terça-feira, 29 de novembro de 2022

Eu, o pai e a ceifadora


Há muito tempo vi um vídeo sobre a morte. Ela se enamora da vida. E é um sofrimento, porque se ela toca na vida, a vida se esvai. Ainda assim, a morte segue a vida

e está ali, todos os dias, do seu lado, extasiada de amor, mas sem poder sentir o calor do abraço, a doçura do beijo. É um filme extraordinariamente triste, mas absurdamente belo, a ensinar que a ceifadora está conosco, o tempo todo, amorosamente esperando, a vida inteira. 

Passei a observar mais a morte quando meu pai foi diagnosticado com a doença de Alzheimer. Porque, desde ali, tenho caminhado com ela. A doença é degenerativa, a pessoa vai passando por várias fases até chegar o fim. Não é como cuidar um bebê, que a gente vai preparando para a vida. É o contrário. Vamos preparando para a morte. E a doença vai lentamente apagando tudo. Primeiro é a memória. Depois, vai afetando o movimento até que a pessoa

não anda mais. E depois vai se agravando. A pessoa esquece como comer e como respirar. É avassalador.

Ontem, mexendo nos textos que já escrevi sobre o pai desde que

ele veio morar comigo em 2016 fui percebendo, assombrada, o quanto ele mudou. Quando chegou era serelepe, caminhador, fugia de casa,  molhava as plantas, juntava os cocozinhos dos

cachorros, cuidava da cachorra doente, caçava carrapatos, fazia bagunça nos guarda-roupas, nos armários da cozinha, quebrava todos os meus bonequinhos, fumava, rasgava meus livros. Agora, desde há alguns meses ele já não anda e não bagunça mais nada. Fica ali, sentadinho, o dia todo, e só se anima quando a gente conversa, daí a necessidade de ter alguém sempre ao seu lado, puxando assunto. A doença é assim, ela dá saltos. Uma hora tá bem e na outra, záz. E por mais forte que sejamos, a gente desaba.

Quando vem a noite e eu me deito ao seu lado, fico vigiando

seu sono. Vez em quando parece que ele se afoga, faz barulhos estranhos e eu sinto a presença da ceifadora, num misto de dor e de amor. A gente se olha e sorrimos uma para a outra. Momentos há em que eu sinto vontade de abraçá-la, para fugir do sofrimento. Mas ela se afasta. São horas noas, para nós duas. 

Quando clareia o dia ali estamos, lado a lado. A azáfama do

dia permite que eu esqueça um pouco sua presença, mas basta apagar a luz, e lá está, com seus olhos amorosos. É um duro aprendizado, mas vamos cumprindo.

Assim, enquanto não vem o toque, vamos saltitando, cantando, dançando, vendo futebol e compartilhando esse imenso jardim.



sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Rogério Vive


Pouco tempo antes de encantar o Rogério Ferrari esteve conosco. Como sempre acontecia quando vinha à Florianópolis veio passar um tempo no nosso alpendre, e, entre um pito e uma gelada, íamos falando sobre a fotografia, o jornalismo, os povos indígenas, a política nacional, as guerras, Julian Assange, e tantas coisas mais. Ele falava macio e pensava devagar, por vezes com o olhar perdido em alguma lembrança ou em algum futuro ainda não escrito na luz, mas que já vivia nele. 

Rogério era um ser em resistência, como homem e como profissional. Estava sempre em batalha. Para sobreviver, para editar um livro, para empreender uma viagem. Ele poderia ter escolhido qualquer caminho, mas optou por acompanhar com suas retinas os povos que lutam por liberdade e autodeterminação. Existências em resistência, como ele dizia. E isso implicava em percorrer grandes distâncias para ficar face-a-face com quem escolheu comungar. Fotografava como vivia, com paixão e delicadeza. Com direção política. Sua mirada estava sempre comprometida com a comunidade das vítimas do capital. Palestinos, curdos, ciganos, zapatistas, sahaarauí, sem-terra, mapuche, guarani, povos indígenas da Bahia. Onde tinha luta, ele estava. Era um mambembe, um caminhante. Ele e sua máquina, sua objetiva, seu objetivo. Viajava pelos cantões do mundo sem apoio oficial, sem grandes marcas.  Arriscava-se. Tinha medo sim, mas tinha mais coragem. Queria um mundo bonito para os que então batalhavam por liberdade, para ele, para seu filho, para seus amores. E não hesitava em percorrer as trilhas mais desafiadoras. Encharcava-se de pessoas em luta, emaranhava-se nas suas vidas e registrava suas dores, seus sorrisos, suas esperanças, o trabalho, a festa.

Rogério nasceu numa cidade do interior da Bahia, Ipiaú, e lá conseguiu ter uma infância de liberdade numa vida bem típica do interior, de relações diretas e afetuosas. Dizia ele que foi o que garantiu sua formação humanista e generosa. Começou a fotografar lá pelos 18 anos com a simples intenção de compartilhar o que o seu olhar percebia. Daí para o fotojornalismo foi um pulo, o que deu a ele também a possibilidade de sobreviver com isso, fazendo reportagens que pudessem falar a realidade mesmo. Mas, logo viu que os espaços da mídia não eram o seu lugar. Ele precisava de profundidade, pois já tomara posição diante da vida. A fotografia tinha de tocar nas realidades dos que resistem. E foi assim que começou a caminhar por essas veredas do mundo dos perdidos, construindo uma obra que tanto é fotográfica quanto política. 

Ele foi embora cedo demais. E nem avisou. A última imagem que temos dele é do seu corpo magrinho cruzando nosso portão, um sorriso e um aceno de mão. Já estava doente, mas não disse nada. Havia tantas outras coisas para compartilhar. Havia tantas pautas a construir, tantos caminhos a trilhar, tantas críticas a fazer. Ele já era um mestre e sabia dar a direção. E era assim mesmo que ele sentava à nossa mesa. Como um mestre, dando lições sem parecer. E isso é tão verdade que, mesmo agora, quando ele já não está mais, segue sendo caminho. Sua obra fotográfica e teórica segue viva, inspirando outras pessoas que navegam por esses mares revoltos. Rogério é exemplo, é estrada, é pura vida. 

Agora mesmo podemos vê-lo com seu sorriso torto, algo assustado com tanta atenção, escondidinho num canto da sala e com o coração bem aquecido. Porque sabe que aqui, nesta ilha perdida no mar, tem gente que o ama. E sabe também que nas veredas por onde passou deixou o rastro da beleza, que nunca vai se apagar.

Obrigada por tanto, Rogério, amigo! Estás aqui e estamos juntos!  

Elaine Tavares

Rubens Lopes

sábado, 12 de novembro de 2022

A voz das comunidades na Audiência Pública da Moradia




O relato é longo, mas necessário, porque é preciso que as vozes se expressem

Muitos dos que vieram para a Audiência Pública sobre a Moradia neste dia 08 de novembro, na Assembleia Legislativa, já fizeram esse caminho infinitas vezes. Como muito bem lembrou o padre Vilson Groh essa é uma luta que já passa dos 40 anos aqui na capital. E só essa informação já mostra o tamanho da irresponsabilidade dos governos municipais que se sucedem e não mudam as políticas. Desde o começo dos anos 1980, quando a cidade viveu um grande processo de chegada de migrantes, até hoje, quase nada mudou. Naqueles dias, era o Centro de Apoio e Promoção ao Migrante, o Caprom, a instituição que ajudava a organizar as famílias, contando com estudantes da UFSC de várias áreas. Hoje, muitos são os movimentos, e o problema da falta de moradia só cresceu. 

Viver em Florianópolis é coisa difícil. Como a cidade cresceu amparada na lógica do lucro e da especulação imobiliária, para os mais empobrecidos pagar um aluguel é sempre algo quase inalcançável. A cidade os quer para prestar serviços, mas não se importa sobre onde eles vão descansar a cabeça, ou se não vão. E a prefeitura faz ouvidos moucos, usando a letra da lei para expulsar e criminalizar, esquecendo-a quando é para garantir direitos. Hoje, mesmo as chamadas cidades-dormitórios, na grande Florianópolis, como Palhoça e São José, também já entraram na onda da especulação e mesmo lá pagar um aluguel é quase impossível. Assim que para as famílias não resta alternativa que não ocupar terras urbanas que não cumprem qualquer função social. Ali, levantam suas casinhas e travam duras batalhas com as prefeituras e a polícia militar. São chamados de “vagabundos”, “bandidos”, mas na verdade são apenas homens e mulheres trabalhadoras, com seus filhos, buscando viver com dignidade. 

E foi essa gente que, mais uma vez, encheu o Auditório Antonieta de Barros para discutir uma saída para a ameaça de despejo que paira sobre duas cabeças. A audiência foi chamada pelo Deputado Padre Pedro (PT) e juntou instituições e comunidades para um diálogo. Como era de esperar, os prefeitos das cidades envolvidas não vieram. Restaram outras instituições que compareceram, com representações,  e reafirmaram o compromisso em negociar. 

