, os valores teriam de ser devolvidos. Nova derrota para a administração.

Assim, os trabalhadores da UFSC, que saíram de 2014 derrotados, iniciam o mês de março com uma vigorosa vitória política. Todas as teses da reitoria foram derrubadas. Toda a luta vivida por quase três meses pelos trabalhadores adquiriu legalidade perante a administração e todos os atos de injustiça cometidos contra os trabalhadores tiveram de ser revistos.

Roselane e Lucia - reitora e vice - tentaram quebrar as pernas dos trabalhadores, principalmente dos novos, que foram a força vital do movimento. Não conseguiram. As esperadas 30 horas não vieram, mas todos sabem que aquela foi só uma das muitas batalhas que ainda precisam ser travadas nesse processo de redução de jornada. Essa não é uma luta isolada da gente da UFSC. É uma demanda mundial. As novas tecnologias já permitem um  processo de trabalho capaz de garantir a redução da jornada. Isso é uma questão de tempo.

A reitora Roselane Neckel, que se elegeu com o apoio dos TAEs e estudantes, perdeu o bonde da história. Poderia ter sido aquela que mudou a vida das universidades, a que teve coragem de começar um novo tempo na história dos trabalhadores. Não foi. Preferiu entrar para a história da UFSC como a primeira reitora a descontar salários em greve  e a primeira a decidir sobre o processo de trabalho dos TAEs sem qualquer diálogo com eles. Autoritária e surda aos anseios de seus colegas de instituição, teve de recuar por força da Justiça. Perdeu!

Agora, em 2015, os TAEs da UFSC já começam a se mobilizar para uma nova campanha salarial. Novas lutas, novas batalhas. Nos corredores, nas salas de trabalho, nos espaços da universidade já se pode perceber a movimentação, a conversa, a mobilização. O ano de 2014 foi duro, mas não derrubou ninguém. A vitória de Roselane foi de Pirro. A derrota dos trabalhadores fortaleceu o grupo e impulsiona nova lutas.


A vida é como a primavera. Sempre brota depois do inverno. Brotaremos!...


quarta-feira, 4 de março de 2015

O Brasil e as marchas de março


















Ouvi de um amigo agora pela manhã, falando sobre a marcha do dia 15, chamada pela direita brasileira: "Eu já não sei mais o que é esquerda, o que é direita". Eis aí um grande nó para a compreensão da realidade. Acreditar que não há mais diferenças na forma de pensar e agir sobre o mundo é cair numa armadilha de alienação. Sempre foram muito claros os conceitos de direita e esquerda. Ser de direita é apostar na conservação dos privilégios de poucos, é a postura da maioria dos mais ricos, por exemplo. Eles querem seguir controlando as riquezas do país, para delas tirarem proveito, querem dominar o espaço político, querem manter os mais pobres sob controle. Já ser de esquerda é lutar contra isso, garantindo participação para todos, direitos respeitados, o fim da opressão.

Pode parecer meio simplista explicar as coisas assim, mas de fato a coisa é mesmo simples. A sociedade está dividida em classes sociais. Uma, controla a produção e a outra vende seus serviços. Uma domina, outra é explorada. E é justamente sobre a exploração de uma classe que a outra garante seus lucros e sua vida boa. No meio desse processo as pessoas vivem uma sistemática batalha. Os que são explorados querem uma vida melhor, e os que exploram procuram não permitir que isso ocorra. Quando muito abrem mão de coisas pequenas, quando a luta se acirra, apenas para tentar acomodar as coisas. Mas, no fundo, segue apostando na manutenção dos privilégios.

A confusão sobre o que é ser esquerda e direita, em parte, foi provocada pelo próprio Partido dos Trabalhadores, hoje no poder político. Forjando toda a sua construção em pautas da esquerda, o partido chegou ao governo e passou a ceder passo aos velhos grupos da tradicional direita. Tudo isso dentro da chamada tentativa de governabilidade. Dilma, por exemplo, agora , nesse segundo mandato chegou ao cúmulo de entregar setores estratégicos como as finanças, a agricultura e a educação para figuras carimbadas da direita nacional. Difícil então não ficar confuso.

O fato é que esses malabarismo de governabilidade só alimentam o monstro. A elite brasileira é insaciável. Não lhe basta ter os setores estratégicos na mão. Ela quer tudo. Então, engordados pelo próprio governo, os velhos grupos de poder vão se fortalecendo, chegando ao ponto de pedirem o impedimento e a renúncia da presidente. As razões para isso - aparentemente - são as irregularidades na Petrobras. Argumentos bastante pueris e insustentáveis. Mas, apesar da fragilidade da consigna, esses grupos tem conseguido aglutinar pessoas que, mesmo no grupo dos explorados, por algum motivo "compram" a proposta da direita. Temos visto gente gritando pela volta do regime militar, argumentando que será só para tirar a Dilma, "depois eles entregam o país". Para quem? Ah, bom, isso não importa. Há uma completa falta de compreensão histórica. Os tenebrosos anos de regime militar, que tantos horrores causaram nos mais variados países latino-americanos parecem ter sido apagados da memória. Existe uma juventude que tampouco tem noção do que está dizendo quando chama a intervenção militar. É uma ingenuidade muito bem aproveitada pelos marqueteiros do golpe.

