sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Aí vem ela


O Campeche me avisou. Já há um sopro de primavera no ar. Nesta sexta-feira cheguei mais cedo em casa, e ainda era dia. Havia tempos que não conseguia esse feito. Tão logo desci do ônibus na parada do Castanheira já senti o cheiro. A primavera “invinha”, como dizem os mineiros. Havia uma tremenda algaravia de passarinhos no caminho repleto de árvores. Coisa de ensurdecer. E, tão logo virei à esquina da minha rua, o pequeno monte que há ao final da estrada apareceu absolutamente claro, num verde vivo. O céu estava sem manchas e tudo parecia reluzir. Meus pés afofaram na areia macia e me senti caminhando na beleza, como os navajos.

A criação de galinhas, do meu vizinho Luis, estava toda ciscando pela rua. O galo cantava, altaneiro e as galinhazinhas corriam para lá e para cá, cercadas pelos pintinhos, numa azáfama sem fim. Estavam serelepes, cantadeiras. Até o cachorro marronzinho que sempre corre a me morder os pés se quedou na porteira da casa, deitado, balançando o rabinho, olhando ao redor com condescendência. Aquilo só podia ser prenúncio de algo.

Nas casas da rua, as folhagens reluziam, verdes. E as flores começavam a florir, em todas as cores, prenunciando um arco-íris que vai se espalhar por todos os 800 metros de estrada de areia que tenho de percorrer todos os dias. O cheiro de dama-da-noite impregnou as narinas e veio aquela vontade doida de dançar, porque afinal, aí está chegando a primavera.

No portão de casa os gatos esperavam, aos pulos. Havia um frisson, uma pressa em saltar, em celebrar a vida. As correcas passavam rasantes, gritando vivas, e algumas corujas já espreitavam no muro em frente. O cachorro corria atrás das borboletas, que chegaram e voejavam por todo o jardim. Bartolina escalava o pé de araçá em busca de um beija-flor. Não o abocanhou. Lá em frente o sol começou sua descida para o Japão, avermelhando o céu. Os eucaliptos se dobravam, dolentes, formando um cenário de sonho. Caia um vento sul, levinho. E eu, me sentei no alpendre a sorver um mate, encantada, esperando que ela chegue, já sentindo seu cheiro.

O equinócio a trará, no 23 de setembro, dia mágico, anunciador de delícias. Primavera... Renascer. Florir. Viver. Vem a noite e eu na rede, balangando...balangando... Lá em cima, as três marias, o cruzeiro do sul. O céu do Campeche, brilhoso demais. Cá embaixo, uma viola caipira, um pito, um chamego. Quem, afinal, precisa de mega-sena?

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

As mulheres fortaleza


Milton Santos estava certo. Não há como escapar do nosso espaço geográfico. Por isso que, mesmo sendo uma pessoa do mundo, o lugar onde nascemos segue vivendo em nós, e de uma maneira total. Eu mesma sinto isso todos os dias. Nasci no Rio Grande, na barranca do rio Uruguai, fronteira com a argentina, região da pampa. Da janela de casa – qualquer casa – nossa visão é sempre a planura, o infinito. Por isso, talvez, que nosso instinto seja sempre esse, de ir mais longe, e mais longe, e mais longe. Andar sempre em frente, no rumo daquele horizonte sempre vislumbrado.

Essa sede de infinitos é clara no filme Anahy de las misiones, uma produção do cinema gaúcho, que mostra a fortaleza das mulheres do Rio Grande, sempre às voltas com forças aparentemente maiores do que elas, mas as quais domam com mão segura. A personagem principal, Anahy, vive em plena revolução farroupilha, nos campos de batalha, e tudo lhe acontece. Coisas que vergariam os espíritos mais duros. Ela segura no osso do peito e segue em frente. A cena final é paradigmática. Quando tudo está perdido, todas as dores foram sofridas, ela ergue o peito e anima os que sobraram para seguirem em frente. “Nada vai nos parar”, desafia, “ainda sobrevivo a muitos desavindos”. A câmera vai subindo, subindo, subindo, e o espectador vê que o grupo ao qual ela lidera com sua força abissal está indo na direção de um abismo. Metáfora maravilhosa da geografia de um forte. Sempre em frente, não importa se lá na frente há um abismo. Ela saberá vencer. Ela encontrará um caminho, porque é da sua natureza enfrentar, seja o que for. A gente sai do cinema com aquela ânima, com uma alegria desesperada, uma vontade de gritar, de júbilo, de felicidade.

Diferente mensagem passa o filme Telma e Louise, que também termina num abismo. A película se passa no espaço geográfico e cultural dos Estados Unidos, dentro de um contexto em que as mulheres parecem frágeis demais, oprimidas demais. No filme, a morte acidental de um homem que tentava violentar uma das personagens, as leva – amigas - para uma fuga sem fim. As mulheres seguem um caminho de evasão, sem enfrentar realmente, nem o fato real, da morte do homem, nem suas dores existenciais de abandono, de solidão, de medos. Ao longo da fuga, novos problemas vão surgindo, mas elas não são capazes de olhar de frente para estes monstros. Preferem fugir. No final, quando tudo está perdido, elas se encontram cercadas pela polícia na beira de um precipício. Elas se olham, dão-se as mãos e saltam no abismo, no rumo da morte.


Quanta diferença da gigantesca Anahy, a mulher missioneira da guerra farroupilha, da pampa gaudéria. Cara a cara com os monstros, todos os dias, ela os enfrenta um a um, sem concessões à autopiedade. Uma única vez ela se permite desabar. Mas, ainda assim, é um momento só. Ela berra e se retorce no chão, um grito quase animal. Depois, se recompõe e segue em frente de novo, grávida de horizontes. Nada a detém, nem o abismo que se anuncia. Anahy é meu modelo de vida, Anahy é da mesma carne das minhas avós, das antepassadas charruas, cruzando o descampado, peito aberto, cabelos ao vento, sempre no rumo do infinito. Anahy é o espelho que se apresenta a nós, mulheres gaúchas, no cotidiano desta vida louca.

Hoje, Miriam, uma gaudéria de quem gosto muito completa 40 giros em torno do sol. Meu presente é essa alma de Anahy. Essa coragem, essa fortaleza. “Nada vai nos parar”. E, assim, de mãos dadas, também nós, seguiremos para os abismos. Não saltaremos para a morte como Telma e Louise, mas para a vida, esgrimindo os monstros e rasgando novos caminhos. Porque é desse barro de que somos feitas!!!

domingo, 12 de setembro de 2010

Recato

"Não gosto de estar dormindo nem de estar morto perto de ninguém"
Mário Quintana