sábado, 26 de abril de 2014

Johnny?







Ele chegou assim, de manso. Passo leve, olhar baixo, óculos de grau, chapéu. Trazia um lenço palestino em volta do pescoço. Vestia uma calça jeans rasgada no joelho e uma camisa pastel, cujas mangas arregaçadas deixavam vislumbrar tatuagens. Sentou na última fileira. Todos os olhares se voltaram para ele. E as pessoas cochichavam. As meninas, alucinavam. Mesmo assim, ninguém se atrevia a interpelar. Eram as Jornadas Bolivarianas, evento anual do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC. Coisa científica, discussão da Teoria da Dependência. E ele ali. Quietinho. Ouvia e escrevia. 

Passaram o primeiro e o segundo dia, e ele firme. Todas as palestras. Os murmúrios seguiam, as gurias perguntavam. Quem é? Quem é? Gato! Gato! E entre os debates sobre dependência, renda da terra, socialismo, capitalismo, desenvolvimento, história da América Latina, misturavam-se os suspiros e comentários nada intelectuais. 

No terceiro dia, até eu já suspirava, afinal, ali, na última fila estava a cópia perfeita do Johnny Depp, ator estadunidense, de origem indígena, responsável por alguns dos filmes mais lindos que já vi. Sem contar o sensacional  “Jack Sparrow” , capitão do Pérola Negra. Era ele cuspido e escarrado. Pois não é que, no final da tarde, sem que eu esperasse, ele vem assinar a folha de presença. Vejo-o sumir pela porta e pulo no papel. Douglas May. Claro, não era Johnny. 

Quando ele volta, para a última conferência, o abordo. Não poderia deixá-lo ir sem saber quem era. Pois Douglas é o sosia brasileiro do Johnny Depp. Ator desde bem jovem, já protagonizou trabalhos importantes no teatro catarinense. Formado em Direito chegou a trabalhar num escritório de advocacia, mas o que ganhava mal dava para comer. “Florianópolis é uma cidade muito cara”. Depois, foi dar aulas de história, mas, ser professor também não é moleza num estado em que até o governador descumpre a lei e nem sequer paga o piso salarial. Então, num carnaval, ele buscou uma fantasia, assim, por brincadeira. Achou a do Jack Sparrow e assombrou-se com o assombro das pessoas. Ali estava o capitão do Pérola, igualzinho.

Na hora ele teve o clic. “Já tinham me dito que eu parecia com o Johnny, mas a gente não leva a sério. Eu já me parecera com Che Guevara e também com Bertold Brecht, o qual interpretei no teatro. Mas, ao me ver como Jack, eu também me convenci”. Desde aí o capitão faz parte de sua vida. Hoje, Douglas trabalha no litoral catarinense, representando o personagem imortalizado por Johnny. “Tudo começou como uma brincadeira para eu espantar a depressão, mas agora o personagem me garante a vida. Com ele, não só ganho mais dinheiro, como me sinto realizado”.

Mas, para além do trabalho como ator, Douglas May interessa-se pela política. Declaradamente comunista, ele conta que veio assistir à décima edição das Jornadas Bolivarianas porque gosta do tema da dependência e entende que o mundo precisa mesmo ser transformado. “E, para isso, precisamos compreender a realidade. Por isso, sempre quando posso, estou estudando. Também gosto de escrever. Fico na minha, pensando e colocando as ideias no papel”.

E, assim, desfeito o mistério do Johnny Depp, o que encontramos foi uma criatura preciosa, com um sorriso encantador. Tímido, introspectivo, inteligente, sonhador, guerreiro, criador. Douglas May. Muito mais do que uma cópia do lindo capitão. 
 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

A Copa vem aí

foto: Paquito Masiá

Desde bem menina gosto de futebol. Era comum acompanhar meu pai, repórter esportivo, aos jogos dos dois clubes que havia em São Borja: Cruzeiro e Internacional. Meu coração pendia irremediavelmente para o Inter. Não sei o motivo. Nunca soube. Apenas amava aquela camisa vermelha brilhando ao sol. Quem pode saber o que nos faz amar algo ou alguém? É coisa que nos toma e não há explicações a dar. Já, em Porto Alegre, era o Grêmio que me tinha. Como entender essa confusão? Impossível. Amor! O rolo só se desfez quando Cruzeiro e Inter se fundiram dando lugar ao São Borja. Fiquei só com o Grêmio. E, assim, o futebol foi encontrando seu lugar na minha vida. A bola rolando, os dribles, os meneios de corpo, as firulas, o voleio, o gol. Nunca me importei com ganhar ou perder. Apenas me encanta aquela correria no quadrado, a arte de dominar a bola.

