quinta-feira, 23 de abril de 2020

O Brasil e a pandemia



O Brasil vive um clima de estupefação, mas ainda assim, com a maioria da população inerte e desnorteada. Com o avanço das infecções por coronavírus os brasileiros assistem o governo federal tomar uma série de medidas anti-vida, sem conseguir esboçar reação. Os casos aumentam e justamente nesse momento de subida das infecções o governo troca a equipe do Ministério da Saúde, que, em vez de apontar caminhos para o enfrentamento da doença, se manifesta sobre como será a economia quando o pico passar. É uma situação aterrorizante.

A crise no Ministério da Saúde surgiu porque o então ministro, médico ortopedista, assumiu o comando da luta contra o coronavírus de maneira bastante ofensiva. Dava entrevista coletiva todos os dias orientando a população, informando e sugerindo que todos atendessem ao chamado de permanecer em casa. Essa posição era totalmente contrária à posição do presidente Jair Bolsonaro, que dizia em alto e bom tom: que morram todos os que tiverem de morrer, porque  não pode parar a economia. 

Mas, o ministro decidiu seguir o caminho apontado pelas autoridades médicas e manteve a posição de isolamento social. A coisa foi ficando insustentável e os dois batiam boca através dos repórteres. Acabou que o presidente demitiu o ministro que, afinal, estava aparecendo para a população como um cara verdadeiramente preocupado com a saúde das pessoas. Estava tendo mais popularidade que o presidente. E o presidente não suportou. 

A demissão do ministro Mandetta desarticulou todo o trabalho de combate que vinha sendo feito via Ministério da Saúde. O novo ministro escolhido pelo presidente tinha duas missões básicas: não aparecer  mais que o presidente e mandar todo mundo voltar ao trabalho. E assim está sendo feito. Acabaram-se as coletivas diárias e a orientação é de que a vida volte ao normal. Apenas ontem o novo ministro, um médico/economista que nunca na vida atuou no setor público da saúde, apareceu na televisão com sua equipe. Um show de bizarrices. Anunciou o novo secretário do ministério, que tem como virtude apenas ser um militar. Nenhuma experiência em lidar com saúde, muito menos com uma crise dessa envergadura. 

A coletiva do novo ministro causou estupor. Nenhuma orientação para a população. Nada. Apenas uma algaravia absurda sobre como deverá ser a economia depois que a pandemia passar. Não dava para saber se quem estava ali era a representação da Saúde ou da Economia. Um terror. 

No campo da luta social a vida está estagnada. Com a confusão causada pelas orientações diferenciadas – cada governado define sua estratégia – os trabalhadores parecem resignados. Aqueles que não conseguem ficar em isolamento e seguem trabalhando não encontram caminhos a não ser colocar uma máscara e seguir driblando o vírus até quando der. Mesmo sabendo que isso não é suficiente. Durante mais de 30 dias, tempo que durou a quarentena, uma massa gigantesca de gente seguiu com vida normal, saindo de casa todos os  dias para trabalhar, sem que houvesse qualquer ação por parte de seus sindicatos, salvo raríssimas exceções. 

Agora, com o novo ministro completamente submetido aos desejos do presidente de retomar a economia, tampouco se percebe alguma ação por parte das Centrais Sindicais ou dos movimentos sociais. Tudo está paralisado, até porque boa parte das lideranças está em isolamento social. Enquanto isso, os partidários do presidente – incitados por ele  - fazem carreatas, passeatas e atos públicos pedindo a volta do comércio e abertura total de tudo. Não acreditam na pandemia e dizem que é um golpe dos chineses para desestabilizar o presidente do Brasil. 

No geral, os governadores que ainda mantinham uma posição de garantir o isolamento social também decidiram se render aos desejos do presidente, sabe-se lá motivados pelo quê. E justamente no momento em que o país começa a mostrar a falência dos sistemas de atendimento, resolvem reabrir o comércio e fazer a vida voltar ao normal.  Uma sandice sem explicação. O resultado é a população toda na rua outra vez, sem os cuidados necessários. O que virá, ninguém sabe, mas pode-se intuir pelo que já aconteceu em outros países. 

Não bastasse isso, o novo ministro disse que o país não vai investir em compra de respiradores ou novas UTIs porque depois não haverá o que fazer com isso. Assim, respalda a ideia de Bolsonaro de que os que tiverem de morrer, que morram logo para que a vida siga. 

Alguns estados como o Amazonas e São Paulo têm apresentado altos índices de mortes e os caixões começam a aparecer nas telas da TV. Mas, ainda assim, a maioria dos brasileiros parece não acreditar que as coisas possam ficar pior. Uma boa parte acusa os que insistem nos cuidados de “querer que tudo dê errado para prejudicar Bolsonaro”. É uma loucura sem fim. Essas pessoas realmente acreditam que o mundo está girando em torno do presidente do Brasil e que tudo que acontece ou deixa de acontecer tem relação com ele.  Nunca se viu nada igual.

O antagonista natural de Bolsonaro, que deveria ser o PT e seu líder Lula, até agora manteve a posição de não atacar o presidente, sendo que Lula chegou a declarar que não iria chamar o “Fora Bolsonaro” que muitos brasileiros já estão chamando. De novo, deixa uma parcela bem significativa da população sem direção. 

