Um texto e um vídeo sobre a Ocupação Amarildo, divulgado nas redes
sociais, fizeram assomar uma série de pensamentos que provocaram intensas e
variadas emoções. Um deles dizia: “Querem tomar chimarrão? Vão trabalhar!”.
Ora, uma pessoa não pode querer tomar chimarrão? “Eles têm carro, não podem ser
pobres”. Ora, um pessoa empobrecida não pode ter um carro e ainda assim não ter
onde morar? Acaso o carro não seria um instrumento de trabalho? Outra pessoa
chegou a escrever que os pobres quererem morar na ilha era um tremendo
contrassenso e que a ilha deve ser dos ricos mesmos. “Afinal, aqui é um paraíso”.
Ou seja: se é paraíso só deve estar disponível a quem tem muito dinheiro para
desfrutar.
Não quero aqui difundir certezas, muito menos dizer que o mundo com o
qual eu sonho seja o mais certo e que todas essas pessoas que odeiam os pobres
estão equivocadas. Até porque não acredito que estejam. Elas talvez só consigam
verbalizar aquilo que o mundo construído por elas ao longo de suas histórias
permitiu. Apenas quero ter o direito de discordar. De dizer que não me agradam
nenhum pouco essas posições.
Nesse sentido não venho trazer a verdade sobre o tema. Apenas gostaria
de elencar alguns elementos sobre uma forma de ver o mundo com a qual eu
compartilho e que mais me agrada. É o meu caminho explicativo para as coisas, e
não quer dizer que seja “o” caminho. De qualquer maneira é de minha completa
responsabilidade.
Compartilho de uma antiga emoção que, segundo o biólogo Humberto Maturana,
é constitutiva da raça: o amor. Mas não essa babaquice do amor sentimento, esse
no qual um se julga dono do outro, capaz até de matar para manter o que pensa
ser seu. Não, falo do amor biológico, esse que permite que a vida exista.
Desde o princípio dos tempos da história humana, foi o amor – a aceitação
do outro como legítimo outro na convivência – que permitiu à raça humana o
caminho em direção ao que somos. Os grupos cooperam, unem-se solidariamente
para caçar, para plantar, para proteger as crias, para construir uma
comunidade. Assim, o amor não é um
fenômeno cultural, mas biológico. Sem ele, a raça se esvai.
Mas, com o passar do tempo, os humanos, por uma série de motivos, foram esquecendo
essa emoção e acreditando que, na vida, o que vale é a competição. A vitória do
mais apto, do mais forte. Daí que vivem
o tempo todo disputando poderes, espaços e ideias em vez de seguir o curso
normal da vida que é a cooperação. Por isso, não é sem razão que muitas pessoas
acreditam que os pobres são pobres porque não se esforçam o suficiente. Ou
porque são incapazes de vencer as batalhas da vida. Não conseguem enxergar para
além da janela e perceber como funciona a sociedade, na qual o pobre é, na
verdade, empobrecido pelas circunstâncias impostas por um sistema de exploração.
Talvez essas pessoas não consigam mesmo ultrapassar os limites do seu mundo,
logo, sua linguagem (preconceituosos e racista) tampouco possa ser diferente. São criaturas limitadas pela sua estrutura.
A forma capitalista de organizar o mundo aposta todas as suas fichas na
competição. Tudo diz respeito a eliminar o outro. O outro vira inimigo e não
mais aquele com o qual se pode construir algo, ainda que haja divergências. E essa
competição é completamente inumana, porque supõe que quando um ganha, o outro
não pode obter o que se ganhou. É a exclusão. É algo abissalmente diferente do
que a raça vem experimentando desde a 3,5 bilhões de anos, ou seja, a
coexistência amorosa, o cuidado com outro, a solidariedade.
Penso que nada do que se diga sobre essas famílias que hoje ocupam o
terreno próximo ao Rio Ratones possa mudar a opinião das pessoas que já estão
contaminadas por essa maneira de pensar que dá luz à exclusão, à discriminação
e ao racismo. A dor de uma mãe que tem de deixar sua filha de cinco anos
sozinha em casa, o desespero de um homem que não pode mais tomar o seu
chimarrão (elemento constitutivo de seu ser), ou o horror de um pai que não
pode colocar comida na boca dos seus filhos, não as toca. Porque não são
capazes de ver o outro como alguém que é seu igual, que é real na convivência.
Para elas, essas famílias, essas pessoas que lutam por um lugar no “paraíso”,
são apenas “perturbações” do ambiente. Coisas. Logo, passíveis de serem
eliminadas, como se estivessem num “big-brother” particular.
Poderíamos apelar aos direitos humanos, aos bons sentimentos, a uma
ética universal. Mas, nada disso adiantaria, porque essas pessoas estão
mergulhadas em emoções que constituem a sua forma de ser no mundo. E essas
emoções – nascidas desde uma práxis discriminatória que lhes é estrutural – não
permitem outra racionalidade que não essas:
“são pobres, são bandidos potenciais, logo, devem ser eliminados”.
Bueno, e se é assim, que fazer? Cabe a nós seguir anunciando esse mundo
antigo – esquecido – da existência no amor. O outro - caído, vitimizado,
sofrido, oprimido – é real. Faz parte da raça, espera por nossa solidariedade.
A mesma que assoma em casos extremos como quando há um desastre natural. Mesmo as
pessoas mais empedernidas se dispõe a doar um saco de arroz. Porque esse é
elemento constitutivo do humano: o amor. Então, se ele aparece, assim, nessas horas “noas”,
porque não poderia voltar a ser o que nos governa a todos?
Mas, enquanto isso não acontece a gente se junta a outros seres humanos
que têm o mesmo projeto de vida, a mesma forma amorosa de aceitar o outro como legítimo
outro na caminhada da vida. E, assim como aqueles que pensam diferente, também nós
temos todo o direito de acreditar nessa forma cooperativa de vida, na qual a
pobreza, a opressão, a exploração, são situações a serem superadas de maneira
conjunta. Um ajudando o outro. É nosso modo de atuar no mundo. O modo que
escolhemos. Participamos todos daquilo que Maturana chama de “conspiração
ontológica”, que é a liberdade de ação que se conquista ao compartilhar um
desejo que serve de referência para guiar o agir de outros companheiros que conosco
convivem.
Eu respeito todos os comentários, mesmo os mais terríveis, mas
reivindico o direito de não concordar com os que insistem em tornar os pobres
os culpados por suas dores. E, desde aí, finco pé na luta por esse mundo com o
qual não apenas sonho, mas que, passo a passo, na comunhão com outros iguais a
mim, vou construindo.
Toda solidariedade ao povo que hoje luta por moradia na ocupação Amarildo.
Somos cúmplices nessa esperança!