Há 24 anos vivo em Florianópolis e por força da profissão me vi setorista do Figueirense, escrevendo para o Jornal "O Estado". Em pouco tempo o furacão do estreito já tinha me ganhado, apesar de o Avaí ser azul, como o Grêmio. De novo, o não-sabido, o incompreensível. Importa não. O que vale é aquela alegria que assoma na hora do gol.
Repórter de esporte sempre soube o que estava em jogo no futebol. O espetáculo é uma mercadoria do capital, feito para render lucros a alguns. Também sempre tive muito claro que os mais variados esportes, entre eles o futebol, são, como muito bem aponta o professor Nilso Ouriques, no livro Megaeventos Esportivos, "produtos de transplantes culturais produzidos pelas elites ociosas", em busca de elementos culturais e simbólicos que garantissem riqueza e poder. Tanto que o futebol, introduzido no Brasil pelos ingleses e jesuítas, era um jogo da elite, completamente proibido para os pobres. Igualmente compreendo o papel do Estado na institucionalização do esporte, iniciada em 1941, com os dirigentes políticos do país definindo que confederações e federações poderiam existir. Obviamente um espaço dominado e atravessado pelo jogo do poder. 

Nos anos 50, quando o Brasil se associa definitivamente ao universo dos dois maiores eventos esportivos, as Olimpíadas e a Copa do Mundo, toda essa herança de coronelismo, clientelismo, desmandos e corrupção se fortalece e, desde aí, estamos cada dia mais submetidos à lógica do esporte/espetáculo/mercadoria, sem mudanças no quadro político.

Mas, apesar de tudo isso, a vida mesma se encarrega de colocar sua cunha nos planos das elites. E o futebol, antes proibido aos pobres, ganha as ruas e dos campinhos de várzea começam a brotar craques. Sem poder fazer vistas grossas aos ídolos dos campinhos, os clubes se abrem e incorporam os negros e os jogadores da periferia. Espertamente, se apropriam da beleza criada nas ruas e acabam inventando uma sofisticada forma de escravidão. Em pouco tempo, os jogadores passaram a ser comprados e vendidos como se fossem coisas. Mas, vez em quando, eles subvertem a ordem, que o digam Sócrates, Casagrande, Nelinho, Éder, Albeneir, Renato e tantos outros. É a dialética.

É nessa contradição, entre a arte da rua, com o jogo sendo puro prazer, e o espetáculo montado para uns poucos ganharem dinheiro, que seguimos. Nesse sentido, parece muito importante compreender o caldo onde estamos metidos quando falamos de futebol. Não é só esse espaço de amor intraduzível que nos toma de paixão. É também campo de luta de classe e de confrontação com o sistema capitalista que oprime e exclui. 

Assim, por compreender todo o jogo político e de poder que se mistura ao esporte, é que fiz coro ao grito de "não vai ter Copa" que tomou o país quando começaram as obras faraônicas e inúteis dos estádios novos, financiadas com dinheiro público para que meia dúzia de empresários tenham lucros exorbitantes. Porque, além de o governo permitir que poucos encham os bolsos, ainda é responsável por toda a sorte de destruição da vida que advém dessas. Mortes de operários, remoções forçadas de milhares de famílias, gente que tem suas casas destruídas, que não têm para onde correr, que não recebe uma indenização justa, que não tem chance de discutir uma opção. Tudo feito de forma autoritária e impiedosa, porque é da natureza do sistema capitalista não se importar nenhum pouco com aqueles que explora. Não são pessoas, são números, cifras, entraves, coisas, que podem ser removidas ou eliminadas. Tanto faz.

