sábado, 5 de maio de 2012

A mulher...ouvindo estrelas...


Jurara nunca mais beber. Não queria mais o mundo girando, girando, a boca solta, os pés trôpegos, a mente em voo livre. Haveria de ficar no chão. Desde pequena lhe diziam que andar pelo caminho das estrelas era coisa de louco. Ela tentara fugir. Não conseguira. Aos sete anos vira seu primeiro disco voador. Ninguém acreditara. Mas, na noite escura, lá estava ele. E mesmo quando no entardecer de um quente verão, quando todos viram aquele grande charuto cheio de janelas passando devagar, insistiram em negar. Ela ficara sozinha, olhando a coisa sumir no horizonte, rezando para que dali saísse um raio de luz e a levasse para sabe-se lá onde.

Sumida entre livros de Asimov e revistas que falavam sobre UFOS ela passou a infância e a adolescência. Eram seus amigos mais leais. Perry Rodan e suas peripécias, capitão Kirk, Spock, as mais incríveis criaturas dos planetas mais distantes. Eram suas redes a embalar a solidão e a incompreensão para as coisas do mundo “normal”. Mas, nesse mundo secreto não havia tristezas. Só esperanças de que um dia o mundo pudesse ser, de fato, habitável aos seres sensíveis capazes de falar com e ouvir estrelas, tal como dizia Bilac.

O tempo passou, a guria cresceu, o disco não veio, o mundo estragou. Tempos de rede não se prestam a solidões. Os edifícios escondem o céu, as estrelas sumiram, não falam mais. As palavras desconexas que reverberam na cabeça ninguém mais sabe dizer de onde vem. “Essa aí nunca foi normal”, dizem as vizinhas. E ela sorri, agradecida. Nunca quisera a normalidade de um mundo em escombros.

O cabelo embranqueceu, mas as velhas revistas seguem na cabeceira. As aventuras de Rodan para salvar a Terra ainda povoam seu mundo de teias de aranha. Quando é de noite, e todos dormem, ela sai pela rua a quebrar lâmpadas – única forma de ver o céu numa cidade feérica. Até ontem a acompanhava um garrafa de vodka, da boa. Por algum motivo desconhecido ela se acercara mais do que a pinga local. Talvez pela sonoridade. VOD-KA. Palavra doida, estranha, sensual.

Mas agora decidira. Por todos os deuses do Tahuantinsuyo. Não mais emborcaria o líquido quente e queimador. Haveria de saltitar pela rua como sempre fizera, mas o faria de cara. Já não tinha mais medo de não ser normal. Tomaria, como Raul, todos os banhos de chapéu. E falaria com os sleestaks, os vulcanos, encontraria mestre Ioda, voaria na Milenium Falcon. Cometeria todas as loucuras. Quem nesse mundo pode se arvorar em dizer o que é certo? Como podem impedir um ser de ouvir estrelas e dançar nas estradas de areia?

Nessa manhã ninguém estranhou quando ela saiu feito uma guerreira klingon, toda pintada. Deixara a casa arrumada, ajeitara o quintal. Na rua adormecida, jamais se poderia supor o caminho empreendido. Subiu devagar o morro do lampião, piou com os passarinhos, grunhiu com os bugios. Tomou banho de cachoeira e se deitou nua na relva verdinha. Decidiu esperar pelo raio. E ele veio, ao fim da tarde, quando as formigas já faziam caminho pelo corpo branquinho. Contam que ela foi levada por algum disco voador, e é bem possível. Nunca mais foi vista. O certo é que lá para os lados do lampião, há uma estranha árvore, com formas de mulher, que parece sorrir. Tem gente que jura que é ela e que em noites de lua clara, as bruxas cantam e dançam no lugar. Outros há que juram vê-la nas noites escurar a quebrar as lâmpadas, cantando canções sertanejas. Vai saber!...



sexta-feira, 4 de maio de 2012

Primeiro de maio no Campeche


Quando chega maio, o Campeche se prepara. Friozinho, vento suli, é chegada a hora da tainha. Nessa comunidade do sul do Miembipe, o peixe é, mais do que alimento, cultura. Por ali assomam as canoas que saem para o mar em busca do sustento e o tempo da tainha vira tempo de festa. Os peixes chegam aos milhares, e a praia se enche de gente e bicho numa alegre algaravia.