Foi o caso da Procuradora Ana Lúcia Hartman, do Ministério Público Federal. Ela lembrou que na capital do Mercosul o mais urgentes problema a resolver é o da moradia e que o MP está priorizando a regularização urbana nos núcleos de baixa renda, já que o IPUF não trabalha nisso. O defensor público, Marcelo Scherer da Silva, apontou a necessidade de discutir políticas públicas nesse momento de crise, e principalmente as voltadas para as populações mais vulneráveis. Lembrou que o déficit habitacional existe não porque não tem verba, mas sim porque as políticas desenvolvidas são excludentes. A diretora de Habitação e Regularização Fundiária, Aline Ferreira, se colocou à disposição para ouvir as demandas e afirmou que as portas da Secretaria De Desenvolvimento Social do Estado estão abertas. 

O Comandante do Apoio Especializado da Polícia Militar, coronel Luciano Leite Pereira, disse que não há momento mais desgastante para ele do que quando recebe um pedido de reintegração de posse porque sabe a dificuldade que as famílias passam. Também afirmou que sob seu comando todas as ações sempre foram feitas com os devidos cuidados para garantir a segurança das famílias. “Nós não somos inimigos dos senhores. Nasci no Morro da Caixa, sou igual aos senhores. A minha casa, pela qual lutei anos, hoje está sob o risco de demolição. Mas, tudo isso é por força de legislação”.  A resposta a esse depoimento viria depois nas dezenas de falas do povo das comunidades.

O Secretário de Administração do Município de Fraiburgo, Rui Brown, veio falar das ocupações no município e disse que a prefeitura se sentia impotente para resolver a situação. Negou que quisessem desalojar famílias, no que foi prontamente rebatido pelo representante da ocupação Vila União, Jilson Carlos de Souza. Segundo ele já faz algum tempo que os moradores apontam caminhos e não são ouvidos pelo prefeito. Contou também que o município tem uma área, anexo ao bairro são Miguel, de 300 mil metros quadrados. Por que não utiliza para moradia? E denunciou que tem uma lei que diz que o loteamento Santa Sara é 50% para construção industrial e 50% para moradia popular, mas o prefeito não cumpre a lei. “Nós sabemos o que fazer. Há três décadas que Fraiburgo não tem um loteamento de moradia popular, mas nós temos a solução”.

O liquidante da Cohab em SC, Júlio Cesar Pereira de Souza, disse que em 2017 o governo decidiu que a politica de habitação sairia da Cohab e sua função agora é terminar os processos fundiários que ficaram para trás. “Temos trabalhado para garantir o direito à moradia daqueles que já estão na casa e temos projeto que vai tratar da doação de vários imóveis que já estão ocupados”. E Ricardo Moa, ex-liquidante da Cohab, representando a sociedade civil, disse que é contra a reintegração na forma como ela se dá, conclamando para um pacto federativos visando construir solução e evitando o drama das famílias. 

Felipe Bezerra, da ocupação Marighella se manifestou dizendo que o estado só é eficiente com os empresários, por isso os moradores precisam se mobilizar e lutar, oferecendo as soluções. Só que nunca são ouvidos. E alertou: “Só vamos desistir quando conseguirmos nossa moradia”.

Bianca, da comunidade Benjamim, lembrou que a prefeitura de São José é ré em processos envolvendo a construção da avenida Beira Rio justamente por questões ambientais, a mesma que demanda a retirada das famílias da área. Lembrou que há decisão do STF dizendo que diante de desocupação coletiva há que ter comissões de negociação que garantam o direito das famílias. Eles apresentaram propostas de recuperação ambiental da borda do Rio Forquilhinha com a manutenção das famílias que ali vivem, regularização fundiária das comunidades Benjamin e Fé em Deus de forma planejada resguardando ao máximo o traçado das vias sem necessidade de despejo para garantir a sociabilidade coletiva e sem prejuízo para os moradores que vivem  e trabalham no entorno. “Não queremos aluguel social, queremos ficar ali. Moramos nesse lugar há 30 anos”. 

Odair, também da Comunidade Benjamin, apontou que são mais de 300 famílias as que receberam a ordem de despejo por causa da obra da rodovia. “Estamos ali há 30 anos e não queremos a promessa de aluguel social. É tudo promessa. Estamos sem dormir, sofrendo, tem havido discórdia na comunidade. Eles dizem que nós não podemos estar nos projetos porque não temos cadastro. Ora, estamos ali há anos”.

Marta, da Comunidade Anita Garibaldi, falou que estão à beira de ser despejados e de ver os filhos na rua. Respondeu ao comandante da PM afirmando que a polícia não está do lado das famílias. Quando chegam, entram com o fuzil para fora, como se os moradores fossem bandidos. “E o que é nosso direito? A gente tá ai trabalhando enquanto vocês tão curtindo.. e nós é que somos vadios. Acho que os vadios estão tudo de terno e gravata. O dinheiro que é pra ser povo, cadê? Os meus filhos brincam de ocupação: tem o advogado, o pessoal do movimento e a polícia armada pra atirar em nós. É disso que meu filho brinca, porque ele vê o nosso dia-a-dia”. 

Giane, da Ocupação Marighella denunciou que as famílias estão  sem água, sem luz, sem banheiro adequado, que as crianças brincam no barro. Afirmou seu direito de morar e convidou as autoridades a irem até Palhoça para ver a situação. “Não somos bandidos, mas temos medo, porque nos ameaçam. Queremos pagar luz, água, nós não somos ladrões. Somos pessoas honestas, pais e mães que querem o melhor para ou filhso. Não temos opção: ou pagamos aluguel ou comemos”. 

Samara, da ocupação Marielle mostrou que eles estão numa área nobre e por isso estão sofrendo, porque as pessoas lá não gostam de pobre. “Eles querem a nossa mão de obra barata, mas não morando perto. Só que temos direito a morar. Não queremos aluguel social nem indenização, queremos a reurbanização. Na pandemia enquanto o prefeito usava a prefeitura de motel a gente estava lá morrendo de fome e pela pandemia”, Quanto a polícia ela também rebateu o comandante. “Já tivemos lá na ocupação um policial que jogou uma bomba de gás numa casa que só tinha crianças”. 

Jilson, da Vila União, Fraiburgo também rebateu o secretário da cidade. Lembrou que as famílias são remanescentes do Contestado, gente que foi assassinada pelos coronéis que seguem mandando. “Os mesmo que hoje querem nos matar. A fala do comandante da policia é um mundo de fantasia, porque nós passamos terror. Uma das nossas companheiras agredidas está aqui”. Apontou que dos quase 40 mil habitantes da cidade,  12% vivem abaixo da linha da pobreza. “Hoje, 4.400 pessoas não vão fazer uma refeição decente e são essas que moram na Vila União. Só no bairro São Miguel 110 famílias vivem em áreas inadequadas. O déficit é de quatro mil moradias e não 350. Há soluções, falta é vontade da administração. São três décadas sem moradia popular em Fraiburgo. Lá falta dinheiro pros pobres, mas não para os empresários”.

Monique e Davi , da ocupação Vale das Palmeiras, insistiram ser uma vergonha ter de estar ali lutando por algo que é deles. E enfrentando a polícia “O soldado que tá na ocupação não é esse que o senhor falou, comandante. Lá dentro a coisa é outra. Nós temos medo da polícia sim”. 

Nadimara, da Ocupação Elza Soares também falou de medo. São 103 famílias, 150 crianças, duas gestantes e seis idosos que podem ficar sem casa. “Queremos ficar na área que não cumpre a função social. A lei nos assegura esse direito. Os PM não entra com respeito na ocupação, a gente é bandido pra eles”.

Felipe Bezerra, da Ocupação Marighella e Despejo Zero mostrou que o déficit em Santa Catarina é de 203 mil moradias. E os números mostram que existe uma cidade maior do que Joinville só de sem-teto: são mais de 600 mil no estado. E o programa do governo está anunciando a construção de 615 casas para o ano que vem. São 132 mil famílias  ameaçadas de despejo. Esse é o quadro e por isso existe a luta por Despejo Zero. No Brasil são 33 milhões passando fome, 14 milhões de desempregados, é um processo que tende a piorar, por isso são necessárias políticas sérias. 

Jeferson, das Brigadas Populares e ocupação Contestado  denunciou que já se vão 10 anos de luta naquela ocupação, resistindo a seis tentativas de despejo. Uma comunidade que surgiu de um despejo. E o “programa habitacional” do governo é sempre o mesmo, um ginásio e depois um aluguel social de três meses. “Precisamos criar uma comissão de negociação com o TJ, MP e movimentos sociais que cuide desses processos fundiários e garanta moradia digna. Hoje só falta a prefeitura de São Jose aceitar um terreno da união, mas ficam sem agir”.

Maia, da ocupação Vila Esperança, contou que em 2018 ela viu famílias com suas casas demolida, coisas quebradas, os soldados roubando material. “E eu ouvi dos seus soldados que eu não tinha o direito de ir e vir. Tem que informar pra eles que nós temos direitos. Nós temos educação, acho que quem tem de estudar são os seus soldados. O condomínio do outro lado destruiu floresta e não aconteceu nada com ele”.

Tais e Domingos, da ocupação Beira Rio, também falaram das demolições acontecidas na comunidade em 2017. As casas foram destruídas e teve pessoas que morreram de tristeza por isso. Morreram mesmo. “Temos famílias dormindo na rua. A polícia não é exemplar, eles nos humilham, apontam armas pra crianças. Nos tiraram de casa numa chuva. Semana passada a policia entrou na rua, espancou meu sobrinho sem ele estar fazendo nada”.