Não se trata de ser oposição cega à Dilma, à Lula ou ao PT, e muito menos de atuar na lógica da direita - que faria exatamente a mesma coisa que hoje faz o governo do PT. É uma posição clara diante do que representa para a maioria das gentes essa "festa do futebol". A festa mesmo será apenas para muito poucos. Os turistas que podem pagar os preços exorbitantes dos ingressos, as grandes redes de hotéis e restaurantes e principalmente as grandes empresas transnacionais que "patrocinam" o evento. Afinal, por força de lei, apenas os seus produtos poderão ser comercializados. Nem mesmo os ambulantes, que acabam pegando carona nos grandes eventos, com seus badulaques falsificados, poderão comer as migalhas desse banquete. Conforme a Lei da Copa, se forem pegos vendendo coisas nas proximidades dos estádios, serão presos. 

Sempre haverá aqueles que dirão: "melhor, não teremos pobres enchendo o saco na entrada dos estádios". Mas, fatalmente, esses "pobres" saltarão nas suas caras quando menos esperarem, porque afinal, os estádios podem ser uma bolha protegida, mas a vida não é. E a violência que hoje se mostra quase endêmica não brota do nada. Ela é fruto do processo de exclusão e desumanização promovido pelo capital. Sabe-se que há uma camada até significativa da população que acredita piamente nas benesses que a Copa vai trazer. Confia nas mensagens de propaganda sobre melhorias nos transportes ou em outras questões estruturais. Mas, aqueles que sabem, que conhecem a raiz dos eventos e sua origem, não podem dar-se ao luxo do engano, ou da visão ingênua. Por isso dizem "não vai ter Copa".

É certo que os movimentos contrários ao evento não lograram vencer a batalha de ideias, afinal, a ideologia vomitada pelos meios de comunicação acabou prevalecendo. Assim, é certo também que os jogos vão acontecer, ainda que certamente cercados de protestos, lutas, prisões, violências, como soe acontecer quando o poder decide solapar a crítica. Porque a responsabilidade daqueles que sabem assoma, a despeito das ameaças de, inclusive, enquadrar os que ousarem lutar em lei de segurança nacional, como terrorista.

Então, para aqueles que, sem argumento, preferem enxovalhar os que lutam com comentários do tipo: "são contra a Copa, mas vão ver os jogos", "são do contra, mas vão torcer para o Brasil", tenho a obrigação de dizer que precisam se informar melhor sobre o tema. Ser contra os gastos públicos exagerados, contra o domínio das multinacionais, contra o evento caça níquel, contra os novos senhores de escravos, ou contra os figurões da Fifa, não tira de nós o amor que constituímos pela arte do futebol. Uma coisa não tem nada a ver com a outra e só usa esse tipo de argumento quem não quer ver a realidade.

O esporte, seja ele o futebol, ou outro qualquer, está para além dos jogos vorazes do capital. A alegria do jogo, a festa dos corpos brincantes ultrapassa a dominação a qual os cartolas e políticos insistem em impor. E desses corpos em festa sempre há de escapar a flor deliciosa do prazer que se esconde no drible perfeito,  no gol de placa. E, nessa hora, vamos vibrar, sim. A diferença é que a gente sabe muito bem o que tudo aquilo significa, qual aparato está montado e a quem serve, em última instância.

Nos dias da Copa vamos ver, sem dúvidas, toda essa nossa gente sofrida, excluída do banquete, espremida em frente às lojas que apresentarem grandes televisores, vibrando pela seleção do Brasil. Mas, não se iludam. Mesmo aqueles que não sabem, na sua pureza, vibram pela beleza do jogo. E, apesar de estarem mergulhados até o pescoço na armadilha do capital, haverão de encontrar - alguns - o caminho de saída. A Copa é só mais uma batalha ideológica do  sistema que nos oprime. Outras virão. Seguiremos lutando, engordando os batalhões...


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Um tempo, em Caxias

Dalva Tomazzoni 

Era 1982, e eu vivia em uma velha casa de madeira, verde e amarela, na Avenida Itália, perto da igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul. A casa era tão antiga – há anos condenada - que pendia para um lado. Mas, teimosa, não caia. Quando assomávamos à janela, as pessoas nos viam tortos também. Era engraçado. Ali vivenciamos dias de profunda alegria e comunhão, apesar dos apertos financeiros. Naquele então morava com meus tios, avó e primos. Foi quando iniciei meu caminho na televisão, trabalhando na TV Caxias, como repórter.

