Gilberto Felisberto Vasconcellos tem sido nosso Jeremias, gritando na montanha contra a telenovelização da política. Gilberto faz a crítica, mordaz, feroz. Mas, tem sido ignorado nesse quesito. Segundo ele, a política brasileira tem seguido desde 1964, com o advento da Globo, uma estética telenovelizada e a novela real politiza as cabeças no sentido de extrair a mais-valia ideológica. Por isso que ver novela é também entender a política que está na cabeça das massas. Afinal, é pela televisão que a maioria se informa. E não apenas no telejornal, mas nos programas de auditório e na novela.
O reacionarismo religioso entrou no Brasil através da novela. Quem não acompanhou as grandes produções da Record não tem como compreender porque os brasileiros estão se tornando “terrivelmente evangélicos”. As sagas dos personagens do velho testamento foram introduzidas na casa das pessoas trazendo mensagens políticas importantes: Israel é o centro do mundo (daí as bandeiras de Israel nas manifestações bolsonaristas), a mulher precisa aceitar seu sofrimento e amar seu marido, há que rezar que deus atende, e há que temer porque deus também vinga.
Esther, Sansão e Dalila, Rei Davi, a Bíblia, José, Os dez mandamentos, O Rico Lázaro, A Terra prometida, Lia, Jezebel, Gênesi, Jesus e o Apocalipse, todas essas histórias tem manufaturado uma ideia de deus, de moral, de comportamento, de ser no mundo. Isso não é pouca coisa. Se juntarmos isso às mensagens que são inoculadas pelas novelas globais – tais como as de que existem empresários bonzinhos, ricos generosos e que há que defendê-los – temos aí um caldo extraordinariamente conservador que domestica e amansa. A novela ensina a amar o algoz e mostra que a luta só tem chance de vitória se for em aliança com os ricos bonzinhos.
A política, diz Gilberto, reproduz na vida essas mensagens e essa estética. Por isso as campanhas eleitorais são realizadas via televisão, com vídeos emocionais que reeditam as sensações novelísticas.
Se a Globo passou durante décadas insuflando as ideias liberais, a Record veio e consolidou o reacionarismo apostando no velho testamento que, inclusive, foi rechaçado por Jesus, embora muitos cristãos não se deem conta disso.
Hoje, vivemos o drama de ver partidos alinhados ao campo da esquerda votar no perdão da dívida das igrejas. Isso não deveria ser nenhuma surpresa. O sistema eleitoral se alimenta dessas ideias que são plantadas nos cultos e nas novelas. A política telenovelizada não tem pejo em sacanear a população perdoando dívida de um bilhão enquanto os trabalhadores precisam mendigar um auxílio em plena pandemia. A religião romanceada pela telenovela tem sido pródiga em manter os fiéis amarrados aos seus planos de enriquecimento e bem-viver. E isso interessa aos que disputam os votos. É tudo uma questão de cálculo eleitoral. Triste, mas é verdade.
O perdão da dívida dos ricos igrejeiros, logo cairá o esquecimento. Mas, sobre o povo seguirá recaindo a acusação de alienado, incapaz, massa de manobra de pastores mal-intencionados. O povo, essa abstração para alguns, quer apenas comer, se divertir, gozar, sair do inferno das drogas ou da dor. Por isso busca amparo nos templos, já que não há Estado. Porque lá lhe oferecem isso. Ali está o amor de deus, inculcado pela Record, e o sentimento de que existem ricos que são bons, inculcado pela Globo. Por isso não importa que Edir Macedo tenha uma casa feita de ouro, ele é um desses heróis ricos e bonzinhos das novelas globais. De quebra, é um abençoado pelo deus de Israel.
Todo esse drama novelístico que vivemos agora na vida real tem sido sistematicamente traduzido nas telas da ficção. A realidade é essa. O pastor, o empresário do bem, o padre, o político espartano ligado ao povo, são os que estendem a mão na hora da angústia, os que salvam. A novela reforça a realidade e por aí segue a malta.
Por isso a classe dominante seguirá perdoando a dívida das igrejas, garantindo subsídios e mantendo as concessões televisivas com os amigos. Aliados a ela, os oportunistas eleitorais.
Quem tiver capacidade crítica que pense e se liberte.