Elaine Salas, do movimento 8M falou que a política habitacional em Santa Catarina é casa vazia, é nada. Uma casa que não existe. Lembrou o quanto a falta de um endereço impede as pessoas de acessarem serviços de saúde, escola, creche, assistência social. Como pagar um aluguel de 1.200 reais? “Comandante, me dá seu telefone que eu quero transmitir ao vivo como agem os policiais quando eles vierem”. .

Vladimir, da Nova Esperança insistiu que é hora de parar com os discursos bonitos. Há que ter solução. “Nós não moramos ali porque a gente quer, é porque não conseguimos pagar um aluguel. Nós construímos a casa de vocês, somos os  pedreiros, os trabalhadores, e não temos nada, somos tratados como um nada”.

Padre Vilson Groh trouxe a memória das lutas nomeando pessoas como o Loureci, a Elisa e o Murilo que já estavam nessa batalha no final dos anos 1970. “Estou com 41 anos de vida e de luta na cidade e até hoje não conseguimos construir politicas publicas para os municípios e para o estado. Sugiro que façam mesmo uma comissão realmente operativa com o movimento, instituições e MP, com propostas eficazes. São mais de 40 anos vivendo isso na periferia... com raras exceções de conquista”.

Renato, da ocupação Amarildo trouxe o exemplo dessa luta que deu frutos. Hoje eles têm um território fruto de ocupação, o que mostra como a luta pode dar resultado.

Albani denunciou que ele mesmo quase foi morto em 2020 por um policial. E que o tratamento dado nas ocupações não é mesmo da Beira-Mar. 

Luzia Cabreira, advogada do Igentes também apontou a necessidade de uma solução para as famílias ameaçadas de despejo, e uma solução que seja o ginásio precário. O vereador Marquito insistiu para que a comissão a ser formada tenha participação das comunidades. Por fim, Loureci apontou a necessidade de se firmar compromissos que tenham o povo organizado como centro. Sugeriu ainda que o judiciário faça uma audiência pública porque eles são a salvaguarda do direito. Denunciou que a câmara de São José não fez audiência pública para discutir a obra da beira rio e os impactos ambientais que ela causa. “O prefeito não vem aqui porque é covarde. Nós queremos ser recebidos pela Câmara e pelo prefeito. Vir colocar promessas não aceitamos”.

Fechando a audiência o Padre Pedro se comprometeu de conversar várias autoridades para compor a comissão, bem como garantir a participação das comunidades. E assim encerrou mais uma etapa dessa luta sem fim. 

No dia seguinte, na comunidade de Pedro Castanho, no Ribeirão da Ilha, onde vivem 100 famílias, a polícia entrou com a costumeira violência e a Celesc cortou a luz, levando inclusive os postes comprados pelos moradores. O exemplo mais acabado de tudo o que os moradores denunciaram no encontro. 

A luta pela moradia segue porque morar é um direito.  


sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O meu querido


O pai já passou por muitas fases do Alzheimer. Agora, próximo de completar 91 anos, está sem andar. Dar alguns passinhos logo que levanta da cama de manhã já é bem difícil. Ele fica cansado e desaba. O jeito então é partir para a cadeira de rodas. Nela a gente pode circular pelo jardim, tomar sol, ir até o portão ver o movimento da rua, circular. Ele gosta, sempre foi rueiro. O resto do dia é sentadinho na poltrona. Ali ele briga com os cachorros, vê um pouco de televisão e principalmente ouve música. Trouxemos de casa todos os CDs que ele gravou ao longo da vida, com coletâneas de música sertaneja, a assim ele vai passando o dia. 

Vez em quando ele se cansa de ficar sentado, eu acho. E fica rabugento. Começa a falar na sua língua klingon e tenta levantar. É um perigo, por isso estamos sempre de olho. Outro dia eu desviei o olhar por um segundo e quando virei lá estava ele de pé, agarrado na porta. É danadinho. Quando fica assim, enfezado e agitado o jeito é distrair. Minhas alternativas são cantar, ou dançar como uma Maricota.

Mas, tem outra forma que é mais legal. Quando ele fica muito brabo eu abraço ele com força e digo, enchendo de beijinhos: 

-Tu és o meu queridinho? Tu és o meu amorzinho? Tu és? Tu és?

É aí que eu ganho um belo de um sorriso. 

- Ahhhh, não – Ele diz, enquanto se enrosca em mim como um gato. Sabe que é meu querido.

E assim passamos os dias, com muitas dessas janelas de amor.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

O brasil avermelhou


Mapa: O Estadão

Depois de uma semana tensa, na qual um apoiador de Jair Bolsonaro feriu policiais com tiros e granada e uma deputada bolsonarista perseguiu um homem negro pela rua fora, armada de pistola, a população brasileira deu sua resposta. Era chegada a hora de colocar fim a um dos governos mais destrutivos da história do país. Derrotar Bolsonaro e sua política de morte passou a ser ponto de honra, inclusive com a formação de alianças jamais vistas. Foi uma campanha bastante despolitizada, sem o debate dos grandes temas nacionais, justamente porque Bolsonaro conseguiu impor uma agenda recheada de mentiras. Assim, era preciso um grande esforço para tentar desfazer a trama toda. Nisso, a pauta econômica e política ia ficando de lado. O clima de guerra religiosa e moral deu o tom em todo o processo e a violência generalizada se espalhou. O último ato foi o do ex-deputado Roberto Jefferson, que tentou se transformar num mártir, buscando reconstituir o clima da famosa "facada" criada pelo candidato Bolsonaro na eleição de 2018. Ao atacar a Polícia Federal esperava um revide, que não veio. O balão murchou e fez estragos na campanha bolsonarista. No campo da oposição ao governo as comportas iam se fechando e velhos adversários se uniram para derrotar Bolsonaro. 

E a derrota veio. Apertada, mas veio. 

É importante salientar que o governo usou de toda a máquina para impedir a vitória de Lula. O Nordeste, região brasileira com mais votos para o petista, foi o campo de batalha. A Polícia Rodoviária Federal foi acionada para impedir as pessoas de chegarem aos locais de votação. Ônibus, carros, motos, tudo era parado e os passageiros sofriam humilhações. Ainda assim, não foi suficiente. A resposta do Nordeste foi a esperada: vitória acachapante de Lula. Minas Gerais, um estado que sempre é baliza, também surpreendeu e Lula ficou com mais de 50% dos votos. E na região Norte, os estados do Amazonas e Pará igualmente responderam bem contra Bolsonaro. Restou ao Sul, Centro-Oeste e parte do Sudeste manter a preferência com Bolsonaro, com o Rio Grande do Sul também surpreendendo e impedindo a vitória do candidato a governador bolsonarista, apesar de ainda dar vitória a Bolsonaro na eleição principal.  

Por fim, depois de uma apuração bastante sofrida o resultado veio: 50,90% para Lula e 49,10% para Bolsonaro, uma diferença de pouco mais de dois milhões de votos. 

Olhando para o mapa do Brasil é fácil ver que foi a população mais sofrida quem decidiu aplicar a derrota a Bolsonaro. Afinal, foram quatro anos nos quais os trabalhadores perderam direitos e ainda sofreram de maneira visceral os efeitos da ação governamental durante a pandemia. Bolsonaro não atuou no combate à doença, fez campanha contra o uso de máscaras e pelo uso de medicações ineficazes. Além disso, fez campanha contra a vacina e só comprou o imunizante depois de muita batalha por parte da população. O resultado foram quase 700 mil mortos. Não bastasse isso abriu caminho para as empresas de armamento, fez vistas grossas para fazendeiros e mineradores invasores de terra indígena, não atuou nas queimadas da Amazônia e do Pantanal, deixou a gasolina chegar a sete reais o litro e provocou a disparada dos preços dos alimentos. 

No campo da moral Bolsonaro, sua mulher e filhos abriram caminho para uma série de mentiras: que o comunismo estava chegando, que o PT iria fechar igrejas, que Lula era um satanista, que iria obrigar as crianças nas escolas a usar o mesmo banheiro, que iria ensinar as crianças a serem gays e mais um sem número de absurdos que foram cimentando um exército de fanáticos. Diante de uma economia em colapso, avanço da fome e da miséria, esses temas criaram cortinas de fumaça que inebriaram muita gente. Por isso, não é de estranhar que Bolsonaro tenha conseguido 58 milhões de almas para seu projeto. O medo foi decisivo para uma camada grande da população. 

Mas, apesar disso, Bolsonaro foi derrotado nas urnas. E agora, espera-se que venha um novo tempo. Não há ilusões sobre o governo de Lula. Será um governo socialdemocrata, com muitas concessões aos aliados de última hora. Mas, sem lugar a dúvidas, haverá uma retomada da racionalidade visto que a pauta do mandatário da nação não será mais dominada por mentiras e absurdos moralistas.  Aos trabalhadores restará ficar atentos e organizados, porque muitas lutas ainda deverão ser travadas. 


