quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Eu gosto do natal

Foto: um guri palestino - Karine Garcêz

Gosto de esperar o menininho fazendo meus rituais. Ver dezenas de filmes de natal, colocar o sapatinho na janela para os presentes espirituais, estender o capim para o burrinho comer enquanto espera o menino que vem para brincar comigo, montar o presépio, enfeitar a árvore. Tudo coisas simples, mas que me dão felicidade. Aprendi tudo isso com minha mãe, que era bem católica e tinha apreço por esses momentos de celebração do aniversário de Jesus. Nada de presentes, compras, grande comidas. Só a espera, carregada de ternura, pela hora do advento. Quando muito uma cerveja bem gelada, que ninguém é de ferro. Prefiro passar a meia-noite em solidão, sem alardes, enquanto nas demais casas as pessoas se empanturram. Eu não. Eu canto.

No geral, a noite de natal sempre é noite de paz. A meia-noite o pai já dormiu, o companheiro já foi brindar com a família, o sobrinho saiu com a namorada. Tudo é silêncio. Eu, os gatos, os cachorros, a cerveja. Celebrar mesmo, em família, a gente curte no almoço do dia 25. O momento do nascimento do menininho pede essa calmaria.

Esse ano, não sei, creio que vai ser um natal bem triste. Afinal, foi um ano em que muita gente ruim fez coisas ruins em nome do meu deusinho. Imagino que nós dois estaremos no alpendre, acabrunhados, sentindo aquele sentimento ruim, de impotência e de raiva. É certo que sempre teve gente ruim usando o nome de deus para justificar seus horrores, mas esse ano parece que foi mais, e a ruindade esteve bem mais próxima. Já posso até ver a carinha do meu menino, com seus olhos graúdos, marejados. Ele que veio para firmar uma nova aliança, baseada no mais profundo amor, vendo seu nome usado para o mal. Acho que não brincaremos, nem daremos gostosas gargalhadas. Acho que ficaremos abraçados, quietos, coração com coração. “Não tenho poder”, ele vai dizer, como sempre disse. E eu responderei: “Eu sei, eu sei”.

E quando a barra do dia surgir e ele tiver de ir, não daremos cambalhotas, nem faremos currupiu entre gritos de alegria. Soltaremos o abraço bem devagar e choraremos. Ele subirá no burrinho e seguirá o caminho para o infinito e eu ficarei, impávida, no portão. Ele acenará tristonho e eu gritarei: “Tranquilo, vamos enfrentar com brio, como tem de ser”. Um dia, menininho, esse mundo vai ser todo de amor, quando a propriedade for comum e o trabalho for para a vida. A gente vai chegar lá.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O centro



Quem me conhece sabe da paixão que tenho pelo centro. Percorrer aquelas ruelas é minha terapia de todo dia. Meu corpo anda automaticamente pelos caminhos tantas vezes percorridos e meu coração saltita todas as repetidas vezes, como se fosse a primeira vez. Conheço cada detalhe, cada cheiro e cada rosto dos que, como eu, também costumam andar ali. Tenho particular amor pela Conselheiro Mafra. É o meu encanto.

Por ali flano como se estivesse na minha própria casa e sei de todos os personagens que fazem daquela rua seu lar, os quais cumprimento com um sorriso, ainda que só eventualmente tenhamos nos falado: as prostitutas, os vendedores haitianos, os equatorianos, os africanos, as senhoras que vendem panos de prato, as que vendem meia, os que vendem agulha pra fogão à gás, os que consertam relógio, os que afiam tesoura, os vendedores de pipoca, os vendedores de água de coco, de caldo de cana. Minha família estendida.

Outra rua que me enternece é a Francisco Tolentino. Gosto de andar por ela nas tardes de calor entrando naquelas lojinhas de maravilhas que vendem toda a sorte de coisas, bem como nas lojas de roupa barata e as de calçado ruim. Posso ficar por horas escolhendo parafusos, ou peças estranhas de fogão, ou pegadores de armários, ou saias indianas falsificadas, ou bichinhos de pelúcia. E, antes de ir embora, tomar um cafezinho nas lanchonetes mocozadas com cheiro de fritura.

O centro é pura vida! Sem ele não existo. Se um dia eu morrer, e vou, com certeza minha alma errante ficará saracoteado por ali, como a do Mosquito (Hamilton Alexandre), o qual vejo sempre nas imediações do mercado público. Hoje mesmo o vi, rápido, com o computador na mão, passando ligeiro na Jerônimo Coelho. Olhamos um para o outro, almas irmãs, sorrimos, nos abraçamos longamente e seguimos, mergulhados na nossa paixão por essa cidade.