sábado, 18 de novembro de 2017

Das pequenas delicadezas



Meu amigo Nildo tem uma expressão que ele aprendeu no México que é “ningunear”. Significa tu não dar importância àqueles que estão contigo, por perto. Ningunear, tornar ninguém. Isso é muito comum entre a gente. Geralmente tecemos loas para pessoas que estão distantes, famosas, midiáticas, enquanto temos ao nosso lado criaturas igualmente valorosas. Por isso tenho como prática viver homenageando as pessoas que estão perto de mim. Pessoas que amo, respeito e admiro. 

E das coisas bonitas que já vivi nessa minha larga vida de jornalista, guardo sempre com mais carinho as homenagens dos “meus”. Hoje, limpando o altar dos meus afetos, deparei-me com esse singelo regalo: o “Prêmio Volodia Teitelboim” que recebi dos meus amigos queridos do Portal Desacato, num dos primeiros Cafés Anti-coloniais promovidos por eles. Uma adorável caixinha de madeira com um pequeno pergaminho dentro. Uma pequena preciosidade. Ah, mas aí não vale. São teus amigos. Sim, são meus amigos, e por isso vale tanto. Porque eles me conhecem e, mesmo estando tão perto, me reconhecem. É bom ser homenageada por aqueles a quem amamos. 

Esses amigos queridos já ultrapassam uma década com essa proposta bonita do Desacato. Eu também os reconheço e agradeço todos os dias pelo valoroso trabalho que desenvolvem junto aos trabalhadores e trabalhadoras. Viva o Desacato, vivam todos esses companheiros e companheiras – velhos e novos – que fazem o jornalismo florescer! 


quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Nossos velhos precisam de nós


Fumando um charuto, no dia do aniversário do Che

Como diz o Ziraldo, a velhice acontece assim, de repente.  A pessoa está bem , fazendo coisas, controlando a vida, quando então, algo acontece. Com meu pai foi assim. Um dia, minha irmã o surpreendeu rasgando alguns documentos. Coisa que ele fazia cotidianamente, colocando fora os documentos já velhos, para não juntar lixo. Mas, entre os documentos rasgados, estava a escritura do único bem que ele tem: sua casa. Algo não estava normal. Pouco depois percebemos que ele estava descontrolado nos gastos, contraindo dívidas com o banco. Mais um sobressalto. Sua memória falhava e ele foi definhando. Completara 85 anos.

Levamos no médico e o diagnóstico foi Alzheimer. Prescreveu remédios fortíssimo que o tornaram um zumbi. Não andava e em pouco tempo já não conseguia nem pegar os talheres para comer. Aquilo não estava certo. Por sorte, na intuição, minha irmã suspendeu o remédio.

Foi quando decidi trazê-lo para morar comigo. Minha irmã mora no campo, sem qualquer condição estrutural de cuidar de uma pessoa idosa e doente.

Em Florianópolis consultei um jovem médico, Henrique Passos, desses, preciosos e necessários, que pensam no ser humano e não na doença. E do saco de remédios que ele trouxera, sobrou só um: o da pressão. A nova prescrição foi cuidado, atenção, conversas, passeios, estímulo artístico, interação social, alimentação saudável e balanceada. Tudo foi sendo cumprido e ele renasceu.

Ontem, lendo sobre a situação de João Gilberto, me dei conta do quanto a relação com os velhos precisa mudar. Eles definitivamente não podem ficar sozinhos. Não por um imperativo moral, mas por responsabilidade ética. A velhice tem outro ritmo, outras necessidades, outro ethos. E, a única maneira de manter a sanidade e a alegria por estar vivo é estar cercado de pessoas que lhes prestam atenção e garantem uma relação de amizade, de parceria, de companheirismo.

Há um momento em que a memória recente se vai, que as mãos ficam trêmulas, a capacidade de tomar decisões fica confusa, as funções intestinais se descontrolam. Vejo que não é demência, é simplesmente o início do apagamento da energia vital. Por isso eles precisam de gente por perto, para explicar as coisas milhões de vezes, sem irritação, para amparar o passo, para garantir o riso, para incentivar a memória, para caminhar ao sol, para brincar, para ver novela na TV, para contar das notícias, para ajudar na hora do banho.