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Marcha pela Vida






Fotos: Rosane Talayer de Lima 

Canções, palavras de ordem, bandeiras e pessoas em luta rasgaram a manhã nublada da capital catarinense na manhã de segunda feira (24.10). Eram os representantes das mais de 600 famílias que hoje estão batalhando pelo seu direito de morar, lutando contra o despejo. A ameaça está sob a cabeça porque as comunidades nas quais moram são consideradas ilegais pelo poder público, ainda que algumas delas existam há mais de 20 anos. A verdade mesmo é que elas ocupam espaços que hoje estão sob a cobiça da especulação imobiliária que tudo o que quer é “tirar os pobres da sala”. Não bastasse isso, em Palhoça, por exemplo, a prefeitura define obras que atravessam comunidades sem a realização de audiências públicas, sem ouvir as famílias, sem diálogo e ainda ferindo a lei ambiental. 

A marcha pela Moradia contra o Despejo começou no estreito, bairro continental de Florianópolis e veio em direção à ilha, passando pela ponte Hercílio Luz, o cartão de visitas da capital. Desde 1986 que a “velha senhora” não via a marca de uma manifestação popular - no campo da moradia - sob suas vigas. Foi bonito de ver a mistura das cores das bandeiras com o céu azul e o cinza brilhante da ponte. O espaço, que desde sua re-inauguração tem servido de cenário para fotos e visitas turísticas, sentiu a vibração das famílias locais, as que vivem e sofrem a cidade real, trabalhadores e trabalhadoras que muitas vezes não tem sequer o dinheiro da passagem para uma visita aos domingos com a família. Por isso, em meio à luta, foi com alegria que as famílias cruzaram o caminho, com crianças, velhos e jovens vivendo esse momento pela primeira vez. 

A reivindicação principal da marcha é a manutenção da ADPF 828, uma normativa que proíbe despejos na pandemia e que tem seu prazo de validade até o dia 30 deste mês. Na semana passada os movimentos que estão na luta junto com as comunidades já realizaram uma visita à Assembleia Legislativa, onde arrancaram uma Audiência Pública sobre o tema, que vai acontecer no dia 8 de novembro. O foco mais urgente são as ações de despejo e o projeto da Avenida Beira-Rio em Palhoça, que deverá atingir imediatamente 300 famílias das comunidades Benjamin e Fé em Deus. Mas, outras comunidades também estão ameaçadas.

A intenção do movimento foi justamente ocupar o “cartão postal” da cidade para chamar a atenção das autoridades acerca da questão da moradia, visto que na capital, por exemplo, há anos que inexiste qualquer projeto de construção de moradias populares, tema que também é pouco discutido nos demais municípios da região metropolitana. E é justamente por isso que não resta alternativa às famílias que não conseguem pagar os altos aluguéis, a não ser ocupar terrenos vazios que não cumprem com sua função social.  

A caminhada atravessou o Estreito, cruzou a ponte e seguiu para o centro de Florianópolis. Além da movimentação na rua, para dar visibilidade ao momento de luta, foram entregues documentos referentes à Campanha Despejo Zero no Ministério Público Estadual e Federal, nas prefeituras dos municípios da região e da capital, no Tribunal de Justiça e também aos representantes da Diocese da Igreja Matriz, onde a marcha descansou. Na fala do padre Vilson Groh, ficou o compromisso de levar para as paróquias o debate sobre o tema da moradia. O mesmo documento deverá ser entregue aos candidatos a governador e presidência da República, já que o tema moradia não aparece nas campanhas. 

Estiveram presentes famílias das ocupações Vale das Palmeiras, Contestado, Anita Garibaldi, Marielle Franco, Vila Esperança, Benjamin, Fé em Deus, Beira Rio, Mestre Moa, Carlos Marighella, Fabiano de Cristo, Vila Aparecida e Elza Soares. Uma coluna com adultos, velhos e crianças, que sabem muito bem que só a luta garante direitos à classe trabalhadora e que, por isso mesmo, não se furta ao corajoso ato de reivindicar. Foi assim para encontrar um espaço onde erguer a casa, foi assim para construir as moradias sem apoio algum, e é assim que se unem para defender um direito que é de todos os brasileiros: morar com dignidade. 

O dia 30 de outubro, além de marcar as eleições, será um momento de tensão para as famílias que vivem a ameaça de despejo. E isso não é coisa só do nosso entorno, é em todo o país, pois com o fim do prazo para o despejo zero, muitas ações deverão acontecer no sentido de tirar as famílias de sua morada. Por isso esse movimento precisa estar de pé. 

A luta segue e se fará presente outra vez na Alesc, dia 08 de novembro. 

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quinta-feira, 20 de outubro de 2022

As lições das eleições


Observei que o inominado cresceu nas pesquisas depois das denúncias sobre ter assediado meninas. Não me surpreendi. Vivemos em Floripa uma situação parecida. O candidato a prefeito, filmado com a bunda de fora, transando com uma secretária dentro da prefeitura, também aumentou o número de votos depois da denúncia. Venceu em primeiro turno. Algo assim como se a pessoas respaldassem o "mau passo", "coisa de macho" que pareceu irrelevante diante das promessas concretas que ele fazia. Pode transar na prefeitura desde que calce a minha rua.

Estamos agora vivendo a campanha mais idiotizada de todos os tempos. Com acusações no campo moral e religioso que não levam a nada. Para os apoiadores do inominado, a desculpa dele, ao lado da mulher, com cara de santa, valeu demais. Tá tudo certo. Ele se arrependeu. Tá perdoado. Para os eleitores indecisos - que são os votos que interessam -  isso não tem importância. Eles querem saber se vão ter emprego e como vão ter. Eles querem saber se vão ter comida, se os filhos terão escola e posto de saúde. Eles querem propostas, concretas e viáveis. Pouco se lixam se o cara é evangélico ou católico ou discípulo de satanás. Querem respostas para seus problemas urgentes e materiais. 

Não é por acaso que nas cidades onde mais morreu gente na Covid, o inominado vence. A memória é curta e para quem perdeu parentes o erro foi do médico, ou do hospital, ou do vírus comunista chinês. Não associam a falta de política de enfrentamento ou de proteção. Nada cola no cara. 

Fosse eu a candidata à presidência me preocuparia com isso: ter um programa de fácil compreensão, de entendimento imediato, voltado aos problemas materiais e prosaicos. Farei isso e será assim. Não me preocuparia em rebater bobagens do oponente. Essa batalha moral já foi vencida pelo bolsonarismo e tanto que vamos ter de conviver com essas bizarrices por muito tempo ainda, mesmo que o Lula vença.  

Mas, enfim, sou apenas uma guria que quer destruir o sistema capitalista e que sabe - por conta da experiência histórica da humanidade - que não é com discursinho paz e amor e conciliação de classe que a gente muda o mundo. É quebrando os ovos, é dizendo a verdade sobre as coisas e é propondo coisas que realmente são possíveis de se fazer nesse momento da luta. 

Essa campanha me frustra. Por conta da incapacidade de uma ação mais radical contra o sistema - que hoje aparece mais na direita e a faz referência - podemos mergulhar em mais quatro anos de desastre para os trabalhadores e para a nação. Arre, égua, como diria Petruchio.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

São Borja na memória


Pracinha da Lagoa

Quando eu estudava  no colégio das freiras a caminhada para chegar até lá era grande. Morando quase no final da Rua dos Andradas, eu ia serpenteando pelas ruas, passando pelos lugares mais bonitos da cidade. Era longe, mas para a guriazinha daqueles dias, o trajeto era uma aventura. 

Acordava cedinho, sem que ninguém me chamasse, sempre gostei de estudar. Já deixava preparada a pasta no dia anterior. Levava os cadernos bem encapados com plástico colorido, o estojo de lápis, os lápis de cor e o plástico dobrado para colocar em cima da carteira. Sim, naquele tempo a gente protegia as coisas no colégio e todo mundo tinha de levar um plástico que cobria a carteira. Assim a sala ficava colorida, pois cada um levava da cor que mais gostava. 

A mãe preparava o café, eu comia e logo saia troteando, carregando a bolsa pesada. Ainda não havia mochilas e era preciso carregar na mão. Gostava ainda mais quando era inverno e o vento minuano assoprava no meu ouvido. Aquilo era música pra mim. O frio intenso e a cidade vazia. Pegava a rua do CTG e logo dobrava para passar em frente ao Hotel Charrua. Ali, atravessava a Pracinha da Lagoa, passando pelas pontezinhas, observando os bichos nos laguinhos, vez em quando balançando no balanço, pulando pelas alamedas. Depois seguia em direção a casa Nemetz, onde me deliciava vendo as lindas vitrines, sempre bem montadas. Dalí passava em frente ao Cinema Municipal, com uma paradinha para vez os cartazes dos filmes, e então seguia para a Praça XV e a atravessava de ponta a ponta, já que o colégio ficava numa de suas esquinas. Eram mais de dez quadras, cumpridas com indisfarçável alegria. Depois tinha a volta, o caminho todo de novo, feito com a mesma lentidão, observando cada pequeno detalhe do trajeto.

Hoje, pensando nisso, vejo que vem desde aí essa felicidade que eu sinto quando ando pela cidade onde moro. Desde pequenina trago comigo esse olhar deslumbrado pelas coisas sempre vistas, nas quais geralmente consigo encontrar novidades intermináveis. Um caminho nunca é igual. Ainda que o cenário pareça o mesmo, tudo sempre está em mudança. É tão lindo prestar atenção, maravilhar-se, surpreender-se.