Assim, como também é uma comunidade de fé, o Campeche instituiu, bem no dia do trabalhador, primeiro de maio, o dia de rezar pela boa pesca. Então, no feriado, cedinho, as gentes se reúnem na praia para pedir proteção e peixe aos montões. Todo ano é assim. Um altar é montado na praia, onde acontece a missa.

Nessa hora a comunidade consegue, de alguma forma, juntar todas as forças, ainda que antagônicas, numa mesma vibração. Ali estão os lutadores sociais, os indiferentes, os bajuladores e os crentes. Não é hora de divergir, mas de vibrar numa única onda para que venha o peixe e a praia se encha de vida.

Ainda assim, durante a missa, não faltam os desconfortos. No mesmo espaço está o prefeito Dário, que tem ajudado a destruir a comunidade, com as vistas grossas aos empreendimentos ilegais e imorais, e com suas propostas de emissário na praia. Ou ainda a insólita oferenda de um oficial da polícia militar, que colocou diante do altar o cassetete, o mesmo que nos dias de luta cai sobre a cabeça do trabalhador. Mas, apesar dos olhares indignados, ninguém se manifestou. Aquele era um momento de união, coisa rara nas comunidades. “Talvez ele esteja querendo entregar a arma, pedindo que ela não seja usada”, dizia a turma do deixa-disso.

Depois, os pescadores inauguraram, dentro do rancho da canoa, um pequeno altar, onde colocaram, no centro, a figura de São Sebastião, o padroeiro do bairro. E, junto a ele, outros santos de devoção do povo. Afinal, reza e caldo de calinha não faz mal para ninguém.

Depois das bênçãos e desejos de boa pesca foi a vez da banda e Amor à Arte tocar e animar a galera. Música, bolo de fubá, café forte, alegria, pé na areia, cheiro de mar. O primeiro de maio no Campeche, apesar de alguns pesares, é só prazer...


terça-feira, 1 de maio de 2012

Emissário no Campeche, não!



O Campeche decidiu e não havia nada mais a discutir. A obra do emissário não seria feita. Há anos a empresa de saneamento insistia no projeto. Fazer um grande cano levando a bosta da cidade para o mar. E a saída seria ali, nas águas da praia. Mas, a gente do lugar era assim, decidia e fazia cumprir. O prefeito – que nem nascera na cidade – desconhecia aquela força e, sem ligar, mandou a obra seguir. Do nada apareceram operários, máquinas, cimento, tijolos. Surdo aos desejos das gentes ele tocava para frente o emissário. O homem da empresa de saneamento jurava de pés juntos que o esgoto não poluiria a praia. “Vai sair longe, não chegará à margem”. E os repórteres reproduziam à exaustão as mentiras bem armadas. Não seria uma comunidade atrasada que impediria a cidade de se modernizar.

Dentro das casas, o povo esperava. Vez ou outra passava pela obra algum morador, de olhos compridos, espiando. As mulheres ressuscitavam bruxedos e nas noites de lua dançavam na praia, invocando poderes adormecidos. As crianças recolhiam ervas e bichos para as poções de encantamento. As velhas recitavam antigas orações achadas nos baús. Os mais jovens se reuniam na praia e socializavam entre eles os planos que se urdiam nas casas.

Então, numa noite de lua nova, quando a escuridão caia como um manto sobre a cidade, no Campeche não se viu qualquer luz. Escondidas pelo negrume, as pessoas saiam das casas, uma a uma, em direção ao rancho de canoa. Lá dentro os velhos faziam arder o caldeirão e só se ouvia o estalido da madeira, salpicando uma chama bem tímida. O mar se agitava, a maré bem cheia. O vento soprava terral, uivando, feito bicho.