No final de semana era de lei passarmos a noite de sábado acordados, vendo filmes na televisão. Enquanto a noite avançava e a gente se embolava nos cobertores, em camas feitas no chão, a tia Dalva circulava pela casa, enredada em baldes, rodos, panos e sabão. Sua hora de faxina era aquela, na madrugada, enquanto nós curtíamos o Corujão. Vez em quando o barulho da limpeza parava e só escutávamos o estalar das pipocas. Nos entreolhávamos e sorríamos. Não demorava muito e lá vinham os pirex lotados de branquinhas, que consumíamos como lobos. Quando a rabeirinha do sol começava a sair era a hora de a gente desligar a TV e dormir o sono dos justos, embalados pelo bate-bate da tia, limpando. Aquela mulher tinha o dom de fazer tudo parecer bonito, mesmo nos momentos de maior tensão ou dor. Era mágica.

Nos dias de semana, o almoço era sempre em família. Os guris, Kiko e Xará, chegavam da escola e eu do trabalho. Magicamente a comida aparecia, embora ninguém visse a tia cozinhar. De novo, o mistério. Em poucos minutos, brotavam coisas do fogão, dos armários, tudo se ajeitava e, enquanto os pratos eram postos, alguém começava a batucar. Um faca tocando no prato, uma colher batendo em outra colher, as tampas de panela virando pandeiros, o tio agarrado ao violão e, num repente, começávamos a cantar. A música enchia a casa, o pátio, a rua.  Se demorasse, os guris pegavam os trompetes e a algaravia ficava ainda maior. As donas da casa, duas senhoras bem velhinhas, que moravam ao lado, botavam a cara na janela que dava para a nossa cozinha e sorriam, acenando. Aquelas duas casinhas de madeira antiga da Avenida Itália exalavam cheiro de comida caseira e bem-aventuranças.

Nas noites de sexta-feira era a vez de chegarem os amigos da vó. Todos jogadores de pife. Vinham com seus casacões, garrafas de café, biscoitos, e varavam a noite na função do carteado. De vez em quando alguém se alterava. “Tão roubando”, mas era tudo troça. As fichas eram feijões e o dinheiro que circulava era pouco. Quando era inverno – e Caxias sabe ser frio – eles enrolavam cobertores nos pés e seguiam o jogo até de manhã.

Naqueles dias dos anos 80 eu tinha pouco mais de 20 anos e começava a encontrar meu caminho na vida. Daí que a casa verde e todo aquele furdunço que era nossa existência entre dificuldades e risadas, acabou sendo fundamental para eu aprender a mesclar aperto com beleza. O companheirismo, a solidariedade, a compaixão, a delicadeza, a alegria, o cuidado, todas essas pequenas coisas costuradas na grande colcha da vida fizeram profundas marcas em mim. Aquele compartilhar de tanto amor, construíram o que sou.

É por isso que quando bate a tristeza, eu tiro da capa meu velho disco do Tijuana Brass - nosso preferido - boto na vitrola, e , ao primeiro acorde, saio rodopiando pela casa. Num átimo, me transporto para aquela velha morada na Avenida Itália, e posso sentir os corpos brincantes de meus irmãos de alma dançando comigo, rindo alto. Aquilo tudo era tão bom! E também posso ouvir o batucar do balde e minha tia Dalva, com seu riso de cristal.  O mesmo riso que encontro hoje, quando compartilho com ela as delícias de um passeio na Redenção ou de uma boa conversa.

Essa minha tia Dalva, mágica, mãe.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Os Amarildos, firmes!


foto: Celso Martins

Os textos, ditos sagrados, para mim sempre foram metáforas da vida mesma. Um jeito de contar histórias que pudessem ser entendidas pelas pessoas simples. Arquétipos de nós mesmos, de situações históricas, de passagens da vida que sempre se repetem, dando conta de nossa condição humana. Por isso, me encantam, e a eles dispendo tempo. Gosto, particularmente, no novo testamento, das parábolas de Jesus, o jovem galileu, nascido no espaço do que hoje é a Palestina ocupada. Histórico ou não, ele tinha esse dom de falar por metáforas, buscando encontrar o centro do amor humano. Então, é a ele que recorro para pensar meu mundo, nessa segunda-feira gris.

Ontem voltei a ver um velho filme que tocou minha alma na infância: Ben-Hur, com o inesquecível Charlton Heston. É sobre um homem que passa por todas as agruras de um tempo de invasão estrangeira em sua terra, que perde tudo, e que arma toda uma vingança. Mas, tocado pela figura e pelo exemplo de um “ninguém”, um andarilho, um rebelde - o homem que mais tarde veio a saber que era Jesus -  ele volta a ser o que era, generoso e bom, recebendo assim, outras bênçãos. Uma metáfora dentro da metáfora. Só o amor pelo outro – caído - pode salvar a nós mesmos.

