sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Qual é a surpresa? Uma greve é luta de classe!


As crises sempre são boas, elas servem para mostrar os furos de um sistema. Então, quando elas vêm, há que se ter olhos de águia. Saber mirar, ser capaz de vislumbrar o que aparentemente se esconde sob a bruma. É o que acontece agora com as greves dos PMs. No cotidiano as coisas sempre pareceram claras, e seguras. Polícia existe para manter a ordem, proteger o poder, reprimir os rebeldes. Mas, se a polícia se insurge contra a ordem, o que passa? A resposta está na boca dos que mandam: é a anarquia, é o caos, é o fim do estado de direito.

As coisas então se confundem, o chão foge dos pés. Entre os próprios policiais. Imagino que não deva ser fácil enfrentar a contradição de ser quem bate no trabalhador que reivindica e agora estar na posição do batido. Isso pode desestruturar um prédio ideológico inteiro, ainda que de construção sólida. Por isso a crise é boa.
A greve dos policiais pegou fogo, saiu da Bahia, se foi ao Rio e pode se alastrar. O pânico está instalado, diz a Globo, e aí a platinada não mente. Resta saber: pânico de quem?

Que falta pode fazer o policiamento ostensivo para quem vive na periferia de Salvador? Ou do Rio de Janeiro? Ou de qualquer grande cidade desse nosso país? Quem é que pode dizer, em sã consciência, que os excluídos da vida digna têm direito ao estado de direito? Então vamos lá: de quem se fala quando se fala em defender o estado de direito? Ah, pois é. A coisa começa a complicar.

Em 2003 eu estava em La Paz quando estourou uma greve de policiais. Era uma coisa singela, eles queriam um aumento. Arriscavam a vida por meia pataca. A cidade ardeu. O presidente, então um comparsa dos estadunidenses, chamou o exército e as duas forças se confrontaram em frente ao palácio do governo. No primeiro dia 13 pessoas tombaram sem vida. Foram cinco dias de “pânico”. Eu estava hospedada numa pensão pobrinha perto da rodoviária e lá, com outros companheiros de vigília, ficávamos a noite acordados, vendo as notícias da televisão. O povo estava nas ruas, entrando nos supermercados, incendiando ministérios. Um casal de velhinhos que viera de Oruro (região mineira) para tratamento médico era o meu porto seguro. Entre um chá de coca e outro, na noite fresca, eles seguravam minha mão e diziam: “Não tema, nós estamos entre os irmãos”. Queria dizer que ali, naquela singela pensão, éramos companheiros dos “rebeldes”, não havia medo. Lição absoluta. Nós estávamos do lado da “malta”, das gentes enfurecidas que eram mostradas na televisão como os “vândalos”. Nós éramos aquela gente.

Aí entendi o pânico. Não era dos pobres. Era do poder. Sem a polícia repressora, os bolivianos iniciaram naqueles dias a guerra do gás. E por conta da greve dos policiais, que acendeu o estopim, pouco tempo depois eles derrubaram o governo de Sanchez de Lozada, abrindo caminho para uma nova Bolívia.

Esse é um exemplo concreto de que a greve é sempre a expressão da luta de classe. Mesmo quando ela é promovida pela direita raivosa, como foi o caso do Chile. Daí a importância de se saber muito bem o que é que está acontecendo e que proposta de país governa nossas vidas. No geral, os trabalhadores quando entram em greve, estão fazendo a aposta final. Tudo o que têm para barganhar com os patrões são, como dizia o lindo e imorrível repórter Marcos Faermann, apenas seus corpos nus. Aquele que vota por uma greve já perdeu tudo o que tinha para perder. Está sem esperanças. Resta-lhe a última mão. E ele arrisca tudo. Então, a pergunta que o repórter deveria fazer é: e o que foi, meu irmão, que te tirou a esperança? A causa, não a consequência. A trama, não o desenlace.

Na luta de classe o poder usa suas armas. Grampeia telefone, apresenta a organização da greve como um crime de lesa pátria, prende lideranças, humilha, ameaça. Ah, eles têm tantas armas. E os trabalhadores só os seus corpos nus. Então, quando uma deputada valente, como a Janira Rocha, do Rio de Janeiro, expõe o cinismo do poder, isso não passa no jornal. “Eu admito que estou na luta junto com os trabalhadores, eu não nego, eu coloco meu sigilo telefônico à disposição. Agora quero ver o governador Sergio Cabral colocar as suas gravações telefônicas, das conversas que tem com a Odebrecht, com a Delta, com os empresários”. Ah, muleca! Que atrevimento! Pois é, senhores. E aí, cadê o estado de direito? Só os trabalhadores que lutam têm seus sigilos violados? E os empresários corruptores? Esse não! São gente séria! Olha aí de novo a luta de classe.