No rancho, as gentes se postavam em roda. Um murmúrio baixinho embalava o girar da colher de pau no caldeirão. As mãos se fechavam umas nas outras, o murmúrio aumentava, e na noite de maio, aquele barulho de vozes humanas se fez ensurdecedor. Era como um vagalhão alucinado invadindo a cidade. Assustador.

Os homens da obra despertaram. O que era? As vozes, os murmúrios alucinantes, o cheiro de jasmim. Saíram para a rua e não viam nada. Era o breu. Lá longe, no mar, parecia assomar uma vaga de água, alguma coisa mais escura do que a própria noite. Os cabelos arrepiaram, o coração parou. “Bem que avisaram que aqui tinha bruxa”, disse um. “Bobagem”, disse outro, enquanto sentia um bafo quente na nuca. A fumaça ou sei lá o quê foi adensando e cobriu a obra, com gente e tudo. A estação de tratamento, quase pronta, sumiu na bruma. Houve barulho de lata, prego, cano. Tudo esboroava. Os trabalhadores amoleceram e perderam os sentidos. Na escuridão do Campeche só a fumaça e o murmúrio eram constantes.

No centro da cidade, o prefeito acordou enregelado. Um aperto no peito, uma sufocação. Levantou e foi tomar água. Espiou pela janela e petrificou. Lá fora, envolta na escuridão, uma mulher bem alta, branca como a lua, olhava para ele com olhos de fogo. Não disse palavra. Apenas o olhar, assustador, felino. O prefeito voltou para a cama como um autômato. Dormiu num segundo.

Quando o dia amanheceu no Campeche já não havia obra. Alguns homens atordoados se perguntavam o que faziam tão longe de casa. As pessoas os acolhiam com um chá quente e logo foram embora, sem saber o que passara. No gabinete do prefeito, quem chegara nem de longe parecia o jovem ariano, pretencioso. Como um zumbi, se debruçou sobre os papéis e começou a babar. Nunca mais foi o mesmo. Vieram médicos, psicólogos e especialistas, sem encontrar cura. O vice, que era filho do lugar, sumiu no mundo. Ninguém mais soube dele. O presidente da companhia de saneamento esqueceu os últimos setes anos e foi viver em um sítio em Antônio Carlos.

Na praia, as pessoas seguiam suas vidinhas. Jogar a canoa no mar, colher o peixe, um violão ao anoitecer, o terno de reis, a bandeira do divino, a festa de são Sebastião, as ruas sem asfalto, as damas-da-noite com seu cheiro doce, o pão-por-deus. O tal emissário que jogaria a bosta da cidade no mar? Nunca mais se ouviu falar. E quando alguém do poder tenta trazer à memória esse “monstro de cocô”, as mulheres se entreolham e balançam a cabeça furtivamente. É quando uma fumaça densa e escura começa a se formar... Ninguém brinca com o povo do Campeche, não... Ah, não...!

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Domingo de encontros, memórias e risos



O frio chegou à galope em Passo Fundo, trazendo a chuva na garupa. O dia se anunciava emburrado e gris. Mas, aquele não seria um domingo qualquer. Então, a realidade haveria de mudar. De vários cantos do estado e até de outros pagos viriam pessoas para um encontro a muito esperado. Reunião das gentes que um dia fizeram a história da velha TV Umbu, primeira emissora de televisão da cidade. Foi uma ideia boa que surgiu do encontro de vários de pessoas no malfadado facebook. Uma foto trocada ali, outra aqui, e todos começaram a se achar. Um bocado de gente que já havia passado pelo histórico prédio da Umbu, solitário no alto do morro. Ali, as mais variadas profissões se juntaram para fazer real um sonho: colocar no ar a vida da cidade. Pelo menos três gerações passaram pela emissora e, de uma maneira ou de outra, todos estavam ligados pela mesma força. Mesmo os que não se conheciam, sabiam um do outro. Era o destino que todos se encontrassem. Maktub!