Hoje, em Florianópolis, um pequeno grupo de famílias vive a dor de ser ninguém. Rebeldes, andarilhos, sem casa, sem um lugar para descansar a cabeça, eles buscam um lugar para viver. Premidos pelo progresso excludente, que enriquece alguns e empobrece a maioria, eles foram expulsos de suas pequenas ou grandes cidades e saíram atrás de um mero sobreviver. Gente do interior do estado, de outros estados, do interior da ilha, seres humanos querendo também um lugar no grande banquete da vida. Quem não quer?

Outro dia, unidos pelo sonho de ter sua própria casa, eles fizeram o que tantos outros – hoje heróis nacionais – fizeram há muito tempo atrás. Ocuparam terras devolutas, que pertencem à União. Terras abandonadas, sem uso social, e que já estavam sendo rapinadas por alguns espertos. Esses - autoridades, empresários, de ternos bem cortados – nunca foram questionados. Cercaram as terras, forjaram escrituras e bem logo a venderiam para que se transformassem em um campo de golfe, esporte praticado por ricos senhores.  

O que fizeram então os sepulcros caiados (limpos por fora e podres por dentro) - a saber, a mídia e algumas pessoas “de bem”? Tal qual a massa raivosa diante de Pilatos, entre o empresário ladrão e as famílias sem porvir, escolheram o empresário para “libertar”. Já para as famílias empobrecidas, gritavam: “Crucifiquem-nas”. A história se repetindo como uma dolorosa tragédia.  

Retiradas da terra ocupada na beira do Rio Ratones, as famílias da Ocupação Amarildo viveram a sua “paixão”. Casas derrubadas, tralhas recolhidas, foram buscar abrigo em outros espaços. Mas, eram terras de outrem e ali, ninguém queria tirar espaço de ninguém. Seguiram sua via dolorosa, buscando outro recanto de amparo, que fosse público, devoluto, sem ninguém.

Acharam novas terras dentro da ilha da magia, essas, também tomadas desde há séculos por ladrões a soldo da coroa portuguesa. Terras usurpadas de povos indígenas e que, por força de lei de um povo invasor, acabaram se legalizando como de um estado, ou de alguém. E lá se foram os Amarildos, com suas tralhas, seus bichos, crianças e esperanças para o bairro do Rio Vermelho. Ainda um espaço cedido, ainda um lugar não definitivo. Uma passagem, um descanso, até que venha a vitória.

Não imaginavam esses caminhantes, essas almas grávidas de justiça, que ali encontrariam outra vez alguns poucos representantes das famílias “de bem” a levantar os braços, bramindo: “crucifiquem-nas”. Nos olhos inflamados desses “bons cristãos”, um ódio sem medida contra aquilo que desconhecem. Não sabem nada daquelas pessoas, a não ser o que lhes reproduz a mídia e as hipócritas vozes dos fariseus – esses sepulcros caiados. E, tal qual autômatos sem cérebro, incorporam a sentença de que aqueles são bandidos, vagabundos, gente desqualificada, uma ameaça ao seu bem viver.

Hoje, informes de colegas que lá estão dão conta de que alguns moradores do Rio Vermelho estão querendo expulsar, eles mesmos, os Amarildos da comunidade. Não é a polícia, são os moradores. Pessoas ditas “de bem”, que querem garantir “a paz” para suas famílias. Alguns chegaram a verbalizar: “A PM que deixe eles com a gente”. Ou seja, estão dispostos, inclusive, a atos de violência contra uma gente que nem conhecem. De dentro da ocupação, os olhinhos assustados das crianças observam, estupefatos. Que crime cometeram? Por que não podem morar como esses que ali hoje já têm as suas casas? Difícil explicar.

“Eu comprei a minha casa com muito sacrifício. Eles que vão trabalhar!” Essa é a frase mais dita nos comentários dos textos que tratam do tema. Mas como falar do outro sem saber dos dramas que tiveram, e ainda têm, que passar? Como comparar as vidas? E por que não apoiar aqueles que, diante de tanta falta e exclusão, ainda encontram forças para enfrentar batalha tão desigual?