E agora, com a greve no Rio, o bicho vai pegar. A fábrica de ideologia – que é a televisão brasileira – vai espernear, babar, cavalgar o diabo. Mas os demônios mesmo ela não vai mostrar. Vai vestir com a capa do capeta cada moleque atrevido que ousar rasgar o véu da contradição. E outros policiais – os que aparecerão como bons – entrarão nas casas dos colegas, chutarão as portas e os arrastarão aos cárceres. Tudo como sempre foi. O valente cabo Benevenuto Daciolo se transformará no responsável por qualquer dedo pisado que houver no Rio. E passará por toda a sorte de horrores que a gente vê nos filmes, nos quais muitos desses que babam por ordem, choram. Será apontado como terrorista. Nenhuma surpresa, nenhuma novidade.

Pois como bem diz esse cabo de olhar brilhante e fala forte, os militares também são trabalhadores e têm todo o direito de lutar pelos seus direitos quando eles não vêm. É a luta de classe. Nada mais. E nessa batalha há que se escolher em qual lado ficar. Benevenuto (bem-vindo) tu que aí estás, a olhar o campo de batalha. Pois, querendo ou não, estás nele.

Nesses dias quentes que virão, agora também no Rio, haveremos de ver na praia, o almirante negro, os tenentes rebeldes, todos os que fizeram a história andar, a assomar a cabeça, cofiando os bigodes, esperando. Tal como os irmãos da Bolívia que um dia ousaram escutar a voz de Tupak Katari, que ao morrer, bradou: eu voltarei, e serei milhões. Quando é assim, nada pode barrar a transformação. Porque às vezes, uma greve é só uma greve, às vezes não.

Hatchepsut, a rainha-faraó








O templo e a múmia da rainha-faraó

Há 4.150 anos antes do hoje uma grande cidade era considerada a pérola do Egito antigo: Tebas. Situada à beira do rio Nilo ela foi construída para ser a capital na segunda unificação do reino. Dividida em duas partes Tebas se constituía a leste, na cidade dos vivos, e a oeste, na cidade dos mortos, onde hoje ainda se pode ver mais de 60 tumbas de reis e rainhas das dinastias 18, 19 e 20. Tebas era um lugar sofisticado e exuberante, que viveu seus altos e baixos, perdendo seu status de capital no final do período, voltando a brilhar em 1.570 a.C. na dinastia 17, deixando para as gerações atuais algumas das grandes belezas do Egito como o templo de Hatchepsut, o templo de Karnak, o Vale dos Reis e o Vale das Rainhas.

Naqueles dias Tebas se fez o centro do mundo, desde o reinado de Tutmés I, que empreendeu várias campanhas militares, ampliando fronteiras, subjugando vários povos, garantindo altos tributos. Foi nesse mundo de prosperidade que nasceu Hatchepsut, aquela que viria a ser a mulher-faraó. Ela tinha 14 anos quando seu pai, Tutmés I, morreu. Quem assumiu o reino foi Tutmés II, que também se casou com a irmã, conforme o costume. Quando morreu, o filho que o sucederia, Tutmés III (nascido de uma concubina), ainda era muito pequeno e a rainha assumiu o poder. Era ao ano de 1.479 a.C.

Durante sete anos ela se comportou como a rainha-regente, mas no ano oitavo Hatchepsut decidiu assumir o cetro de faraó. Para que isso acontecesse ela teve de contar com a ajuda dos sacerdotes do clero de Amon que inventaram para a rainha uma paternidade divina, já que sempre tinha sido assim: para ser faraó, a pessoa tinha de ser filha de um deus. A história toda pode ser vista no templo de Deir el-Bahari, construído para reverenciar o pai-divino Amón-Rá. As paredes contam que a mãe de Hatchepsut dormia quando o grande deus, assumindo a forma de Tutmés I, a encontra. Ela sente o perfume, acorda e, vendo o deus em todo o seu esplendor, entrega-se a ele. Dessa união nasce aquela que viria a ser faraó: Hatchepsut.