Agora, os movimentos sociais, cuja maioria estava adormecida e domesticada,começam, lentamente, a perceber que há uma grande batalha em curso. E procuram uma reação. Por isso estão chamando uma marcha para o dia 13, dois dias antes da marcha da direita. E, assim, o Brasil vai  realizar um exercício de manobras nas ruas, expressando claramente os interesses em jogo.

Na marcha do dia 13 estão os sindicatos de luta, os movimentos populares, as entidades de direitos humanos e civis. Estará a esquerda crítica e estarão também os que apoiam Dilma. Porque a pauta da marcha do dia 13 é uma pauta dos trabalhadores. As gentes marcharão em defesa da Petrobras, por reforma agrária, por demarcação de terras indígenas, pela democratização da mídia, pelo combate à corrupção. Será uma mobilização da esquerda, com propostas que visam a melhoria da vida de todos os brasileiros, especialmente dos empobrecidos e dos que têm apenas a sua força de trabalho para vender.

Já  a marcha do dia 15 é a marcha do golpe, da direita organizada e dos que, mesmo explorados, são seduzidos por um canto de sereia que promete mudanças. Mas, a mudança prometida é da manutenção dos privilégios e dos mesmos velhos grupos de poder. Sem matizes. Participar disso é apoiar o atraso.

Mas, para muitos, a marcha do dia 15 é unicamente o libelo contra a Dilma. Ora, eu também estou contra as políticas implementadas pelo governo Dilma. Mas isso não significa que, por conta disso, vou me aliar ao que há de mais nefasto nesse país. Como bem diz o professor Nildo Ouriques, o projeto petista esgotou. O que igualmente não significa que no seu lugar tenha que ser colocado o outro velho projeto - da direita - que também esgotou. Ou será que as pessoas não se lembram do que FHC causou ao país nos seus dois mandatos? Se hoje, o governo petista se assemelha àquele, qual é a saída? Constituir o novo! Rearticular as forças, combinar projetos de transformação, avançar, ir para frente.

Assim que não é necessário viver em confusão. Os clássicos elementos que diferenciam a direita e esquerda seguem vigentes. Pode-se dar outro nome para isso que alguns insistem em negar, mas o fato é que tudo é muito simples. Ou estamos caminhando junto com os trabalhadores, os explorados, os empobrecidos, ou estamos de mãos dadas com os poderosos, os exploradores, os que sangram a maioria em nome de seus interesses pessoais. Simples assim.

Por isso que nessas horas de acirramento da luta de classes não há espaço para vacilação. Temos de estar com os trabalhadores, ainda que alguns deles sigam tendo ilusões com o governo petista.   



segunda-feira, 2 de março de 2015

Os cossacos




Desde bem menina eu lia livros antigos sobre os bravos cavaleiros que defendiam a fronteira sudeste da “mãe” Rússia contra os tártaros. Era os cossacos, com seus gorros de pele, casacos pesados, botas longas e cavalos ligeiros, que saltavam das páginas de Gogol, Puskin, Tolstoi. Meu pai dizia que eles eram parecidos com os gaúchos, os que povoavam os campos que víamos da janela. Homens livres, centauros, cruzando as estepes geladas. Eu os amava e sonhava com eles. No toca-discos, ouvíamos as canções cossacas e o mundo se enchia do tropel de cavalos. Eles chegaram a ser o grupo militar mais temido do mundo, tanto que Napoleão lhes rendeu loas, dizendo que, tendo-os, conquistaria o mundo.

Durante a revolução russa os cossacos se dividiram, uma parte lutou com os bolcheviques, outra abominou a proposta comunista. Parte desse grupo, mais tarde chegou a aliar-se ao nazismo. Foi um tempo difícil. Por conta desse divisão, as gentes cossacas foram perseguidas, se dispersaram e muito do mito do grande guerreiro cossaco desapareceu. Não em mim. Vez em quando, as velhas músicas e os livros na estante da casa dos meus pais, me remetiam outra vez às estepes e eles viviam outra vez.

Agora, com os conflitos na Ucrânia eles me vêm, já que foram praticamente os responsáveis pela criação do que hoje é esse país. De que lado estarão? Lendo um texto aqui, outro ali, na imprensa europeia, vejo muitos jovens reivindicando o passado cossaco, mas, aquele, quando os cossacos se aliaram a Hitler. Tristeza profunda.