Assim era aquele caminho até o colégio, feito todos os dias, mas sempre tão novo. Era diferente no verão, no outono, na primavera, no inverno. Todas as manhãs aquela cidade me presenteava com seus cenários encantadores e surpreendentes, fazendo com que eu me perdesse e me encontrasse todos os dias. Guardo nas retinas as imagens, as cores e os sons, que me chegam agora no outono da vida de maneira tão vívida. 

Essa minha adorável São Borja, pampa amiga que forjou meu espírito missioneiro, estradeiro e payador. Como foi bom percorrer essas ruas e vivenciar tanta beleza... 



terça-feira, 4 de outubro de 2022

Dois toques sobre a eleição


Foto: A Grande Família - seriado de televisão

Antes da eleição eu estava sentada lá no Elias, comendo um pastel. Sentou ao meu lado um homem e logo puxou conversa perguntando em quem eu iria votar. Não era um homem sem cultura formal, era um brasileiro médio, pequeno empresário e bem articulado. Respondi que não sabia ainda, para dar corda. Ele então começou a falar sobre as propostas da “esquerda”. Uma delas era que o Lula, se eleito, iria transformar os banheiros das escolas em banheiros conjuntos, meninos e meninas junto. E que aquilo era um absurdo. Também que nas escolas iriam ensinar como ser gay e puta, estragando a família brasileira. Disse ainda que as vacinas que as pessoas tinham tomado eram feitas de placenta humana e que causavam câncer em massa. Que o Bolsonaro estava certo em não querer que a população se vacinasse, que ele salvou vidas. Falou da ministra Damares e no quanto ela estava trabalhando para proteger as meninas de tanto pecado. Sobrou até para o Papa Francisco, que, segundo o cara, era um pedófilo convicto e que, unido com a esquerda, iria perverter todas as crianças. Disse ainda que o comunismo era a coisa mais horrível do mundo, embora não conseguisse me explicar em que exatamente consistia. O que ele sabia era que destruía a família. Por isso a necessidade de escolas militares. Além disso, falou do quanto o Lula era ladrão e do tanto que tinha roubado o país. Por isso era fundamental que a população estivesse armada, para se proteger da violência e dos ladrões. Também afirmou convicto, que as queimadas na Amazônia e no Pantanal tinham sido provocadas por esquerdistas aliados ao Leonardo DiCaprio, para manchar o nome de Bolsonaro. Por fim, para salvar a família, só mesmo o Bolsonaro. 

Estas são algumas das verdades que estão firmes na cabeça de um número expressivo de brasileiros. São ideias que cruzam o éter nos grupos de família, de amigos, na igreja, nas conversas de bar. O comunismo é do diabo, torna as pessoas marginais e por isso é preciso acabar com essa ideologia satânica. Se precisar, para dar fim no comunismo é preciso acabar fisicamente com os comunistas. Eles são a maçã podre que está enfraquecendo a nação e a família. Eles são monstros que realizam sacrifícios humanos para se manter no poder no mundo. Tudo o que dá errado no país é culpa deles. Eles causam os problemas para incriminar Bolsonaro. Por isso a cruzada do presidente e de sua religiosa esposa. Eliminar os comunistas é salvar a nação. E as pessoas falam isso sem qualquer pejo. Porque para elas, matar um comunista não é crime, é ajudar na missão de deus para criar um país seguro para seus filhos. Por isso acreditam na ideia de que os militares, quando deram o golpe em 1964, estavam corretíssimos em perseguir, torturar e matar os comunistas. Porque eles são a causa de todo o mal. 

Esse tipo de discursos não está apenas no âmbito das pessoas mais simples e religiosas. Ele circula velozmente mesmo entre os letrados. Tem se transformado numa espécie de monstro que carrega todo mal do mundo. E não adianta querer argumentar, trazer elementos da história. Não. É crença. Não está no campo da razão. Qualquer tentativa de debate é rechaçada com um olhar estranho de reconhecimento: ela é o diabo. Já ouvi isso até mesmo de pessoas da família, pessoas muito próximas. E esse reconhecimento implica em uma ação imediata de rechaço e de necessidade de eliminação. Assim que não adianta trazer números sobre o quanto a ditadura matou e torturou. Para essa gente, os milicos fizeram o que tinham de fazer e, se precisar, eles mesmos o fazem agora. Tudo para salvar a família. Não há argumento que penetre esse muro criado pela fé cega. 

É nesse mundo que estamos agora. E, de certa forma, perdidos. Porque o que se vê no campo da esquerda é uma incapacidade teórica e prática de atuar nesse universo. Primeiro que há uma negação sobre esse discurso e uma desqualificação das pessoas que o disseminam. Não sei se é o caminho. A política está atravessada pela moral, sempre esteve de algum modo quando definimos o que é bom ou o que é ruim. Mas, agora, nesses tempos, a moral se sobrepõe porque a política – tal como aparece - tem se mostrado incapaz de dar respostas aos problemas cotidianos. Geralmente quem tem feito isso – dar respostas e caminhos  - é a igreja. As neopentecostais estão em cada esquina, como as farmácias. E elas são espaços onde as pessoas se sentem seguras para sonhar com a resolução dos problemas. Então, entregar a vida nas mãos de deus parece ser o mais seguro. E quem é o homem de deus? Bolsonaro. Então, quem está com ele, está com deus. Por isso, um completo desconhecido, com uma arma na mão, pode virar o senador eleito de um estado, como aconteceu em Santa Catarina, porque ele é um soldado de deus para acabar com os bandidos e defender a família. Esse é o mantra. “Deus no controle”, e não um deus qualquer, mas um deus vingador, sedento de sangue. E os comunistas é que são os satânicos. Ah, mas claro. Eles estão a serviço do diabo. Por isso devem ser eliminados. Simples assim. 

Elementos da realidade do governo de Bolsonaro tais como a compra de imóveis de luxo com dinheiro vivo, corte de 92% da verba para Ciência e Tecnologia, aumento dos salários do presidente, do vice e dos generais em 69%, mais de trinta bilhões de orçamento secreto, cinco bilhões para o Fundão eleitoral, cinco milhões para os desfiles de moto, pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), desvio de verbas de combate à Covid, retirada de recursos das Universidades, fim de direitos trabalhistas, invasão das terras indígenas, e outros tantos, não são considerados. Isso não é considerado problema pela maioria da população. 

E é nesse ritmo que a realidade perde força diante da fé. Se os preços dos alimentos estão nas alturas, não têm nada a ver com o governo. É coisa do demo e dos comunistas. Se a gasolina foi a sete reais, culpa dos esquerdistas. Se não há emprego, é porque os comunistas exigem direitos, ora só. Direitos! Se não há segurança é porque os esquerdistas estão mancomunados com os bandidos. Essa é a oração repetida e repetida. “Tudo está começando a melhorar”, insistia o candidato Bolsonaro nos seus comícios. “Agora vai”, porque já limpamos bastante o país de comunistas. Mas ainda há que limpar mais. E a fé cega acompanha e acredita. Nas suas falas ele toca no que interessa: a comida vai chegar à mesa, a família estará protegida. Quem não quer isso?

Bolsonaro cometeu todos os crimes eleitorais possíveis durante a campanha. Fez até do sete de setembro um ato eleitoral. E a justiça quieta, no miudinho. Porque os que a operam estão igualmente montados nesse cavalo moral. A classe dominante apoia porque o Bolsonaro é útil ao sistema, tem garantido todas as suas demandas. E a massa, hipnotizada pela fé, não questiona. Esse é o pântano onde estamos metidos. A realidade material é de arrocho, miséria – a fome já toca mais de 33 milhões de pessoas – insegurança, medo. Só que isso não mobiliza para a mudança, porque o presidente já prometeu melhorar. A ideologia vencedora é de que com armas na mão será possível defender a família e que, com deus no comando, a vitória virá. Quem não quer defender a família? 

A história nos conta de momentos assim, de prevalência da moral, tais como a inquisição, o nazismo, o fascismo. São tempos duros para os quais as respostas não são fáceis ou simples. A esquerda brasileira não conseguiu ainda se mover nesse campo. Ainda não têm respostas. Mas, como também nos mostra a história, fatalmente acabará encontrando. Por enquanto está tateando. As propostas bolsonaristas são concretas e dizem respeito às demandas concretas da população. “Vamos melhorar a vida, vamos limpar o país dos ladrões, vamos defender a família”. As propostas da esquerda não são claras e não tocam a realidade, prefere defender pautas particularistas que só tocam na classe média. Eis aí o nó. 

E para nosso desespero ainda há quem faça discurso de vitória por terem conseguido colocar algumas figuras representativas dos movimentos sociais no parlamento. Ora, a política não se decide ali. Haveria que se retomar um discurso classista, repleto de propostas claras para a classe trabalhadora. Propostas concretas, que dizem respeito aos dramas reais dos trabalhadores. Os trabalhadores querem emprego bom, defender os seus filhos das drogas, da violência, e querem viver em paz. O candidato da direita fala com eles, promete isso, ainda que não cumpra. Esse é o ponto. Em quatro anos a vida piorou, mas “agora vai melhorar”, aponta o messias. E o povo, desesperado por mudanças, acredita. 



terça-feira, 27 de setembro de 2022

A tecnologia e o tele trabalho


Trabalhadores querem outras regras para o tele trabalho - Foto: Rubens Lopes

Como já bem pontuou o filósofo Álvaro Vieira Pinto a tecnologia sempre vem para ajudar o ser humano na sua relação com o trabalho. Desde o começo dos tempos quando o humano inventa é para ter mais qualidade de vida. Assim, a descoberta do fogo, da roda, do alfabeto, as máquinas e por aí. Daí que o debate sobre o tele trabalho na UFSC deve levar isso em consideração. A internet, os novos instrumentos de trabalho e tudo mais chegaram para melhorar a nossa vida. Isso, em tese. 