A história foi bem aceita pelo povo que nunca questinou a rainha. Ela acabou governando por 22 anos e trouxe muita prosperidade ao Egito. Liderou várias campanhas militares e chegou dominar a Núbia, incorporando-a ao reino. Conta-se que era uma mulher forte e linda e que vivia um romance secreto com o seu principal arquiteto, Senemut, o mesmo que construiu o imenso templo que leva o nome da faraó. Mas outros dizem que o romance nem era tão secreto assim, visto que existem várias estátuas que mostram Senemut carregando a filha de Hatchepsut, a princesa Neferuré. O fato é que os dois construiram um templo belíssimo que nasce da montanha.

Nele, como em todos os templos, é comum aparecer a figura do faraó em grandes estátuas e Hatchepsut é representada sem seios e com barba, o que parece ter sido vontade da própria governante para mostrar seu poder. Já em outros desenhos ela é retratada como uma mulher gorda, coisa bem pouco comum, já que os faraós eram sempre desenhados dentro de um padrão ideal de justa-medida. Alguns estudiosos acreditam que talvez seja para representar a idéia de um governo matriarcal.
A bela rainha que dirigia o Egito como se fosse um homem, inclusive vestindo-se como um, não governou sem problemas, apesar de ter sempre a seu lado, aquele que era seu amor: Senemut. E os problemas vinham de dentro de casa, através de seu meio-irmão Tutmés III, que reivindicava o trono.

Quando seu reinado cumpria quase 22 anos, uma ameaça externa vinda de inimigos antigos, os Mitanni, muda o rumo da sua história. A faraó estava doente, atacada por uma grave infecção e isso faz com que Tutmés III, seu meio-irmão, assuma o controle das tropas, faça uma campanha vitoriosa e, por conta disso, assuma o governo. Hatchepsut desaparece da cena política.

Desde aí a história de Hatchepsut se perde na história. Durante milênios ficou escondida e só agora aparece à luz do dia. Contam que seu amado Senemut não a enterrou no templo construído para ser a sua tumba, com medo que pudesse ser violada, e sua múmia se perdeu. Isso se explica pelo tremendo ódio que o irmão Tutmés III lhe dedicava e tanto que boa parte de suas estátuas e representações pictográficas foram borradas, com seu rosto apagado. Era a forma que o meio-irmão encontrava de extinguir sua história e fortalecer o poder real do seu filho Amenhotep II. Por isso acreditava-se também que ele a havia assassinado, espalhando partes do seu corpo por todo o Egito.

Mas, há três anos, a descoberta de três múmias de mulheres numa tumba do vale dos reis, pôs fim ao mistério. Junto às múmias encontraram um caixa com o nome de Hatchepsut, e dentro dela havia um dente. Numa das múmias também faltava um dente e daí, foi só somar dois mais dois. Era a rainha-faraó. Exames no corpo dão conta da causa da morte: infecção dentária e um câncer no osso.

Assim, apesar de ter tido seu rosto borrado no grande templo que construiu, a rainha sobrevive ao tempo e continua falando às gentes desde o passado. Agora, com seu rosto forte trazido à luz, ela incita o pensamento ao mostrar o quanto teve de se fazer homem para garantir o poder sobre os egípcios. Mas, ainda assim, o quanto conseguiu ser livre naqueles dias, mantendo ao seu lado o homem que amava.

São as histórias do velho Egito ainda agindo sobre o mundo. Fatos de um tempo antigo que, hoje, em Luxor (antiga Tebas) como em outros tantos lugares do país, sustenta a vida das gentes atuais. Sem o turismo cultural que movimenta milhares de dólares todo o ano as populações da beira do Nilo teriam uma existência bem mais dura. Em meio aos cantos de revolução e mudanças, os deuses antigos desenhados nas paredes parecem abençoar e proteger. Só que, dessa vez, não aos reis.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O Wando é luz, estrela e luar...

Encantou o Wando, parou o coração que batia com pura paixão. Meu carinho e meu respeito ao cantador do mundo popular... "você é sim, e nunca meu não", quem nunca cantou??? Valeu Wando!!!