Assim, as gentes brasileiras seguem. Alguns devem permanecer em isolamento, mas serão poucos, porque o trabalho vai acabar definindo a volta. A maioria está nas ruas de novo e o ministro da saúde, candidamente, diz que se morrer muita gente, quem sabe o país volta a apostar no isolamento. Mas terá que morrer muita gente. Ou seja. É um governo que espera e aposta na morte. E ainda assim, o presidente segue mantendo um bom índice de aprovação. 

Em meio à pandemia Bolsonaro incita seus seguidores a pedir intervenção militar e o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. As instituições fazem ouvidos moucos e permitem que a Constituição seja rasgada, ao vivo e a cores. O máximo que fazem é lançar notas de repúdio. Da mesma forma os partidos de esquerda. 

A nau Brasil parece seguir desgovernada, mas não, ela segue muito bem governada pelos interesses do capital. Afinal, em meio ao caos, nenhuma palavra dos empresários, dos industriais, da representação da classe dominante. Estão todos calados esperando que seus trabalhadores voltem e sigam girando a roda do dinheiro. Creio que desconhecem que quando Nero tacou fogo em Roma, queimou foi tudo. 
  

Renan


Eu não conheci o Renan, mas sabia de suas histórias de luta. Nunca nos encontramos para um papo ou coisa assim. As poucas vezes que nos encontramos foi em situação de eleição para o Sindicato dos Jornalistas e Fenaj. E estávamos em campos diferentes. Ele nunca me dirigiu a palavra, apenas olhares acusadores. Ele não gostava de mim. Creio que foi envenenado por colegas adversários, porque, afinal, não me conhecia. Mas, ainda assim, ele foi capaz de um ato generoso. 

Tempos depois de o grupo no qual estava vencer o sindicato ele publicou um texto comentando um livro meu. Dizia que estava lá na sede, limpando as estantes e o encontrara. Renan deve ter sido o único colega que leu o livro e fez um comentário bem honesto sobre ele. Como repórter que era, sabia reconhecer uma reportagem. O texto me chegou por outras vias, e achei bonito. Ele teve a delicadeza de, apesar de envenenado, dar uma espiada. E gostou do que leu. E foi digno em fazer um comentário público. Isso diz muito de quem ele era. 

Quando entrei na imprensa catarinense era lendária a sua história de briga com a RBS e seu solitário protesto deitado em frente à empresa, exigindo seus direitos. Lendários também eram seus textos, suas reportagens cheias de viço e bossa. Renan era um repórter, absolutamente repórter. Com o passar dos anos a gente ouvia falar: Renan tá na China, Renan tá na guerra, Renan está incomodando alguém. Ele era um furacão. E a gente lia suas reportagens com quem sorve uma água fresca no deserto. Escrevia como ninguém e era capaz de fazer um baita texto sem quase nada. Só observando e descrevendo. 

A última vez que o vi foi, brevemente, por ocasião da campanha do Nildo Ouriques, como candidato a candidato à presidência. Ali estava ele, grudado em mais uma causa impossível. Trabalhamos em uníssono. Foi a primeira vez. 

Depois, fui acompanhando sua luta com o transplante e tudo mais. No dia em que vi sua última postagem liguei para o Nildo e disse: o Renan vai sair de mais uma, ele sempre sai. Danado, não saiu. 

Fica aqui meu carinho por esse grandalhão do jornalismo, em todos os sentidos. Um repórter que iluminava o jornalismo com seu texto. E, por conta disso, é um desses mortos que nunca morrem.   

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Notas da Pandemia

Acho chique quem nessa hora pandêmica consegue ler Hegel, estudar, escrever tese. Eu não consigo. Acordo de manhã, estupefata. Ufa. Tô viva. Olho para o lado e o peito do pai tá subindo e descendo. Outro alívio. Levanto, dou comida pra os bichos e com renovada surpresa vejo despertarem meu companheiro e meu sobrinho. Ufa de novo. 

A manhã passa rápida, consumida no trabalho das coisas do Iela. É o momento em que consigo suspender o pensamento e focar no que tenho de produzir do meu trabalho. Faço o que posso, distribuindo textos, vídeos, mas não tenho conseguido escrever em profundidade. Tudo está nebuloso. 

A tarde passa e eu nos cuidados com o pai. E o tempo todo essa turbulência no espírito. Estaremos vivos amanhã? Tento ler um livro, não dá. E quando a noite chega me encontra ainda nessa ebulição. Falo com amigos, família, mas a sensação de urgência continua. E até o pôr do sol é vislumbrado com uma nostalgia maior. De noite vejo as notícias e meu coração ensombrece. O mundo me dói. As pessoas morrendo sozinhas nos hospitais me doem. Os enterros solitários me doem. As pessoas chorando na porta dos hospitais me doem. Não consigo ficar de boa. Tudo está tão triste. Não entendo como algumas pessoas podem seguir vivendo como se nada. 

Eu sinto uma profunda tristeza. O Brasil me dói. Pela pandemia, pelo mau governo, pela inconsequência dos que ocupam o poder. São dias sombrios. Queria mais do que notas de repúdio. Não sei. Queria poder ficar leve. Mas não dá. Espero o sono, inquieta e incapaz de fixar atenção em nada. Acordo no meio da noite e olho para o pai. Respira. Volto a dormir . 

E no dia seguinte, acordo, estupefata.