Vejo essas tristes criaturas como aqueles que na velha judeia cuspiram e apedrejaram o galileu, apenas porque assim lhes disseram os sacerdotes. Incapazes de pensar por si mesmo, incapazes do gesto amoroso de amparar o que sofre, incapazes da compaixão. Pessoas tomadas por um ódio cego, insuflado desde fora, que nem mesmo é delas.

Enquanto isso, em algum lugar bem protegido, os que se adonaram da cidade, os que roubaram terras, ou que as compraram a preço de banana de nativos enganados, festejam. Não precisam sequer enviar as tropas policiais. Fizeram o que era preciso. Criaram o ódio aos desgraçados, dividiram os que sofrem dos mesmos infortúnios. Eles agora que se matem. Ao final, sobrará mais para eles mesmos.

Eu, que creio na força das gentes, sei que, como na história do galileu, haverá de chegar a páscoa. A hora do renascer. Ainda que tudo pareça conspirar para o fim, ainda que crucifiquem “os cabeludos rebeldes”, o povo  unido haverá de levar adiante esse sonho. E ele vai vingar.

Amarildos! Firmes!


Joaquim, tu vives!



Joaquim nasceu em família de um abastado proprietário rural, o quarto de nove filhos. Mas, bem cedo perdeu os pais. Tinha onze anos quando se viu órfão. Foi levado por um tio que era dentista e lhe ensinou o ofício.  Também atuou em uma botica que dava assistência para o povo pobre na bonita e próspera Vila Rica. Ali, cuidava de doentes e atendia quem precisasse de um dentista, por isso ganhou o apelido de Tiradentes. Também trabalhou como minerador e conhecia como ninguém o terreno das Gerais. Foi contratado pelo governo para andar nos caminhos levantando a topografia da região. Por conta disso foi vendo a realidade com olhos críticos. Muita riqueza para poucos e tanta pobreza para a maioria. Não foi sem razão que esse homem se integrou ao movimento de luta contra a cobrança de impostos, iniciado por gente da elite de Vila Rica.  

O movimento contra a derrama era também uma luta pela República. Mas, precursores da independência, Joaquim e seus companheiros foram traídos, como soe ocorrer quase sempre. Presos como inconfidentes, traidores da coroa, apenas ele foi condenado à força.   Não tinha nome de família “de bem”, não tinha posses. Seu único erro foi acreditar que, unido com a elite local, poderia trazer coisas boas para sua Vila Rica. Não conseguiu, e acabou preso com todos os inconfidentes. Os filhos da classe dominante receberam perdão da rainha Maria I e foram condenados ao degredo. Sobrou Joaquim, o sem lugar, sem família, o que não pertendcia à maçonaria, o que não tinha nada além dos sonhos de liberdade e de vida boa para sua gente. Ele foi usado com um exemplo pela monarquia. Seguiu, condenado, em procissão pelas ruas de Vila Rica. Foi montado um “espetáculo” que durou 18 horas.

Assim foi o suplício do jovem Tiradentes, o alferes, o conhecedor de caminhos. Ele acabou enforcado e sua cabeça pendurada na entrada da Vila. Toda sua geração foi amaldiçoada. Seu corpo esquartejado foi jogado pelos caminhos e sua casa foi salgada para que lá, nada mais nascesse.

Ah, esses carrascos das gentes livres, Quão estúpidos são! O sangue de Tiradentes regou novas lutas, novos desejos de libertação. Até que, enfim, veio a República.

Mas, a República não mudou nada, ainda... E, nos caminhos de Minas ainda reverbera aquela ideia de justiça, de vida plena para a maioria. Joaquim vive na luta do povo pobre dos morros de Belo Horizonte, da Rocinha, da Maré, da ocupação Telerj. Joaquim vive bem aqui, na Ocupação Amarildo, na aldeia Itaty, nas ruas da cidade, onde outros homens e mulheres sonham com a libertação.

Joaquim, te recordo, com amor e com ódio. Amor pela proposta de vida livre que ousaste defender e ódio aos vilões do amor que te mataram!!! Por aqui, seguimos... Como tu... Sem posses, sem nada, apenas com nossos “corpos nus”, como diria Faermann.


Seguimos morrendo, mas tu vives para sempre! Assim como essa “imorrível” ideia de vida boa e bonita para todas as gentes...