E por que dizemos assim, em tese? Porque se a tecnologia sempre vem para melhorar a vida, quem a domina e impõe seu uso pode mudar a ótica da coisa. Um exemplo claro é a internet. Quando chegou anunciou a democracia, a possibilidade de cada pessoa poder produzir sua informação, dizer sua palavra. O reino da liberdade. Mas, na prática, como funciona? Para ter a internet é preciso pagar e as grandes corporações são as que decidem como e o quê tu vais dizer. Quem nunca foi bloqueado no facebook? Quem tem liberdade de escolha? Quem pode dizer o que quer? Não é bem assim, né? Quem domina as redes não é a pessoa. São umas poucas pessoas que concentram as informações e dados. Ou seja, ela tem dono, e não és tu. Logo, não há democracia nem liberdade. É tudo uma ilusão. Segue a ditadura do capital.

A proposta do governo para o tele trabalho segue a lógica do capital. O professor Vitor Filgueiras, da UFBA, escreveu um livro mostrando o quanto as chamadas “novidades” do mundo do trabalho são as mesmas velhas armadilhas que superexploram trabalhadores e atuam para sua desagregação enquanto classe. Trabalhar remotamente pode ser bom para algumas pessoas, mas é preciso estar atento às regras impostas pelo governo para que isso aconteça. Pela norma aprovada ontem no Senado, a IN65, é o trabalhador quem deve ficar responsável pela sua estrutura de trabalho, ou seja, caminho seguro para o gasto e a precarização, assim como já funciona no Uber e com entregadores de comida. Há que cuidar do carro e da bicicleta e há que seguir as regras da empresa, mantendo-as como a empresa quer. O cara se acha empreendedor ou autônomo, mas, na verdade está atrelado às normas da empresa. Ela define e ele gasta.

No caso do tele trabalho proposto pelo governo a coisa vai por aí. E tem mais. O trabalhador terá de ser responsável pela segurança dos dados públicos. Ora, como dar segurança para os dados senão investindo em bons antivírus e coisa e tal? E esse investimento quem terá de fazer é o trabalhador e se os dados forem roubados, ele será responsabilizado. Pesado isso, heim? Sem contar o tanto de direitos que somem da relação e trabalho. Haverá metas a cumprir e índices de produtividade e quem vai definir isso é o chefe imediato. Ou seja, o cara não precisará bater ponto, mas deverá seguir uma proposta de produção. E o que é mesmo que os trabalhadores técnico-administrativos produzem? Temos uma longa luta contra essa lógica da fábrica de salsicha. Não é assim que banda toca. O trabalho na universidade e no serviço público não pode ser medido pelo número de e-mails respondidos ou atendimentos realizados. Isso não diz do trabalho feito pelo trabalhador da educação. Aceitar isso é dar tiro no pé.

O governo que aí está não pretende fazer com que a tecnologia facilite a vida do trabalhador. Pelo contrário. Quer preparar a cama e a mesa para os empresários da educação na medida em que o sonho dessa turma é privatizar a universidade precarizando o trabalho. Aceitar essa regra tal qual o governo criou é colocar tijolo nessa obra. 

Por isso que o sindicato dos trabalhadores da UFSC está discutindo uma outra legislação, que não penalize os trabalhadores, que de fato use a tecnologia a nosso favor, que não signifique perda de direitos, que não ajeite o campo para a privatização. Mas, há quem seja contra isso e peça a implantação já da IN65. Nada mais equivocado. Na sanha de resolver questões pessoais e urgentes, colega há que estão atropelando o debate. A regra do governo é ruim. Nós podemos melhorar isso. Mas, é preciso que estejamos juntos nessa luta. Dividir os trabalhadores é trabalho dos quinta coluna, dos que não se importam com os destinos da universidade e do serviço público. Olho vivo com isso pessoal. O tele trabalho pode ser bom, mas tem de ser dentro das nossas regras. 


quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Perdemos o bonde da história


Quando no começo dos anos 2000 surgiu o Fórum Social Mundial em contraponto ao Fórum de Davos já nas primeiras edições uma coisa ficou bem clara: estavam em disputa ali duas concepções de luta. Uma, que apontava a possibilidade da convivência pacífica com o sistema capitalista (o capitalismo humanizado) e outra que negava veementemente isso, mostrando que é impossível um mundo melhor dentro do capitalismo. 

Com o andar da história, o que se viu foi a vitória da primeira visão. A recusa ao poder, o democratismo, as lutas segmentadas e particularistas, a proposta de inclusão, o ecologismo sem dentes. Isso foi se impregnando nos movimentos sociais e acabou sendo o mote para a ascensão dos  chamados “governos progressistas” que se seguiram. Novos nomes para uma velha receita: o liberalismo. E no campo político a socialdemocracia. Essa falácia de mais isso e mais aquilo, como se fosse possível vencer o sistema apenas com uma pitada de “mais”. Ora, um sistema tem de ser rompido, destruído, demolido, para que surja o novo. 

As pautas radicais sumiram do mapa. Apenas a Venezuela de Chávez ousou um pouco mais, aproximando-se da proposta cubana de autonomia e socialismo. Mas, o Chávez morreu e o que se seguiu foi a mesma velha tentativa de caminhar na corda-bamba acendendo vela para deus e para o diabo ao mesmo tempo. Romper com o sistema não está nos planos. Cuba segue solitária, capengando. 

Aqui no Brasil tivemos a experiência dos 14 anos de PT no governo federal. E por ali tampouco tivemos propostas de mudança das estruturas. Apenas a ideia liberal de mais isso e mais aquilo para os pobres. Mais isso e mais aquilo para os grupos particulares. O sistema incólume. Banqueiros lucrando, fazendeiros ganhando, aposta na inovação, reformas contra os trabalhadores, recusa da auditoria da dívida, frouxidão com as igrejas caça-níqueis. Nada de novo no front.  

Aí veio o bode na sala. A experiência bolsonara, fruto do cansaço dos trabalhadores, do avanço das pautas morais e da desinibição da direita. A política dominada por temas tangenciais enquanto que as grandes questões nacionais ficaram de lado. E, enquanto os bandos se digladiavam nas redes sociais, o governo ultraliberal foi passando tudo o que era de interesse da classe dominante local e internacional, com o apoio seguro do legislativo federal. As centrais sindicais se apagaram e restou a uns poucos sindicatos combativos a luta pontual e singular. Os trabalhadores foram se adequando à ideologia dos “novos tempos” e das “novas formas de emprego”, sem organização e sem luta. As perdas foram grandes e continuam anestesiando a maioria. 

Agora vêm aí as eleições outra vez. E na população vai crescendo a ideia de que é preciso tirar o bode da sala, o que é óbvio. Sacar do governo aquele que personifica o mal. A proposta é singela: sair do ultraliberalismo e voltar para o liberalismo. Apenas isso. Nada mais profundo ou radical a ponto de não importar que se façam alianças de conciliação de classe. Chegamos ao absurdo de ver lideranças populares irem aos Estados Unidos pedir ajuda a Biden para garantir a democracia tupiniquim. Essa mesmo foi de cair os butiás do bolso. Nada de falar em recuperação do Banco Central ou de auditoria da dívida, ou de revogação das reformas que aniquilaram com os trabalhadores e os velhos. Não importa que haja acordos com banqueiros, fazendeiros e até com o embaixador dos Estados Unidos. Tudo vale para tirar o bode da sala. “Depois a gente vê”. Bom, já vimos esse filme.

Assim que o dia dois de outubro não reserva surpresas. Pelo menos não para os trabalhadores. Ao que parece os brasileiros simplesmente tirarão o bode da sala, entregando um cheque em branco para os liberais. 

Há uma longa estrada de reconstrução das lutas para os trabalhadores e o primeiro passo talvez seja reconhecer que a ideia do “capitalismo humanizado” venceu, e que ela não é boa. Mas não é mesmo. Ideologias como a do empreendedorismo e a do faça-se a ti mesmo pelo mérito estão aí mostrando suas chagas, suas rachaduras. Não há saídas dentro do capitalismo. É da natureza do sistema se expandir e ir destruindo tudo ao seu redor. Não há como humanizá-lo. Não há. 

Essa compreensão é fundamental para que as lutas voltem a se fazer por propostas definitivamente radicais, que mudam a vida, para melhor. A vida de todos e não só de alguns. A eleição poderá tirar o bode, mas, será suficiente? 


quarta-feira, 14 de setembro de 2022

A aranha


Na minha casa mora uma aranha. E já vai pra mais de dois anos. Ela fica num canto da parede, dentro de uma espécie de casulo. É bonita, grande e com uma cor delicada. Durante o dia tu olha pra lá e ela está lá, quietinha, como morta... No final da tarde ela desce, devagar e começa a tecer uma teia. Imagino eu que é onde ela prende os bichinhos voadores que lhe servem de alimento. Aquilo me encanta.