Das profundezas do éter, Carlos Alejandro, Raimundo, Ivandro e Gilmar despertaram as memórias. Um grupo foi criado e aqueles que um dia compartilharam o mesmo espaço de trabalho foram se encontrando. Dali para a proposta de um encontro real foi um pulo e tudo começou a se organizar. Alexandre, Miguel, Bozó, Raimundo e Gilmar foram amarrando os fios. O dia foi marcado. Seria em Passo Fundo, no 29 de abril. Os dias foram passando num frisson. Alguns companheiros não se viam desde há 30 anos, outros 25. Uma grande lacuna de tempo ansiava por se fechar.

E foi assim que se chegou ao momento esperado, que agora se mostrava assim, lúgubre, friorento, chuvoso. Eu, Deusa, Gilmar e Rosângela fomos os primeiros a chegar. Não havia ninguém. A chuva cai fininha. “Não virão!”, pensávamos, olhando, desenxabidos, a imensidão da sede do Caixeral. Então, rompendo a neblina, foram chegando, os carros, as gentes, as cores. O lugar se encheu de risos e do som dos abraços, cheios de apertos, bem gaúchos. As pessoas se olhavam, embevecidas, observando cada ruga, cada mudança feita pelo tempo. Lembravam com saudade dos que já se foram. Foi bonito de ver. Trinta anos se desfizeram no pó. Só emergiam as lembranças boas, dos dias de profunda azáfama, nas lides do trabalho para colocar no ar uma rádio e uma televisão. Estavam quase todos ali, desde os mais antigos aos da mais nova geração. Entre os beijos e os abraços foram brotando as histórias dos tempos dos desbravadores. E o dia, pasmem, foi se abrindo, como se não pudesse mais negar o raio do sol àquele povo. A luz se fez, o frio se espantou e saiu de fininho.

Das retinas do tempo vieram os causos: a lembrança do seu Ângelo, a pitar o palheiro e tomar a sua canha enquanto fingia tomar conta do prédio, o Ubaldo e sua solidão, o seu Ivo e o trinta e oito, as gurias, os namoros, os desafios, as invenções. Fazer televisão nos anos 70 e 80 era um milagre, ainda mais no interior. Sem as condições tecnológicas, só restava usar a criatividade das gentes. E isso não faltava. Improvisava-se e fazia-se. Nada era empecilho. As primeiras externas, os primeiros vídeo-clips, os efeitos especiais, tudo fruto do gênio de alguns daqueles malucos. As aventuras da reportagem, as festas.

E o que era esperado se fez. O domingo passou entre cervejas, abraços e velhas histórias que os mais novos, filhos dos dias atuais, sorviam com inveja. “Queria ter vivido isso!” Nem o gre-nal visto em um grande telão tirou a alegria, apesar da divisão entre colorados e azuis. Ali eram todos amigos, filhos de uma mesma mãe: essa danada vontade de fazer com bossa o trabalho que era a nossa vida.

A TV Umbu marcou época, fez história e serviu de trilha por onde passamos todos nós, os que nos encontramos e os que não puderam chegar. Ali aprendemos, crescemos, experimentamos, amamos, lutamos. E o encontro de toda essa gente só deixou uma certeza: para além de todas as coisas, ali fortalecemos amizades de toda uma vida. A TV Umbu, que nos dias de minuano parecia tão solidária no alto do morro, foi o criadouro de mentes férteis e corações alados. E, dentro dela, como se fora um imenso formigueiro, estávamos nós, a produzir a beleza, a música, a imagem, a informação.

Quando a noite se fez e só restaram os últimos moicanos (coincidentemente sempre os mesmos), as estrelas fecharam o testemunho de um momento mágico. A vida e seu perpétuo movimento... Mas, não uma vida qualquer. A vida dos homens e das mulheres que subiram o morro e ousaram criar um tempo de claridade. Que se fez bonito e deixou marcas indeléveis.

O domingo que passamos juntos foi um dia doce, que se acabou de mansinho, grávido de outros desses, que virão. E, enquanto o último carro descia a ladeira, quase era possível ver, no portão que se fechava, a figura única do seu Ângelo, palheiro na boca, abanando a mão, como fazia sempre nos portões da Umbu. Um abano que nunca era adeus... Era até logo... até logo... até logo!