A vida à margem do Nilo





É uma terça feira do inverno egípcio, um ano depois da revolta que levou as gentes para as ruas e derrubou o governo de Hosni Mubarak, que há trinta anos estava na presidência. Nas margens do rio Nilo, que corta todo o país, as gentes seguem com sua vida cotidiana, como faziam há milhares de anos. O sol já esquentou e cada família que vive à beira do Aur (nome antigo do rio que significa negro, por conta do barro que produz) cumpre sua tarefa diária. Desde o tempo dos faraós que o grande rio é sinônimo de vida para o Egito. Naqueles dias, eram as suas cheias que garantiam a comida e a fartura. O barro deixado nas margens depois da descida do rio tornava o lugar um espaço de grande fertilidade. Não foi sem razão que a maioria dos templos dedicados aos deuses mais amados acabou construída naquela estreita faixa entre os desertos escaldantes, assim como quase 90% da população esteja fincada em suas margens.

A primeira sensação que se tem ao chegar ao rio é a de assombramento. O rio é largo, mas ambas as margens podem ser avistadas sem problemas. E o que surpreende é a junção do verde esmeralda das palmeiras e das plantações com o dourado da areia. Parece impossível que aquele milagre se faça, mas ele se faz. É certo que com as represas – principalmente a grande represa de Aswan – os egípcios já não dependem mais das cheias para garantir a fertilidade das terras, mas também já não têm o barro negro que tanta fartura gerava. A obra feita com a ajuda do governo soviético na época do governo de Gamal Nasser (1968) garantiu que os agricultores pudessem ficar na margem, cultivando o ano todo, às vezes conseguindo até três colheitas, mas o barro milagroso não consegue passar pela represa. Ainda assim, com a irrigação artificial o vale do Nilo prospera no inverno e no verão, mesmo que as precipitações de chuva sejam bem pequenas.

Navegando para o sul, em direção a Aswan, pode-se ver a vida mesma, na sua imanência. Pequenas ilhas verdes acolhem o gado, que é levado pelos moradores nos barcos. Ali os animais ficam pastando e engordando numa cena que parece ter saído de algum papiro de cinco mil anos atrás. Enquanto observam o gado, os barqueiros também aproveitam para pescar, tocando a existência numa vagareza, típica do rio. Por todo o trajeto do caminho úmido veem-se as mulheres lavando suas roupas, cercadas de crianças que brincam com cachorros e cabras. Há vacas, carneiros, burros, cavalos, camelos, gatos, todos se fartando com o rio.

Na tarde quente, apesar de inverno, também se pode notar os homens e suas rezas. Enquanto o som do Corão ecoa da mesquita, eles ficam ali, na beira da água, curvando-se diante do seu deus, Alá. Os mais devotos rezam cinco vezes ao dia, como manda o livro sagrado, e a oração é feita de movimentos, sempre com a cabeça voltada para Meca. Pelos caminhos as mulheres vão e vem carregando grandes feixes de palha na cabeça, as carroças puxadas por burros circulam levando a produção, e as bombas de água sugam sem parar a bênção que é o Nilo, garantindo grandes plantações de arroz, palmeira, cana de açúcar e de banana.

Por toda a orla do rio pululam as casas simples, feitas de adobe com cobertura de palha. Como a chuva é pouca não há muito que proteger, a não ser do sol. Somente perto das cidades maiores se percebe grandes casas de gente rica ou empreendimentos turísticos. No geral as margens parecem pertencer a pequenos produtores que são donos de sua própria terra e vivem da agricultura de subsistência. “As pessoas que vivem aqui não esperam grandes coisas da vida, nem querem. Gostam de viver do rio, fazer seu trabalho, estabelecer seu ritmo. Agora, com a revolução, tudo que anseiam é uma melhora na infraestrutura dos povoados, condições de juntar algum dinheiro para viajar à Alexandria, em férias. Somos um povo simples, com desejos simples”, diz Muhamad Mustafa, morador de Luxor.

Ele conta que apesar de toda a exploração dos governantes de plantão, no Egito nunca se soube de alguém ter morrido de fome. O povo muçulmano é muito solidário e pratica a caridade, jamais permitindo que um familiar ou um vizinho passe necessidade. “Faz parte da prática religiosa que um muçulmano doe 10% de tudo que ganhou no ano. Essa doação ele tem de fazer em segredo, ninguém pode saber, e geralmente a gente ajuda os que estão próximos e precisam mais”, conta Zizo, que é devoto e praticante. Mais de 40% da população ainda vive na área rural e tudo o que querem é ter um bom hospital, uma boa escola e poder cuidar da família em paz.

