Foi assim. Dois dias depois da aventura da missa de sétimo dia do pai, o furioso decidiu encerrar sua história conosco. O furioso é o Fiat Uno que esteve com a gente quase 15 anos e viveu todo o processo da doença do pai. Ele entrou para a família pela mão do Rubens Lopes que adquiriu ele de quinta mão. Já era bem caidinho e tanto que uma vez ele foi furtado da frente da casa dele e logo em seguida achado. Os ladrões viram que era roubada ficar com o fiatizinho e abandonaram o carro com uma caixa de ovo atrás, de presente, tipo dizendo: desculpa aí, fiquem com esses ovos.
O Rubens vendeu o Fiat para o Renato para que ele pudesse ir e voltar da faculdade mais ligeiro e quando o pai chegou acabou sendo uma mão na roda, pois o Renato tinha a missão de cuidar. Aí, ter o carro era bom, pois ele podia se mexer com mais agilidade já que depender de ônibus na cidade é a treva. Foi apelidado de furioso porque era velhinho, mas valente. A lataria tinha furos por toda a parte, que o Renato remendava com camadas e mais camadas de fita crepe, e chovia dentro do carro mais que na rua. Ninguém se importava.
Mesmo baleado o Furioso foi com Rubens e Renato para Minas Gerais, embrenhado nas estradas do serrado e do sertão. Dias e dias até João Pinheiro e Pirapora, passando pela nascente do Rio São Francisco e cruzando estradas impossíveis, sem deixar ninguém na mão. Pulando feito cabra, mas firme na paçoca. Foi com uma mudança de amigos e voltou com o bagageiro cheio de cachaça.
Em 2015 viajamos com ele para o Uruguai: Renato, Rubens, Antônio e eu. Fomos fazer o caminho do êxodo do povo oriental. Cruzamos Santa Catarina, o Rio Grande do Sul inteiro e demos a volta no Uruguai no rastro do Artigas. O Furioso firme. Depois de mais de 15 dias de aventura nas estradas voltamos para a ilha, o Furioso bufando. Pois não é que ele parou bem no Rio Tavares, em frente à oficina do seu Valdir? Parece que ele sabia que ali era o lugar. Foi só puxar para o outro lado da rua. Tivemos de esvaziar o porta-malas e deixá-lo lá, na mão do mecânico. Mas ele chegara até quase em casa. Não nos deixou na mão.
Nos oito anos de cuidados com o pai o Furioso foi companheiro levando e trazendo o seu Tavares no Posto de Saúde, na UPA, no hospital, levando para passear na Lagoa do Peri, no Zeca, pra comprar pamonha, no Centro, em todo o lugar. Serviu também para que o Renato fosse e voltasse para a Udesc na interminável batalha de encerrar a graduação. Dois valentes.
O Renato se formou no dia 28 de fevereiro, fechou o livro da Udesc. O Furioso acompanhou a colação de grau lá no Pedro Ivo. O pai encantou no dia primeiro de março e o Furioso ainda nos levou até a Igreja da Trindade para a missa de sétimo dia. Dois dias depois o Renato foi fazer um serviço e na volta para a casa o Furioso parou. Não havia mais conserto. Seu Valdir ainda foi lá vê-lo embaixo do viaduto, mas o diagnóstico era de morte. O Furioso não voltaria mais.
Hoje, o Rubens deu baixa no Furioso lá no Detran e nós relembramos sua vida conosco. Sentamos no alpendre, sob as estrelas, celebrando sua existência com algumas cervejas. Havia tristeza, afinal, foram muitas coisas se acabando nestes dias. Mas, ao mesmo tempo, fomos levantando as lembranças, recordando as aventuras, rindo das histórias que foram voltando ao coração. O Furioso cumpriu um lindo destino aqui em nossa casa, com nossa família. Era um carro velho, feito de lata e aço. Ainda assim parecia ter espírito. Sei lá, era um Tavares. Agora, enquanto escrevo, choro. Com ele vai um pedaço de nós. É outra grande perda... E dói.
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