Nunca tive coragem de limpar o lugar. Olho para a teia e imagino que aquilo ali deve ser um universo para a aranha. Seu pequeno mundo é aquele espaço entre o casulo e a teia. Não deixo ninguém mexer. A aranha me faz pensar na vida da gente. E sempre que me aperta a angústia dos dias que passam quase sem propósito, na rotina do prosaico, eu vou ali bater um papo com ela. Aconteça o que acontecer ela tece sua teia. Todos os dias ela vai ali e remenda. Por vezes a teia está maior, outras menor, mas está ali, o seu universo. 

Então eu penso que com a gente pode ser assim também. Mesmo quando nada parece fazer sentido, é preciso percorrer os caminhos da nossa teia, remendar, costurar, agrandar. Talvez esse seja o sentido mesmo: simplesmente viver. Sei que não sou uma aranha, mas dias há em que me consola pensar que sou como ela, apenas tecendo, tecendo e tecendo...

terça-feira, 6 de setembro de 2022

O pai e a alegria


É certo que a gente não é de ferro. Por isso, vez em quando me dá uma tristeza infinita por perceber que a doença de Alzheimer está levando o pai, lentamente. Não é bolinho a gente ver a pessoa que a gente ama ir se apagando. São as tais das fases. Lembro que quando ele chegou aqui saía sozinho, ia ao mercado comprar seu pito, troteava pelo bairro “indo para casa”, molhava as plantas, secava a louça, caçava carrapato, marcava os cocozinhos dos cachorros, sempre envolvido em alguma tarefa. Agora, ele já não quer saber de andar e passa os dias sentadinho na sua poltrona ou na cadeira de rodas, no quintal. É coisa que me angustia. Mas, vou aguentando. 

Por outro lado, mesmo nesse contexto de perdas, há momentos que são de uma alegria estelar. Um deles é o momento de tirá-lo da cama. Espio na janela para ver se ele já acordou. Ele acorda devagar. Fica um tempão brincando com as cobertas. Quando, por fim, ele meio que senta na cama vejo que é hora de eu entrar em ação. Então, eu abro a porta do quarto, cantando: “bom dia, seu Tavares, o sol já nasceu lá na fazendinha”... E ele me olha, dando uma baita risada. Ele me reconhece. Provavelmente não como filha, mas como alguém em quem ele pode confiar. Ele se alegra e se agita, pronto para levantar. 

Esse momento, esse único momento já vale pelo dia inteiro. Sei que muito pouco posso fazer por ele no que diz respeito à doença. Mas, tenho completa certeza de que ele sabe e sente que faço tudo o que é possível para que ele passe esse tempo na felicidade. Vejo isso também quando chego do trabalho. Eu ponho a cara na porta e digo: “cheguei, meu broto”. E ele abre o sorrisão, como a dizer “que bom!”. E nos sintonizamos na alegria.

Cuidado e carinho é tudo o que é preciso...

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

A Gina e o telefone



Eu ainda tenho telefone fixo. Insisto nisso. Ele toca bastante. São chamadas da Tim, da Vivo ou de empresas de cobrança procurando pessoas que jamais vi. Mas o seu toque é sempre um alerta pra mim. E aviva minhas lembranças mais doces. Poucos são os amigos que ligam para o meu fixo. Havia dois em especial que sempre ligavam: o Danilo, que encantou esse ano, e a Gina, que encantou há seis anos.  Assim, quando ouço o tlim tlim do telefone eu imediatamente penso: ou é a Gina ou o Danilo e corro para atender. Desafortunadamente não é nenhum dos dois, mas é bom, porque eu sorrio e lembro de suas vozes a me encher a cabeça e o coração.

A Gina era batata. Qualquer mudança na conjuntura ela ligava para discutir o tema , passar suas impressões. Ou então vinha com pautas para eu fazer matéria. “Tem que escrever sobre isso, baixinha”. “Tu ouviste o discurso do Chávez? Tem que reproduzir!” E ela mandava e eu obedecia. Por vezes ela ligava para xingar os políticos ou qualquer outra criatura que estivesse fazendo merda. E de sua boca saiam as mais escabrosas maldições. Era uma pândega. Iluminava minha vida. A Gina era uma antena, captando tudo sem parar. E tinha garras afiadas para lutar contra os vilões do amor. E para defender o MST, movimento que ela amava mais que tudo. 

Lembro que ela já estava doente e fomos buscá-la para almoçar na casa do Glauco. Enchemos a cara, demos muita risada e falamos mal de deus e o mundo. Ela já tinha mandado eu fazer um livro sobre o Artigas e eu estava enrolando. Então prometi que iria fazer um vídeo sobre o nosso general dos povos livres. E fiz, e ela foi a linha mestra de todo o trabalho.

A Gina encantou antes de o vídeo ficar pronto. Não viu o produto final, mas não importa. Eu sei que ela iria adorar. “La puta madre. Ficou bom”, diria. E mandaria eu espalhar por aí a história da grande marcha para a liberdade. Eu o fiz, amada minha.

Hoje faz seis anos que ela se foi. Não mais sua figura esguia, meio Maricota. Não mais sua risada forte, não mais a sua voz uruguaia. Mas, ainda que não esteja em carne, ela permanece. Vive em cada toque do telefone, em cada notícia sobre Cuba, Venezuela, MST, nas lutas dos trabalhadores. Sua energia vulcânica está nos ar, nas estradas que levam aos acampamentos e assentamentos, nos auditórios da UFSC e nas entradas de todos os encontros de trabalhadores. Porque a Gina é desses mortos que nunca morrem. Ela vive para sempre. 

Te amo Gina... Te amo a morir! E gosto de te lembrar assim: com cerveja, risos e maldições!!!

terça-feira, 9 de agosto de 2022

O comunista



Trocar o pai de manhã é uma longa novela. Há todo um ritual para ele levantar da cama e depois para a limpeza corporal. Tudo feito com muita calma e muito conversê. É uma maneira de distraí-lo e ir fazendo o que precisa ser feito. Tirar a roupa da noite, dar o banho de gato ou de água, conforme o estado de humor, trocar as meias, passar o óleo de girassol pelo corpo todo para hidratar a pele, fazer o curativo da feridinha que apareceu nas costas, tirar a fralda. 

Feito isso, começa a parte de colocar a roupa do dia. Outro processo. Colocar a camiseta, a blusa de lã, a fralda limpa, a calça, as meias, o tênis. Tudo isso eu faço sempre avisando cada passo que vou dar. Agora vamos colocar a camisa. Agora vamos colocar a blusa, agora isso, agora aquilo... Nesse meio tempo, ele vai conversando e dizendo coisas na sua língua de cigano. 

Dia desses, lá estávamos nós, eu e a Clau, ajudando ele a se levantar e trocando a roupa. E ele falando, falando, falando. Começou a dizer foice, foice. 

E eu:

- Foice, que foice? A única foice que eu conheço é a foice e o martelo do comunismo. 

E ele assentindo com a cabeça. 

- Por que estás falando isso? Por acaso  tu és comunista?

E ele, muito rápido e firmemente:

- Euuuu sou!

Pois é, a fruta não cai longe do pé.



No ônibus



Aí entra no ônibus o vendedor de trufas. Faz toda a sua conversa contando que é do Maranhão e que preferia estar trabalhando de carteira assinada. Mas, no país do Bozo, o desemprego cresceu. Ele está fazendo o que pode para sustentar a família. Começou a explicar como os maranhenses comem a juçara, que para nós aqui é açaí. Então ofereçe as trufas, seu ganha-pão. Um menino olha pra ele, atento, com os olhos pidões. Acompanha o conversê todinho. Um ou outro compra a trufa e o guri com aquela carinha triste.

Aí o vendedor olha pra ele e pergunta:

- Você quer uma trufa, menino? 

E ele, ainda com os olhos pidões, mostra uma nota amassada de dois reais. 

- Só tenho isso...

- Tá bom, toma aqui, faço por dois. 

E a carinha dele se ilumina, irradiando a felicidade pelo ônibus inteiro. 

O homem sai antes que o ônibus arranque. E o gurizinho segue o caminho da Eucalipto se lambuzando de chocolate, feliz, feliz... 

Não sei porque diabos isso me emociona tanto e me saltam as lágrimas..

Jornal Comunitário


Apesar da internet e tudo mais eu ainda acredito firmemente que a comunicação do cara-a-cara é a melhor. E fazer esse encontro com um jornal impresso é melhor ainda. Por isso gosto de saber de experiências de jornalismo comunitário por aí que ainda apostam nessa proposta. 

É o caso do trabalho da Comunidade de Jovens do Oeste (Cojoeste) que desde há nove anos edita o Jornal Comunitário. São 12 páginas de reportagens, informações de interesse público, poemas, enfim, coisas que interessam aos moradores da região. Essa gurizada, além de produzir o jornal, vai pelos caminhos fazer a distribuição, casa em casa, aproveitando para fazer uma prosa e tomar um mate. 