Foram essas necessidades que levaram mais de 70% da população a comparecer às urnas nas eleições legislativas. Eleição era coisa que ninguém mais dava bola, mas, depois da revolta de janeiro de 2011 que colocou Mubarak para correr, a política renasceu. O desejo de participar e mudar as coisas moveu as gentes. “É certo que o sistema eleitoral ainda é precário, pois os partidos novos, o povo da revolução, não teve dinheiro para fazer uma campanha nacional. Não há propaganda gratuita e só os partidos mais organizados ou quem tem muito dinheiro pode chegar a todos os lugares. Daí que foi meio óbvia a vitória da irmandade muçulmana. Eles estão organizados desde há anos e tem a ajuda dos imãs (sacerdotes)”. De qualquer forma o Egito vive tempos de grandes câmbios e mesmo isso pode mudar. Vai depender dos rumos dos movimentos sociais.

Já para os ribeirinhos que vivem na capital do país, o Cairo, o rio Nilo perdeu parte do seu valor. A vida citadina tem outras demandas e as margens do rio estão espremidas pelos prédios. O alto nível de contaminação não permite que se use o rio para a pesca, há muito lixo e esgoto, tornando as águas mais escuras do que são. Em alguns lugares a falta de cuidado é gritante e uma das reivindicações da juventude insurgente é com o saneamento. Essa é uma área que precisa de muito investimento no Egito moderno.

A revolução de janeiro de 2011 colocou muitos pontos de interrogação para a população egípcia. O novo governo, hegemonizado no parlamento pela irmandade muçulmana, é esperado com franca satisfação. As últimas gerações – dos anos 60 em diante - não conseguiram lograr tempos de paz, vivendo conflitos armados com Israel, e tampouco vida boa para a maioria, nos tempos de Mubarak. Agora, eles se armam de esperanças e apostam em mudanças substanciais.

No geral, o turismo é visto como uma coisa boa, e há uma estrutura bem montada para receber os visitantes que vêm em busca da cultura milenar. No caminho do rio pode-se ver os cais bem estruturados para a navegação e paragem de mais de 280 barcos que fazem os passeios pelo Nilo. Há também uma bem montada rede de distribuição das verbas do turismo. Ao que parece todo mundo ganha um pouco com os viajantes. Os barcos grandes, os barcos pequenos, as falucas, os carroceiros, os donos de camelo, os vendedores de badulaques, os moradores do vale. “O turismo abriu um pouco a cabeça desse povo que vive aqui na margem. Sempre foi uma gente muito conservadora, e, agora, com o contato com gente de várias partes do mundo, vai se modernizando”, conta Zizo, que também é originário de um pequeno povoado da beira do Nilo.

Agora, na última semana, voltaram a ocorrer conflitos de rua na capital e também em Port Said, onde dezenas de pessoas morreram num confronto no estádio de futebol. O descontentamento assomou, até porque os jovens que protagonizaram a revolução querem a saída imediata dos militares que ainda estão no comando do país através da junta militar. Poucos são os que aceitam esperar até junho para as eleições. A mudança tem de ser já. O processo iniciado em janeiro de 2011 ainda não se cumpriu. E mesmo na lenta existência dos que habitam as margens do Nilo, assoma agora a pressa, a vontade de que o Egito inicie uma nova era, uma espécie de segunda República. Isso significa que ainda há muita água para rolar debaixo dessa ponte da revolução.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A democracia e sua expressão

Exército reprime familiares dos grevista - reprodução da TV - hoje pela manhã

O teórico do jornalismo, Adelmo Genro Filho, já havia revelado no seu livro “O Segredo da Pirâmide” que, apesar de ser filho dileto do capitalismo, existem momentos nos quais o jornalismo não pode esconder as contradições da vida real. Daí a possibilidade do seu caráter revolucionário. Penso que é o que temos visto, nos últimos dias, na televisão. Apesar da posição sempre servil das emissoras com relação ao poder, e das informações aparentemente desconexas, se procurarmos juntar os fios das informações, podemos ter um quadro sem retoques da tão defendida democracia liberal. Nela, ao contrário do que dizem os porta-vozes dos governos, o que não existe é a liberdade. Mas é preciso aclarar: a liberdade dos pobres. A eles é vedado o direito a qualquer reivindicação. Se ficarem quietos, agüentando tudo, está certo. Mas se resolverem gritar contra qualquer filigrana do poder, a força da “democracia” aparece com um estrondo sem lugar.

