A vida da gente é feita de escolhas. Elas definem nosso caminho. Meu pai me chegou há cinco anos com diagnóstico de Alzheimer. Estava fraquinho, não conseguia andar muito menos pegar os talheres para comer. Foi como um furacão em casa, pois tudo teve que começar a ser ajeitado para suas necessidades. Eu nada sabia de Alzheimer ou cuidado com pessoas dementes. Haveria de aprender no corpo-a-corpo com a realidade. Nos primeiros meses foi difícil demais, mas, com o andar da carruagem a gente vai se adaptando.
A primeira batalha foi com os remédios. Que fazer para segurar as crises de violência, os gritos na madrugada, as alucinações, o desespero da fuga, a insônia permanente? A única coisa que consegui pensar foi em médico e remédio. E fui à luta. Na parceria com o médico começamos a experimentar algumas medicações. Mas, cada remédio dado, pioravam as crises. Houve um dia em que ele quase arrancou o portão da casa, aos gritos de socorro, pela madrugada adentro. Desses remédios que se usam para o Alzheimer, usei todos, mas como piorava eu tirava.
Até que decidi não transformar mais o meu pai num campo de testes. Escolhi cuidar sem remédio. Iria aguentar as crises apenas no osso do peito. Durante o dia, uma gota de canabidiol, que não é remédio, é vida. E quando a ansiedade ficava muita, um cigarro, dos mais fortes, pois a nicotina, me ensinou um médico, é forte calmante nessas situações. Assim temos caminhado nesses anos.
Alucinações o pai não tem mais e tampouco crises de violência ou tentativas de fuga. Consegui estabelecer uma rotina durante a noite, com a qual consigo fazer com que ele durma algumas horas. Bom, e qual é preço disso? Cuidado 24 horas. Definitivamente o que substitui os remédios é a presença, a atenção, o cuidado, as coisas que fazemos juntos. O dia inteiro inventando coisas. Isso obviamente cobra um tempo danado da gente, e praticamente toda a vida que a gente tinha deixa de existir - só há um hiato para o trabalho, ainda necessário. De resto, os dias são passados em função dele, pois se a atenção não chega, o bicho pega.
Entendi que esse caminho é bastante duro para o cuidador porque exige atenção integral, entrega total. É dureza. Não são todos os que podem fazer isso. Algumas pessoas até têm sucesso com a medicação. Mas eu preferi desistir. Como o pai tem saúde de ferro não há sequer outros medicamentos para atrapalhar. O único remédio que ele toma é o da pressão que o médico disse que não é bom parar. Como é só um, fica bem fácil administrar.
O resultado dessa escolha é ver o pai bem de boa, fazendo suas pequenas loucurinhas como colocar coisas no vaso do banheiro, comer todas as bananas da fruteira, mexericar no armário de comida, espiar no portão conversando com algum amigo imaginário. Ele não fica irritado, não fica violento, não fica ansioso. Só perde a tramontana na hora de trocar de roupa. Não gosta que lhe baixem as calças. Mas, com paciência, tudo dá certo. Também não gosta de banho e o jeito é levar ele para o box, com roupa e tudo e ir molhando devagar. Conforme a roupa vai molhando, ele mesmo vai tirando. É bem engraçado. Lógico que é uma operação demorada, mas temos todo o tempo do mundo.
Depois, é ficar com ele no alpendre vendo os passarinhos, os gatos, os cachorros, ouvindo música, tomando uma cervejinha. É pesado pra mim, mas essas cenas do cotidiano, valem toda a pena. Como hoje, depois do banho, ele dormitando à sombra, com o gatinho a lhe lamber a mão. Nenhuma rugosidade na sua adorável vida. Só o passar das horas. Por vezes conversamos, bastante tempo, numa língua estranha. Mas, nos entendemos.
Tudo o que eu queria era que as pessoas pudessem ter esse tempo para cuidar de seus velhos. Pois, com certeza, isso lhes dá um final de vida sereno, cheio de alegria e dignidade. Coisa que eles merecem depois de tanta vida de trabalho. Não é fácil, mas, vale a pena.