Recebi alguns exemplares pelo correio e agradeço. Por seguirem fazendo jornal, por trabalharem com o jornalismo libertador e por garantirem informação de qualidade no espaço rural, onde quase nada chega. Parabéns meu queridos Paulo Fortes, Tayson Bedin, Eliezer A. de Oliveira, Claudia Weinman Cláudia Baumgardt, Julia Saggioratto e Pedro Pinheiro. Vocês aquecem meu coração....

sexta-feira, 29 de julho de 2022

A força de viver



Meu pai tem Alzheimer há sete anos. Com a pandemia piorou um pouco porque a interação social parou. Mas, também sabemos que essa doença é assim mesmo, vai piorando. Não há melhora. Temos de ir nos reinventando. Há alguns meses a mobilidade dele deteriorou muito. Homem afeito a caminhadas, parou de andar. Mal consigo fazer com que ande até o portão, logo de manhã quando acorda. Depois, ele senta e não levanta mais até de noite. 

Como aqui em casa a vida acontece mais na parte de fora – almoços e encontros familiares  - eu tive de encontrar alternativas para não deixar ele isolado no lado de dentro. Então, aluguei uma cadeira de banho – para a hora do banho – e uma cadeira de rodas para movê-lo para fora, no quintal, onde precisa tomar sol e interagir. 

Pois foi só as cadeiras chegarem que ele se aprumou. A cadeira de banho ele abomina. Não senta de jeito nenhum. Na primeira vez fez uma balbúrdia tão grande que tivemos de desistir. Hoje, em mais uma tentativa de dar banho sentado, ele colocou toda sua força nos braços e se levantou sozinho. Não quer saber de sentar na bichinha. O jeito foi levá-lo até o box, caminhando mesmo. E ele se foi, bem contente, chegando até a brincar com a água quentinha. Xô cadeira, não tô morto, parecia dizer. 

Já a cadeira de rodas ele só aceita para ficar ao sol. Eu o levanto e ele vai andando até o quintal, lá ele senta na cadeira e fica o tempo todo empurrando ela com os pezinhos. Na hora de voltar pra dentro, tem de ser andando também. Seu Tavares é porreta mesmo, se recusa a se deixar vencer.  Observo isso com profunda ternura. Meu amado pai, que sempre foi um caminhador, enfrenta com valentia mais essa dificuldade. A parada é dura pra todos nós, mas enquanto ele tiver força, vai querer andar. E que bom que seja assim. 

Nessa doença o lance é esse. Quem tem de se adaptar é a gente que cuida. Eu me alegro de ver a força da vida que segue forte no pai. Ele não se entrega fácil não. Que siga assim, meu brotinho... 



quinta-feira, 28 de julho de 2022

Campeche diz não à proposta da prefeitura para o Plano Diretor


Ginásio lotado - Foto: Eros Mussoi

A apresentação da proposta de mudança no Plano Diretor de Florianópolis na audiência pública realizada no Campeche nesta quarta-feira, 28, deixou uma coisa bem clara: esta é uma prefeitura fraca. Uma gestão fraca. Um governo municipal que simplesmente está disposto a permitir que sejam os empresários do cimento os que vão moldar a cidade. Não é uma proposta construída com a população, mas, como muito bem colocou o professor Daniel José da Silva, é um plano de negócios. E um plano que tem como centro o desejo do empresário da construção e não o povo que vive na cidade. 

Apesar das firulas e jogo de imagens reproduzidas no telão, a ideia da prefeitura é simples. Quer sentar com os construtores e dizer assim: “olha, a lei diz que aqui só pode construir quatro andares, mas se tu me deres um espaço para uma praça, pode um andar a mais. Se tu me deres uma rua, pode construir outro andar e assim por diante”. Os nomes pomposos na armadilha são “outorga” e “incentivo”. Então, será o empresário o que vai definir o que quer dar. Nada poderia ser mais fraco e humilhante. Uma cidade como Florianópolis, conhecida por sua beleza natural, com 42 lindas praias, com tanta riqueza cultural, simplesmente se ajoelha diante dos magnatas do cimento.   

Uma prefeitura forte deveria construir uma proposta de cidade com sua população e dizer aos empresários: "essa é nossa proposta. Se qués, qués, se não qués, dish". Com absoluta certeza os que estão acostumados a explorar o turismo aceitariam a proposta, porque sabem que o que “vende” é a beleza, a mobilidade, a vida boa, a comunidade festiva e feliz. Mas, os dirigentes da velha Meiembipe preferem entregar anéis, dedos e mãos de maneira servil em vez de planejar com seu povo. 

O Campeche disse não a essa proposta. Porque luta há mais de 20 anos para ter reconhecido o seu plano para o bairro, um plano construído por dias, noites, finais de semana, em reuniões e oficinas. Uma parte significativa da vida colocada nesse esforço para manter a comunidade fora da lógica da especulação e da rapina. E, ao final do processo, no apagar das luzes de 2014, o plano diretor que foi para votação não foi o desenhado pela comunidade. O que houve foi um estelionato político cometido pelo prefeito César Souza e pela maioria dos vereadores. Prefeito e vereadores ajoelhados diante da ganância.  

Agora, de novo, de forma atabalhoada, a prefeitura, com Gean Loureiro e Topázio,  volta a impor uma mudança no Plano Diretor, sem a participação popular, tanto que para realizar as audiências o movimento social precisou recorrer à luta e às batalhas jurídicas. 

Uma coisa é mais do que certa. Quem sabe do bairro é quem vive no bairro. Assim como quem sabe da cidade é quem vive na cidade. E quando dizemos viver, é viver mesmo, visceralmente, e não apenas morar. 

No Campeche a vida deteriora ano a ano, mesmo com as pequenas conquistas tidas no plano de 2014. Foram mantidos os prédios baixos e as dunas e a restinga não acabaram invadidas por uma estrada do tipo beira mar. Mas, por outro lado a ação predadora da câmara de vereadores e suas intermináveis alterações de zoneamento permitiram a semeadura de inúmeros condomínios, sem a melhoria estrutural, outros tantos prédios em cima das dunas, construções irregulares de toda ordem que a comunidade embargava, mas que logo depois perdia, com o aparecimento de licenças, sabe-se lá como conseguidas. 

Esse enchimento do Campeche tornou a vida dos trabalhadores um inferno, e a volta para casa no final do dia virou um sofrimento sem fim, com o transito lento e mais de 40 minutos parados na Pequeno Príncipe, que já não consegue escoar o tanto de carros. Há apenas duas saídas do bairro. Uma pela Pequeno Príncipe e outra pelo Rio Tavares/ Lagoa. Mas, os trabalhadores, os que andam de ônibus, tem apenas uma. Não há melhoria no transporte, não há trem de superfície, não há VLC, não há nada. A comunidade está entregue ao caos. E não é porque não há leis ou um plano diretor. Não há é fiscalização, gestão competente. 

Durante o verão falta água, a lagoa do Peri vive em risco, e a carga de energia não aguenta. E nem precisa ser verão. Quem vive no Campeche sabe o tanto de cortes de luz que acontecem todo momento. Isso só tem um nome: falta de cuidado e de planejamento por parte dos governantes. A praia, que já foi conhecida como a mais limpa do sul, hoje sofre com o esgoto correndo para o mar. Crescer deveria significar vida melhor. E o que acontece é o contrário.

Agora, com a proposta de mudança o plano da prefeitura é transformar a ilha num monstro de concreto. Aumentar o número de andares, permitir prédios imensos, provocar o adensamento populacional, sem a contrapartida na estrutura. Os governantes não se importam com a qualidade de vida da maioria. Agem como se esse lugar não tivesse limite. Só querem vender e encher a cidade de prédios para especulação de veraneio. Pois bem. Não é o que a comunidade quer.

O que os que vivem no Campeche querem é andar na cidade, sem sofrimento, e sem levar uma hora e meia ou duas horas para fazer 30 quilômetros de ônibus, com  transporte de qualidade, rápido. Querem o parque cultural, o Pacuca, para passear com os filhos, netos e velhos. Querem a praia limpa, as dunas e restinga protegidas. Querem o tratamento de esgoto e a manutenção da ideia de um bairro jardim, com casas e construções baixas, espaços de vida saudável. Querem turismo comunitário e planejado, sem especulação. 

O sul da ilha tem sido a bola da vez, mas a comunidade mostrou, em uma audiência lotada – a maior das 13 realizadas – que não vai permitir a destruição da comunidade. A maioria disse não a essa proposta que, apesar de tantas letrinhas, só tem um propósito: garantir lucros aos donos do cimento, à especulação. Junto com a Amocam os moradores estão dispostos a discutir, estudar e oferecer alternativas para que o bairro fique melhor. Mas que seja uma melhoria real, para todos, e não só para os que querem ganhar dinheiro com a paisagem especulada. O Campeche não quer ser Balneário Camboriu, nem Dubai, nem ter um futuro de excrescências na beira do mar. Quer um presente de vida boa, aqui, agora, garantindo assim um amanhã igualmente bom para os que vierem depois. 

O que a prefeitura ouviu na audiência foi um sonoro não a essa proposta fraca, de uma prefeitura fraca. Mas, não é um não vazio. É um não de quem vive, estuda, ama e pensa a cidade. De quem tem as próprias propostas construídas coletivamente e que exige serem levados em conta. Ou isso, ou viveremos outro estelionato político, como é comum.  Esperamos que não.  Nossas propostas estão na voz da Amocam. E com elas vamos lutar. É para elas o nosso sim.

A parte isso, seguimos lutando para garantir uma prefeitura forte, espelho das comunidades organizadas, que tenha competência para definir a vida da cidade e não uma prefeitura que viva se ajoelhando diante dos interesses do capital, oferecendo migalhas ao povo.