Com meu pai tenho aprendido coisas demais. É fato que a vida da gente muda por completo e tudo o que era não é mais. Mas, ao mesmo tempo, coisas que nunca foram, passam a ser. E isso não é de todo ruim. Havia anos que eu não catava pedrinha na rua, havia anos que eu não aquietava em casa nas noites mornas da primavera, havia anos que eu não me demorava tanto para ir de um lugar ao outro, no passinho lento, parando eventualmente para ver o avião passar, ou o cachorro, ou o passarinho.

O fato é que assim como meu pai, o João Gilberto, uma hora começou a mudar, e, ao que parece não havia ninguém por perto para notar. Há que cuidar... Há que ficar por perto. Essa é uma hora que vai chegar para todos nós. E tomara que tenhamos alguém que nos observe assim, com olhar atento, pronto para nos guardar das dores e dos enganos.

O mundo capitalista nos ensina a ter muita pressa, a eliminar o entrave, o diferente, o chato. Não podemos aceitar isso. O futuro pertence aos homens lentos, dizia Milton Santos. Talvez seja isso que a velhice dos nossos queridos venha nos ensinar, na prática.  







terça-feira, 14 de novembro de 2017

Orçamento Legislativo Participativo: as gentes decidindo




Uma das experiências mais bonitas tocadas pelo Partido dos Trabalhadores no início de sua trajetória como institucionalidade foi a do Orçamento Participativo. As cidades sendo pensadas pelas gentes mesmas, as que as constroem e que as vivem. Florianópolis viveu esse momento durante o governo de Sérgio Grando, no qual Afrânio Boppré (então PT)  era vice-prefeito. E foi uma belezura. Todos os bairros faziam suas reuniões e discutiam suas prioridades para obras e serviços. Depois, decidiam o que fazer e quanto gastar em cada coisa. Pela primeira vez na história da cidade os moradores eram chamados para uma participação real e direta, na qual definiam eles mesmos o que fazer com os recursos do município. Foi um tempo em que as prioridades eram invertidas, pelo bem da maioria.

Com a volta dos políticos conservadores esse processo todo se perdeu, ainda que o germe da participação direta continuasse ativo. E tanto que quando a lei nacional do Estatuto da Cidade obrigou os prefeitos a iniciarem o Plano Diretor Participativo, toda aquela gente que  viveu a experiência do Orçamento Participativo voltou à carga, com força e com disposição. Decidir a vida da cidade é coisa que todo mundo quer. E é coisa que todo mundo deveria ter direito. E ainda que o processo do Plano Diretor não tenha sido vitorioso, a lógica da participação direta formou muita gente. Isso é ganho popular.

Pois agora, numa conjuntura na qual a Câmara de Vereadores conseguiu juntar um pequeno grupo de vereadores capaz de pensar os moradores como sujeitos reais de direitos, surge a proposta de um Orçamento Legislativo Participativo, uma ideia inovadora que pretende envolver os moradores da cidade na discussão e na decisão sobre os investimentos e gastos públicos do município no que diz respeito as emenda que os parlamentares têm direito.

A proposta envolve os vereadores Afrânio Boppré (PSOL), Lino Peres (PT), Marcos José de Abreu (Marquito, PSOL), Pedro de Assis Silvestre (Pedrão, PP) e Vanderlei Farias (Lela, PDT) e tem como objetivo principal manter a lógica de participação popular nas decisões da cidade, buscando tornar democrática a tomada de decisão acerca das prioridades sobre obras e serviços.

Os vereadores querem fortalecer a prática da participação direta e reverter a mentalidade clientelista que é marca registrada das emendas orçamentárias dos vereadores. Onde colocar o dinheiro das emendas historicamente tem servido como moeda de troca com o Executivo e para campanhas políticas, tornando o Legislativo um lugar onde o povo não é verdadeiramente representado.

O Orçamento Legislativo Participativo foi lançado nessa segunda-feira, dia 13, em sessão especial da Câmara de Vereadores e deve se fortalecer como um dos mais importantes desafios desse pequeno grupo de vereadores que realmente respeitam o mandato que receberam. A ação dos vereadores aparece como um importante contraponto à vergonha nacional que tem sido expressa na relação fisiológica de deputados e senadores, historicamente vendendo seus votos aos interesses da classe dominante.