Por outro lado o governo de Putin tem feito um trabalho de recuperação da identidade cossaca, inclusive formando escolas militares cossacas, buscando trazer os velhos ensinamentos dos guerreiros míticos das estepes. Há até uma força policial especial formada só por cossacos que patrulha as ruas de Moscou e de outras cidades russas.

Eu não tenho muita informação sobre como isso está funcionando, nem sobre as intenções políticas dessa etnia que ressurge com força. Mais de 650 mil pessoas se autodeclararam cossacas na Rússia atual. Se serão os guerreiros livres do passado longínquo, ou a extrema direita nazi, só o tempo dirá. Talvez as duas coisas, como na revolução russa.

Mas, em mim, ainda reverbera a canção que evoca os tempos mais antigos, os cavalos ligeiros, a liberdade da estepe. E ela está aí, na voz do grande Ivan Rebroff, que nem era cossaco, mas os amava, como eu.  


domingo, 1 de março de 2015

No ônibus


















Na fila do busão começou o furdunço. Já não eram daquele dia as reclamações. Desde que a prefeita Angela Amin introduziu o transporte "desintegrado" que a vida das pessoas havia se transformado num inferno. A vida dos que moram nos bairros mais distantes de Florianópolis, é bom que se diga. Isso porque a dita integração colocou no meio do caminho um outro terminal, no qual todos descem para pegar um segundo ou um terceiro ônibus, dependendo de onde vêm. É um verdadeiro terror porque a integração mesmo não existe, e a pessoa pode esperar até 40 minutos por uma "integração", perdendo tempo demais nas baldeações. Trajetos que duravam 35 minutos no sistema antigo agora chegam a durar duas horas e meia, a considerar os engarrafamentos e as esperas nas trocas de terminal. É o inferno na terra.

Aquele era um desses momentos. As pessoas já estavam na fila a 35 minutos, o ônibus atrasado em quase dez minutos e nada de aparecer um fiscal. Em casos assim, a reclamação começa por um e vai num crescendo. De repente, a fila inteira está falando, trocando farpas e jogando maldições nos políticos, nos trabalhadores, na presidente, é uma catarse.

Na minha frente estava João Claudio, um gaúcho que vive na ilha desde os anos 80. Até já fala com certo sotaque manezês. É quase um local. "O povo é gado", dizia. "Não fazem nada quando a gurizada chama para os protestos no centro, depois ficam assim, nesse rame-rame quando o ônibus atrasa. Só sabem reclamar", repetia, indignado com o ônibus atrasado e com a balbúrdia da fila.

Contou que vendia sorvete na praia e vivia essa reclamação vazia todos os dias. "Eu trabalho de sol  a sol, dô jeito na vida. Mas, sempre tem um que vem e diz: tá caro esse sorvete. Caro? O cara reclama por pagar um real mas não reclama contra os desvios de dinheiro da Petrobras, por exemplo. Eles falam de um sorveteiro, que rala pra ganhar o pão e não falam dos empresários que estão envolvidos com a moeda verde, nem dos vereadores que estão sendo julgados por receber propina. Que porra de cidadão é esse? Reclama só contra o pobre? "

João insistia que a reclamação tem de ser consequente e coletiva. "Essa gente aí que rouba a cidade, são os sem vergonha de carteira assinada. Gente escolada, gente que conhece como fazer a malandragem. É contra esses vagabundos que as pessoas tem de lutar. Não adianta ficar reclamando na fila. Vai lá na prefeitura, entra no protesto, ajuda a gurizada, que aí a coisa muda. Esses caras que tem carteira assinada na roubalheira não tão nem aí. Mas, se o povo se une e vai a luta, eles se mexem. Cambada de mandrião".

O papo de João Cláudio já estava causando um certo desconforto. Uma senhora franzia a cara, outra revirava os olhos. "Tem que cobrar do fiscal, sim", gritava uma guria. "É, cobra do fiscal. Esse aí mesmo deve ser um fodido, tá lá, ó, feito barata tonta, nem sabe o que fazer. Não tem ônibus. Tem é que ir lá na empresa e quebrar tudo", gesticulava João, cada vez mais enfezado.

Nesse ínterim chegou finalmente o carro, já com mais de 10 minutos de atraso. Imediatamente a falação terminou. Todo mundo foi entrando, na correria, no empurra-empurra, tentando encontrar um banco livre para ir sentado. A camaradagem formada pela espera e a reclamação se extinguiram. Cada um voltou ao seu mundo interior. João sentou um pouco mais à frente, mas não desistiu. "Tá vendo, tudo mandrião. Já tá tudo esquecido. O povo é gado mesmo. Me dá uma raiva", disse, olhando pra mim e balançando a cabeça em desconsolo. E fomos, a malta, quietos, olhando o infinito, enquanto o busão seguia seu curso.