Todos os dias, a pedagogia da sedução do sistema capitalista joga para dentro das cabeças a idéia de que a democracia do mundo ocidental é a melhor coisa que pode acontecer aos povos. Foi assim quando os Estados Unidos quis invadir o Afeganistão. Pintaram os talibãs como diabos e diziam que a alegria só voltaria ao país se ali entrasse a democracia. Invadiram, depuseram o talibã, implantaram a democracia e tudo seguiu como antes: violência, terror, mortes. Depois foi a vez do Iraque. Sadam era o demônio antidemocrático. E lá foram os soldados estadunidenses a levar a democracia. Resultado: violência, terror e milhões de mortos. Cenas que seguem se repetindo até hoje. Ora, se a democracia iria resolver tudo, como não resolveu? Ano passado foi a Líbia que mereceu a visita da democracia. Que se passa por lá agora? Por que os meios não nos contam? Reina a paz? A mesma que eles querem impor à Síria, agora a bola da vez para receber a democracia.

Mas, não precisamos ir muito longe, no Oriente Médio, para ver como a democracia se comporta. Basta uma olhadinha para nós mesmos. A desocupação da comunidade do Pinheirinho no final de janeiro, com todos os requintes de brutalidade, é um exemplo bem claro. Os empobrecidos, sem casa, sem esperança, sem nada, ocuparam uma terra abandonada. Lá ergueram suas casas e lá viveram por oito anos. Uma vida. Agora, a justiça (assim, com minúscula) decide que ali não é lugar de pobre morar e começa todo um processo de demonização das pessoas. São bandidos, marginais, gentes sem estofo. Não merecem a pena de ninguém, daí que as cenas brutais das casas sendo destruídas, das famílias sendo despejadas, dos animais sendo mortos e outras tantas gentes sendo presa ou desaparecida já não comove boa parte das pessoas. O recado da democracia já havia sido dado: aquelas criaturas não eram gente, logo, a violência é bem vinda. É limpeza.

Hoje, assisti as cenas na Bahia, divulgadas pelos jornais nacionais. Os repórteres falam dos vândalos que saqueiam lojas, dos bandidos que circulam pela madrugada baiana, das “badernas” dos familiares dos policiais em greve e, é claro, os grevistas são pintados como os grandes responsáveis pelo caos que se instalou na bela capital baiana. Então mostram a atitude acertada do governo central que mandou jovens do exército nacional para garantir a lei e a ordem. E mostram alguns moradores saudando a vinda do exército para salvá-los. Os confrontos em frente a Assembléia onde estão os trabalhadores em greve são mostrados como distúrbios irracionais. Nenhuma das reportagens toca no nome do governador baiano, Jaques Wagner, como se o governo não tivesse absolutamente nada a ver com isso. Quando seu nome aparece é como o cara que vai garantir o carnaval, nem que tenha de trazer todo o exército para as ruas. Claro, a folia dos endinheirados é mais importante do que liberar uns poucos caraminguás aos policiais.

Pois essa é tão amada democracia burguesa. A lei e a ordem dos poderosos, dos que tem o dinheiro, dos que tem o poder. Qualquer rugosidade nessa paz do poder, e os remédios são imediatamente utilizados sem qualquer piedade. Há que impedir que a “doença” se alastre e há que agir com rapidez. E as doenças são, comumente, os empobrecidos, os sem-teto, sem terra, sem trabalho, os explorados, gente que vive assim, não porque quer, mas porque é levada à margem pela ganância e a sede de lucros de quem manda. Mas esses precisam ficar quietos, acatar todas as leis que são criadas contra eles, precisam aceitar de cabeça baixa todas as decisões que os graúdos lhes impõe, ainda que sejam injustas e imorais.

E a coisa é tão bem arrumadinha que, por vezes, as próprias “vítimas” – que é a maioria da população – aceitam a idéia de que é preciso viver na paz, sem perturbar a ordem dos que mandam. Aceitar o cabresto e viver das migalhas.

Ocorre que gente há que diz não. Não aceita. Não quer. Gente há que quer morar, viver, comer sorvete, levar o filho ao parquinho, ver um bom filme no cinema. Gente há que não se deixa enganar pelo canto vazio da ideologia que se expressa na escola, na família, na TV. Gente há que luta, que se rebela, organizadamente ou não.