Não será um processo fácil, os vereadores reconhecem, pois a prática da democracia direta não encontra espaço nos governos conservadores que se repetem na cidade. Mas, é uma iniciativa generosa e cheia de esperança. No lançamento da ideia, ontem, era possível sentir a alegria de cada um dos envolvidos em iniciar essa caminhada que é desafiadora, mas absolutamente necessária.

Será, talvez, a primeira vez que esse parlamento cumprirá uma função de utilidade real na vida dos moradores da cidade. Os recursos – de dois milhões e meio – que os cinco vereadores têm para usar com emendas parlamentares – serão usados a partir dos desejos das comunidades, depois de boas discussões comunitárias. É um valor baixo, que muito pouco mudará o rumo das coisas na cidade, mas na medida em que esses cinco vereadores decidem mudar a lógica, e entregar a decisão para a população, eles abrem as portas para uma prática verdadeiramente democrática que, se vingar, fatalmente obrigará os demais vereadores a abrir o debate com seus apoiadores também.

Com a presença de entidades sociais e populares na abertura dessa generosa proposta, o lançamento do Orçamento Legislativo Participativo foi um respiro de alegria nesses tempos tão sombrios.

Agora, é acompanhar a ação de cada um desses cinco vereadores que deram ontem um passo histórico. Juntos, ainda que com divergências, eles abrem passo para o “mandar obedecendo”, a única democracia possível.

Parabéns a todos e toda a força avante. É no chão da vida que as coisas começam a mudar.   


domingo, 12 de novembro de 2017

Sobre as feras no porão



Quem leu o clássico “Crime e Castigo” sabe que ali está plasmada uma ética. Um homem comete um crime, ninguém vê. Ele pode seguir com sua vida tranquilamente porque não houve testemunhas, ninguém nunca saberá que foi ele o autor do crime. Ainda assim ele se remói de remorsos, no sofrimento ético: ele sabe que foi ele quem cometeu a atrocidade. E assim transcorre a narrativa de Dostoiévski, centrada no sofrimento psicológico do assassino. É uma belezura de livro e, ao final, premido pelo dilema ético, o jovem se entrega. Não precisaria. Poderia sair impune. Mas, não consegue.

Hoje, os tempos são outros. Vivemos uma época anômica. Não há lei, não há regras, não há ética. Tudo parece permitido desde que o autor dos delitos não seja pego. Está autorizado roubar, se o cara for suficientemente esperto para não deixar rastros. Está autorizado matar, se não houver corpo nem testemunhas. Não há remorsos, não há dor de consciência. Não há nada. Inclusive um degenerado por vir a público defender outro degenerado, em nome de sabe-se lá o quê. Fico pensando que romance Fiódor escreveria nesses tempos sombrios.

O apresentador da Globo que foi descoberto agora em uma atitude racista, um ano depois do fato, teve esse azar. Foi pego. Disse o que disse cercado de testemunhas, e não ficou nem vermelho, porque sendo quem é acreditou que estava acima do bem e do mal. Outra característica do tempo. Mesmo tendo testemunhas, há determinado tipo de gente que não sofre consequências. Certamente não sofrerá. Já tem muita gente defendendo o “pobre” rapaz. Um tempo na geladeira e logo estará de volta.

É assim. Vivemos o racismo estrutural. Impregnado no DNA de uma sociedade escravista. Para os projetos de ‘sinhozinhos e sinhás’ o negro sempre será um animal sem alma, servindo apenas para servi-los. Isso inclusive assume uma capilaridade que toma até a mente daqueles que nunca chegarão a ter uma “casa grande” para chamar de sua. São os feitores modernos, sempre prontos a chicotear aos que a classe dominante ordena chicotear.

O Brasil não está voltando à idade média, como dizem alguns. Essa estrutura erguida pelo domínio português nunca saiu de lá. Vive, latente, nos porões da memória de todos os corpos. Por isso assoma quando a conjuntura parece favorável. São como feras, aprisionadas, mas nunca mortas. O racismo, o ódio ao pobre, à mulher, ao homossexual, o desrespeito ao velho, o descuido com a criança. E, em meio a isso, a servidão voluntária daqueles que se conformam com as migalhas que caem da mesa dos ricos.

Sim, essas feras estão aí, agora cada vez mais soltas. Cabe a nós empreender a luta para fazê-las retornar ao porão.