O quadro da democracia burguesa é mais ou menos assim. Os que são jogados na miséria e na exploração, ou se revoltam individualmente e roubam, matam, perdem sua humanidade, ou se organizam em sindicatos, movimentos, e lutam coletivamente por mudanças. Uma coisa ou outra sempre vai acontecer, ou as duas juntas ao mesmo tempo. Não dá para fugir disso. É da condição humana caminhar para a beleza. Ninguém pode aceitar viver sem isso.

Assim, sejamos espertos, observemos as notícias com o grosso lápis da história e vamos ligando os fios. O desenho final é o quadro da opressão massacrando aqueles que querem participar do banquete, enquanto na televisão os lobos aparecem como cordeiros, e os cordeiros como lobos. Um espelho invertido que precisa ser quebrado. Já vimos essa história aqui mesmo na pele, com a revolta da catraca, ou a luta dos professores pelo simples cumprimento de uma lei.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Youssef, o egípcio






No primeiro dia foi como mágica. Entramos no quarto depois de uma longa jornada peregrinando pelos templos dos deuses antigos do Egito e ali estava, sobre a cama, um cisne, todo moldado em toalha. Era a imagem de Tot, um deus protetor. No segundo dia, mais caminhadas pelo velho Egito, dos faraós e dos sacerdotes. E, de novo, ao abrir a porta do quarto, ali estavam as toalhas, dobradas em outro desenho esplendoroso. Era um elefante, e a pessoa havia chegado ao preciosismo de colocar duas folhas negras no lugar onde deveriam estar os olhos. Era uma coisa delicada e bela. Desconfiei de que haveria de ser uma criatura mágica que deixava tudo assim, já que no Egito certamente não haveria Saci.

No terceiro dia chegamos mais cedo e surpreendemos um garoto que fazia a limpeza dos quartos. Seu nome: Youssef. Tentamos conversar, mas ele não entendia. Pediu, através de sinais, que esperássemos um pouco para entrar. Esperamos. Em cinco minutos voltou, sorridente, fazendo o sinal de positivo. E sumiu pelos corredores. Entramos e ali estavam as toalhas, penduradas no teto como se formassem um macaco. E havia um detalhe especial. Ele ainda pegara meu casaco e meus óculos, dando ao macaco de toalhas uma aparência descolada. O guri era um artista.

Youssef é um desses garotos egípcios que fizeram a revolução, cheio de desejos de vida boa e bonita para toda a gente. Nascido em um pequeno povoado da região de Assuam ele desde cedo precisou batalhar duro para que a vida fosse melhor. Hoje, com 21 anos, trabalha como camareiro em um pequeno barco que carrega viajantes pelo Nilo afora. Mas, no seu peito de garoto pulsa um coração artista que precisa de espaço para se expressar. Então, ele vai trabalhando com as toalhas, encantando os passageiros com suas surpresas. Faz tudo no silêncio das manhãs, quando todos estão fora, desfrutando da vida. Muitos sequer percebem a obra de arte que foi ali construída com tanta sensibilidade e perfeição. Ele não se importa, faz porque gosta. Quando vê que alguém gostou, se esmera mais e usa os pertences das pessoas para incrementar as figuras. Sorri como menino, encantado que tenham se encantado.

Youssef faz parte de um exército de jovens que já não quer mais o Egito que se fazia apenas para poucos. Ele quer fazer universidade, criar outras coisas, inventar novas artes. Ele quer formar uma família, viajar, conhecer o estrangeiro. Não esteve naqueles dias de janeiro de 2010 na Praça Tahir, mas fez sua parte onde estava, às margens do grande rio. Como todos os demais que foram às ruas naquele então ele sonha com um país novo, de riquezas repartidas. Faz parte dos 67% que hoje estão entre os 18 e os 40 anos, dos que querem mudanças, a nova geração do Egito.

Assim, entre o ir e vir pelas águas do Nilo, Youssef fabrica sonhos e também sonha, debruçado sobre o convés. Sorriso de anjo, cara de menino e coração de criança, esse jovem da região núbia já aprendeu que a vida pode ser dura, mas que a luta também pode fazer acontecer o novo. Por conta disso, no último dia, ele deixou no quarto um sapo. Bicho que pula, que vai longe, que transpassa as fronteiras do possível. Assim ele haverá de fazer, com seus companheiros de geração, saltando sobre as pedras do seu amado Egito, em busca do grande meio-dia.

E nós, partimos, com a sensação de que, às vezes, um menino inventando bichos com toalhas é o que basta para encher o coração de alegria. Foi como uma doce dádiva dos deuses. Youssef e seus delicados presentes.